domingo, 20 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

Madrid > Museu do Prado > Francisco Goya (1746-1828) > 1814 > O 3 de Maio [de 1808: o fusilamento dos patriotas, defensores de Madrid, às mãos do exército napoleónico]. Quadro a óleo.

Fonte: Wikipedia: the Free Encyclopedia (Imagem do domínio público).



46ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 27 de Abril de 2007. Subtítulos do editor do blogue.


Caro Luís, já li o episódio que hoje publicaste e agradeço do coração o teu desvelo. Os livros já seguiram. Prevejo que amanhã vamos viver uma heróica e pacífica jornada e eu preciso de receber alento para os episódios das próximas semanas, tal o cansaço e o sofrimento que me está reservado para estes úlitmos meses em Missirá. Recebe a gratidão do Mário.




O reencontro em Sinchã Corubal

por Beja Santos



Eram homens para encarar as trevas de frente. ("Coração das Trevas", por Joseph Conrad)



Convoco de surpresa Domingos da Silva, Nhaga Macque e Benjamim Lopes da Costa para trabalharmos pelas 11h da noite naquele dia de 16 de Maio [de 1969]. Tenho uma confiança ilimitada nos meus três cabos africanos e pretendo transmitir-lhes cuidadosamente o modo de actuação que quero que se venha a adoptar na emboscada nocturna que iremos desencadear em breve à volta de Sinchã Corubal.

Não há dúvida que a gente de Madina [, sita a noroeste do Mato Cão, com Sinchã Corubal pelo meio,]percorre com desfaçatez duas picadas que vêm de Cabuca (qualquer coisa como a dois quilómetros do acampamento de Madina) e à volta do rio de Ganturandim avançam em direcção à estrada de Saliquinhé/Mato de Cão/Gambaná e daqui vão até aos Nhabijões ou a Mero/Santa Helena para se reabastecerem e colherem informações.


Quando a gente de Madina vinha a Bambadinca abastecer-se de tabaco, cola e comida


Passados estes anos todos, continuo intrigado quanto à periodicidade e finalidades destas viagens. Em novo frente-a-frente com Queta Baldé, volto a questioná-lo mas a sua resposta mantém-se inalterável:
- Nosso alfero, eles pretendiam tabaco, cola e comida que não há no mato, trocando com o que produziam em alimentos e esteiras. Queriam informações sobre quem estava em Missirá, porque nunca acreditaram que dois pelotões africanos fossem diariamente a Mato de Cão, pensavam que havia ali uma companhia. Vinham mais civis que militares, aprendi nos Comandos que punham à frente dois apontadores de RPG2 e mais alguns com Kalash, depois vinham civis com os produtos para trocar. Fugiam do contacto connosco porque sabiam que íamos a Mato de Cão a qualquer hora do dia ou da noite e que emboscávamos à volta de Missirá e Finete. Quando souberam que havia patrulhamentos à volta do Geba, entre Boa Esperança e Aldeia do Cuor, rodearam-se de cautelas e esperavam horas e horas a ver se havia movimento do nosso lado. Mas tinham que desafiar este perigo para vir até Bambadinca para comprar e espiar. Não imaginaram que quando nosso alfero ia a Mato de Cão aproveitava para lhe conhecer os caminhos. Esta maneira de trabalhar no PAIGC via-a também em Gâmbara, na região de Quínara, quando o Spínola mandou a 2º Companhia de Comandos fazer um quartel no mato. Quando os soldados do PAIGC queriam saber coisas a nosso respeito, deixavam as armas num esconderijo, punham um pano à volta do tronco e entravam a rir no nosso quartel, dizendo que vinham fazer compras. Depois partiam e as ordens do Spínola é quem entrava e saía sem armas não devia ser preso.

Mando sentar os três cabos africanos e revelo-lhes os meus planos. Em breve, pode ser esta madrugada, partiremos para um patrulhamento ofensivo. Pretendo esperar a gente e Madina já perto do seu acampamento, na região de Sinchã Corubal. Se o reencontro tiver lugar de dia, estarei rodeado dos apontadores de dilagramas e dos bazuqueiros, quero fogo infernal para intimidar e depois fugimos. Se o reencontro tiver lugar de noite, faz-se terror e também fugimos imediatamente. Emboscaremos as vezes que for preciso, serão patrulhamentos em que levaremos o dobro das munições e obrigatoriamente rações de combate e dois a três cantis de água. Quem decide o fogo e a retirada sou eu.

Quero que aquelas instruções sejam transmitidas vezes sem conta mas só antes de sairmos de Missirá e até lá exijo a todos a boca fechada. Segue-se um período de perguntas. O Domingos pergunta-me se vai o enfermeiro e a resposta é afirmativa. O Benjamim sugere o rádio ao que respondo que é uma brutalidade andar com aquela tonelada às costas a correr de noite sabe-se lá com que lama nos pés. Todos dizem que estão esclarecidos, e aproveito a energia que me resta para escrever aerogramas para os meus entes queridos. O que se segue está registado num aerograma que enviei à Cristina, a 19 [de Maio de 1969].


Um homem fisicamente esgotado, que cai à cama e descobre... o Alexandre O'Neil



Levanto-me para pedir um leite achocolatado e esbarro na escuridão de uma vertigem, ainda guardei nos ouvidos o grito do Cherno quando me viu estatelar-me com estrondo na secretária de onde saltam o livro da contabilidade da cantina e a papelada das burocracias de Bambadinca. A única lembrança é a expressão do David Payne debruçado sobre o meu catre.
- Meu velho, estás mesmo fraquinho. O Adão apareceu-me aos gritos logo de manhã a dizer que devias estar morto pois não te sentia o pulso. Tens a tensão arterial muito baixa, chega de puxar pelo corpo até ao impossível. Para já, vais tomar café, ficas na horizontal e vais tomar vitaminas. Se essas aguilhoadas no coração aumentarem, falamos pela rádio e posso decidir a tua evacuação. Ganha juízo.

Ganhei e não ganhei. Estava, de facto, fisicamente tão derribado que o primeiro dia na cama foi um consolo, portei-me como se estivesse num hotel de luxo. O Ruy Cinatti tinha enviado a obra do Alexandre O'Neill intitulada No Reino da Dinamarca, coligindo toda a sua obra poética entre 1951 e 65. Assim que a cabeça deixou de andar à roda, atirei-me ao encantamento poético deste recém descoberto O'Neill. Os primeiros livros deixaram-me impassível. A partir de 62, o caso fiou mais fino. Logo o "Auto-retrato" no livro de 1962, coisa demasiado nova a aguar-me a vontade de inserir-me neste turbilhão linguístico:

"O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdinhosa e não cicratizada..."

E vou por aí fora, deslumbrado pela lufada de ar fresco. Por exemplo, o poema "Os Atacadores":

A noiva já e noiva, a noiva já na igreja
e tu não encontras os atacadores!

Já viste na caixa dos sobejos, na mãos dos bocejos?
Já viste na caixa da cómoda?
Já viste nas pregas da imaginação?

Convém-te não encontrar os atacadores?

Há noivas que esperam até murcharem as flores,
noivas de pé, muito brancas e já a fazer beicinho...

Procura... procura sempre, pobrezinho!...
Procura mas não encontres os
atacadores...

E chegamos à poesia de 1965, "Portugal":

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moínho abraços com vento
testarudo, mas embolado, e afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal, o manso boi coloquial,
o rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos...

O'Neill vem juntar-se a outros contemporâneos do meu culto, ao Herberto Hélder e ao Cesariny. Mais uma vez obrigado, Ruy!


Capa do romance policial, A Raposa Que Ri, da autoria de Frank Gruber.

Foto: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Ao segundo dia, a cabeça anda agitada, o Casanova entra e sai, não páro de o chamar, quero saber se Missirá está no mesmo sítio e a vida prossegue em espiral. Recebo dois soldados recém-chegados, um que se chama Sadjo Baldé, nome idêntico àquele que morreu desfeito por uma morteirada em 19 de Março e Queba Baldé, que vem de Badora. O Pires lê-me o correio que vem de Bissau onde fico a saber que o soldado Jalique Baldé, rejeitado pela tropa especial, foi colocado em Missirá, onde chegará em breve. Recebo o régulo, tomamos chá juntos, e dou comigo a aprovar a ideia de se fazer uma construção protectora para o túmulo de seu pai, o régulo Bacari Soncó.

Leio policiais, um divertídissimo Frank Gruber, A Raposa que ri, mais uma história hilariante envolvendo Johnny Fletcher e Sam Cragg, um intelectual e outro musculado que andam de feira em feira a vender um livreco sobre as artes de ter um corpo de Sansão... inevitavelmente, há crimes, a dupla corre o risco de ser incriminada por homicídio e a super inteligência de Fletcher leva a descobrir um velho mistério que é o desaparecimento de Chester Erb, o filho do multimilionário que vai reaparecer no congresso dos criadores de gado, em Cedar City, onde se passam todas estas façanhas.

Ao terceiro dia arrebito e dou a saber que irei fazer emboscada nocturna. E, no dia seguinte, aviso que irei a Mato de Cão. Começou o tempo dos patrulhamentos ofensivos. Um comboio de navios passou à hora aprazada, pelas 11 da manhã, saúdo-os no pontão do ancoradouro e dou instruções ao picador Quebá Soncó:
- Subimos agora o palmeiral de Mato de Cão e vamos ver a velha picada que leva a Sinchã Corubal [, na margem esquerda do Rio Ganturandim, afluente do Rio Geba]. Se descobrirmos um trilho batido, avise-me imediatamente pois não quero que ninguém deixe marcas perto. Se eles descobrem que nós já sabemos o caminho, temos que recomeçar tudo de novo.


Emboscados na bolanha de Sinchã Corubal, a sudeste de Madina


Felizmente que está de chuva, a progressão é lenta porque o capim fere e entrava o passo. Não há sinal de vida, o trilho está mesmo abandonado. Entramos pela orla do palmeiral de Sinchã Corubal, uma verdadeira boca de serpente e subimos como se fôssemos em direcção a Madina. Nada, quem manda ali é a Natureza, as lianas, velhos campos de cultura abandonados, águas estagnadas. Cibo Indjai conversa comigo:
-Vês alfero, as aves piam, não há gente, passou ali gazela, ninguém vive aqui, ninguém passa por aqui.

Em frente a Cabuca, descemos lentamente como se fôssemos Iaricunda, e Quebá Soncó mostra o alívio no rosto, como se tivessemos escapado da catástrofe, ele teme que eu avance de rompante com mais 30 homens e desafie a céu aberto um bigrupo... É na descida à volta do rio de Ganturandim que subitamente Quebá levanta a pica a fazer-me sinal. Fui ver. Era um trilho bem marcado por sandálias de plástico marcadas na lama humedecida. Flanqueando à distância o trilho fomos vendo até aonde ele descia. Olhando a carta, a minha velha carta que se vai desfazendo de tanto manuseio, embora suporte com o desgaste mesmo metida num invólucro de plástico, reparo que a gente de Madina/Belel vai pela velha picada , ou muito perto até estrada de S. Belchior. Seguindo o seu rasto, vamos ver que a picada atravessa a bolanha do Ganturandim e chega ao Geba. As pegadas mais recentes vão em direcção a Madina. Decido que hoje não vale a pena esperar. Amanhã, o barco passa cerca do meio dia, então sim teremos emboscada em Sinchã Corubal e ficaremos lá nem que sejam 48 horas. E assim foi.

Os batelões com material da engenharia e dois barcos civis passam à hora certa, é aqui que acaba o patrulhamento diário e começa o propósito de me reencontrar com Corca Só e agradecer-lhe a cartinha amável que me deixou a ameaçar-me de morte.

São 17 horas de 27 de Maio quando, depois de subirmos a bolanha de Ganturandim estamos posicionados do outro lado da bolanha de Sinchã Corubal. O lusco fusco anuncia-se num céu que já de si tem estado plúmbeo. O que recordo desse dia passo a escrever. Estamos dentro do trilho de Madina, tenho Tomani Sanhá e Mamadu Djau de pé com as bazucas engatilhadas; Cherno Suane tira cargas do morteiro 60 a apalpa o colar de granadas que traz do pescoço ao peito; Queta Baldé examina as fitas da HK21; Mamadu Camará prime os cartuchos e olha com orgulho os seus dez carregadores. E as trevas cobrem totalmente a força emboscada, estamos entregues aos acasos do destino.

A noite vai alta, ouvem-se pequenos ruídos da comida e do líquido a correr dos cantis para os nossos corpos. De vez em quando, um ruído longínquo para lá do Xime, um piar de uma ave, os estalos de matéria viva no arvoredo. As horas passam, é quando temo que a perigosa descontracção arrefeça a vigilância. É nisto que Mamadu Djau com a sua mão direita feita garra me traz à vida agarrando-se ao meu ombro e ciciando:
-Alfero, oiço gente a entrar neste mato.


E de repente, Goya e os fuzilamentos do 3 de Maio

Faço passar a palavra de que sou eu o primeiro a disparar. Um restolhar leve transforma-se num passo cadenciado e como se tivesse aberto uma porta na floresta vários vultos recortam-se na orla tenuemente iluminada pela lua. Os meus nervos resistem, deixo aquela passada toda avançar resoluta, sem suspeitar que a 100 metros está uma zona de morte. De 100 metros passa-se a 50, é mais de uma dezena o número de vultos que consigo distinguir. E no silêncio absoluto daquela mata, levanto-me e desfecho dois carregadores com a garganta seca e o olhar fixo. O fogo brutal das bazucas, dilagramas e morteiro fazem o resto.

Ouvem-se gritos de surpresa, levantam-se braços e durante anos, quando rememorava a noite de Sinchã Corubal, eu pensava sempre no quadro de Goya O massacre de 3 de Maio, não me perguntem porquê, não vi nenhum olhar aterrado, só ouvi o clamor dos gritos aterrorizados pela surpresa, a fuga entre o estampido que flagelava a noite, não sei se há mortos nem feridos, nós só viemos aqui para dizer a Madina que circulamos por onde queremos, que no quartel de Missirá não se treme de medo, somos caçadores e não vamos só a Mato de Cão.

São minutos que demoram horas, e depois do caudal de fogo e da incapacidade de resposta, vendo que o colar de granadas de Cherno está reduzida a quase nada, lanço um grito medonho e assinalo a retirada. O meu maior espanto é como é que os nossos pés voam no patinhado do próprio trilho, sem cuidar sequer na hipótese de um reencontro com um grupo que viesse dos Nhabijões para Madina...

Em menos de uma hora estávamos na estrada, em minutos conferimos o grupo só me lembro dos rostos perlados de suor, reflectido pelo luar. E em passo estugado, por vezes a correr, de Saliquinhé chegámos a Gambaná, daqui até à curva de Canturé, depois dez minutos a recuperar energias, nova correria até à outra curva de Canturé, daqui a Gã Gémeos, depois Sansão e na porta de armas de Missirá todos os soldados sem excepção, o régulo, o clã Soncó e o clã Mané aguardam-nos com a ansiedade estampada. Abraço Malã e digo-lhe:
-Correu tudo bem, vamos dormir que amanhã há muita coisa para fazer.

Há sorrisos, contam-se histórias, atrevo-me a perguntar ao Barbosa o que se passa com a boina verde...Foi muita emoção, peço a todos que não se esqueçam que a madrugada está a chegar ao fim. Não voltaremos a emboscar desta maneira, e enquanto se ouve o troar dos morteiros em Madina, sabe-se lá se à nossa procura, sabe-se lá a lembrar-nos o seu poderio dentro daquela floresta, fomos descansar um pouco. Eu não acredito que aquela emboscada aconteceu, não me interessa a contabilidade dos mortos e feridos, a mensagem para dentro de Madina chegou ao destinatário. Retiro a farda encharcada e só recordo, antes de cair de borco na cama, uma pergunta do Cherno se eu queria a luz acessa para ler...

Vou demorar semanas a dimensionar o nosso feito. Porque o galope dos acontecimentos vai alterar tudo logo no dia seguinte. A 28 de Maio, no sector L1 ganhámos consciência que o PAIGC estava forte, suficientemente forte para alterar as regras do jogo: Bambadinca vai sofrer um enorme susto, de Junho em diante não passaremos sem morteiradas sobre Missirá. Entretanto, prossigo alheio a outros perigos: a tropa está exausta, o Casanova adoece, este ritmo de guerra avassala os ânimos, no fundo este ritmo vertiginoso está a ferir as nossas consciências, a queimar os corpos. Pagarei bem caro esta falta de atenção, tanto em Missirá como em Finete.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 11 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1748: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (45): A visita do Coronel, o Grande Inquiridor