sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8686: Notas de leitura (266): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
O António Tomás não deixará os leitores mais exigentes desapontados. A equidistância joga a favor dele, mais o olhar do antropólogo, com aquela sábia combinação de que o homem influi no meio e este transforma-o, adapta-o, gera novas atitudes, redesenha as mentalidades. Depois, como cientista, entra sem preconceitos não nos santuários de guerrilha mas nos santuários das conversas inacabadas ou pensamentos inconfessados. É mais fácil perceber o que sucedeu na Guiné depois da independência lendo Tomás. Por isso vale a pena estica a recensão até dois momentos fulcrais da vida do PAIGC/Cabral: rumo à independência e o assassínio do líder. Por fim, compete ao leitor ajuizar se é possível aos guineenses, sobretudo a estes, continuar a usar Cabral como o seu pai fundador ou se a descontinuidade em que se vive depois da independência não é um doloroso equívoco alimentado de quimeras e um certo tipo de messianismo.

Um abraço do
Mário


O fazedor de utopias, uma biografia de Amílcar Cabral (2)

Beja Santos

“O Fazedor de Utopias”, de António Tomás (Tinta da China, 2ª edição, 2008) é um livro singular que nos proporciona um antropólogo jovem, angolano, o mesmo é dizer que não necessita de se ater a mitos ou compromissos de índole política com o motivo de estudo e a hagiografia da luta de libertação. O Cabral que ele aqui estuda é um ser humano metido no espaço e no tempo. Tomás liberta a realidade do mito, concentra-se na formação desse jovem cabo-verdiano que aderiu em Lisboa à negritude e depois à africanidade. É um líder que conquista o poder em todas as vertentes: na estratégia política e militar; nos apoios diplomáticos que irá transformar, nos últimos anos de vida, numa confiança tal dos patronos da URSS que estes lhe oferecem armas temíveis que desequilibraram em definitivo o que durante anos se chamou “impasse militar”.

É um Amílcar Cabral que conhece o marxismo mas que sabia que a chave da mobilização não residia nas grandes teorias mas em captar o coração e a razão dos militantes com propostas de resolução dos problemas quotidianos. Fundou uma escola-piloto em Conacri, acompanha diariamente a preparação dos jovens. O modo de fazer a guerra de guerrilhas desobedeceu à lógica do “foco”, tão caro a Guevara: a subversão fez-se no terreno, traduziu-se em sabotagem e liquidação de meios afectos à estrutura colonial: os belgas que exploravam a bauxite no Boé partiram logo; a Sociedade Comercial Ultramarina fechou as portas; a Casa Gouveia abandonou muitos negócios. Cabral não escondeu nunca as suas simpatias pelo maoismo: “Foi a experiência chinesa que serviu de base para a formação do pensamento militar de Amílcar Cabral. Por um lado, teve a oportunidade de se inteirar sobre a teoria chinesa em 1960, aquando da sua primeira viagem ao país. Por outro, foi na Academia Militar de Nanquim que se formaram os primeiros guerrilheiros. A estratégia militar do PAIGC estava impregnada de maoismo. Em 1970, a entrevista à revista Tricontinental, respondendo a uma pergunta sobre a estratégia do seu partido, afirmou que não havia muito que inventar em matéria de insurreições militares, no entanto tinham reproduzido os princípios delineados por Mao Tsé-Tung”.

A guerrilha explorou ao limite da imaginação a complexa rede ideográfica, os obstáculos do tarrafo e a visibilidade que oferecem as lalas na aproximação do efectivo militar que procura o factor surpresa e dificilmente o pode obter. O guineense viveu sempre em guerra, o conflito étnico é permanente, tal como os ressentimentos são constantes, do mandinga contra o fula, do balanta contra a entidade colonial que lhe impõe um chefe alheio à sua etnia. O guineense não conheceu o trabalho escravo como em Angola e Moçambique, a denominação colonial baseava-se essencialmente no preço fixo, não foi a posse de terra que motivou a adesão à guerrilha foi o chamamento à independência com a presença das tropas guerrilheiras em quadrícula. No terreno, ao longo da guerra, deu-se uma alteração na componente militar, os cabo-verdianos foram sendo responsabilizados de actividades mais sofisticadas, da mais variada índole, a luta no terreno foi praticamente entregue aos guineenses. Ciente que esse proletariado pequeno-burguês que aderiu à guerrilha trazia um conhecimento das práticas coloniais, Cabral referiu-se-lhes duramente como teoria do suicídio, ou seja, uma forma de renúncia às estruturas que fundamentam a pequena burguesia como classe. É bem curioso como, após o colapso do pensamento de Cabral na Guiné-Bissau, os teóricos deploram a posteriori que não tenha havido essa renúncia dos quadros que foram tentados pela vida de Bissau e que mergulharam na corrupção e na indiferença pelos problemas populares.

A questão cabo-verdiana é um dos focos de atenção de António Tomás. Cabral que a mobilização em Cabo Verde não poderia ter as mesmas motivações que na Guiné. De um modo geral, os cabo-verdianos não se consideravam colonizados. Acresce que durante décadas o arquipélago viveu a meio caminho para o estatuto de região adjacente, como a Madeira e os Açores. Com ingenuidade, Cabral supunha que o conflito através de um desembarque era a solução desejável. Como se sabe, não houve desembarque de qualquer tipo, a subversão do PAIGC foi sempre mitigada e encontrou barreiras quase intransponíveis junto das classes cultas.

Decorrente do congresso de Cassacá, o PAIGC organizou-se como um Estado dentro da colónia, o PAIGC abriu as chamadas “zonas libertadas” a fazedores de opinião, desde jornalistas e cineastas até deputados e representantes políticos de diferentes tendências. Em próxima recensão aqui se falará de um livro a tal título elucidativo que é “Lutte armée en Afrique” e que tem a ver com a viagem que Gérard Chaliand fez à Guiné em 1966, na companhia de Cabral. A Rádio Libertação tornou-se o elo de ligação dos vários militantes do partido e a peça fundamental na campanha da propaganda. Com a chegada de Spínola, os eixos dessa propaganda do PAIGC tiveram que ser reposicionados, a contra-informação jogou forte sobre a pretensa unidade entre cabo-verdianos e guineenses. Tomás observa que ficam por responder como se processava a gestão e a localização dessas zonas libertadas. A partir da doutrina de Cassacá, o PAIGC abdicou da capacidade de defender pontos específicos no terreno com a excepção dos seus santuários: Morés, Oio, Mata do Fiofioli, por exemplo. Era impossível a permanência de tropas portuguesas em tais santuários. Criou-se uma grande flexibilidade para esses acampamentos/aquartelamentos com hospitais precários, escolas e armazéns. Sempre que necessário, depois do reconhecimento desses locais pelas tropas portuguesas, mudava de posição, sempre aproveitando a vantagem do terreno áspero à volta.

O consulado de Schulz, na óptica de Tomás, foi extremamente benéfico para a doutrina do PAIGC. Em Maio de 1964, Schulz prometera acabar com o “terrorismo” em menos de 6 meses. A solução que encontrou foi o recurso aos bombardeamentos com o esquecimento quase total da sedução social. Com a doutrina maleável do “bate e foge”, o PAIGC, em muitas zonas, foi confinando as tropas a duas ou três operações por ano e a diferentes patrulhas de reconhecimento à volta. A escolha de Spínola é uma tentativa de travar a progressão do PAIGC. Nessa altura, a Guiné já não tem qualquer importância económica para o Império português, a CUF suspendera as suas actividades. É facto que Spínola busca inicialmente trunfos militares mas equilibra essas actividades ofensivas com um leque amplo de medidas económicas e sociais que cativam uma boa parte das populações. Esta estratégia retirou populações à guerrilha, os campos ficaram melhor demarcados tudo quanto se encontrasse no mato era para capturar ou abater, fora do contexto do reordenamento. O descontentamento organizou-se no PAIGC, sobretudo ao nível dos estudantes do partido no estrangeiro. Depois veio a machadada da libertação de 92 presos do PAIGC, em 3 de Agosto de 1969.

Rafael Barbosa anuncia que será tão português como Spínola. O presidente fundador, uma das figuras mais complexas deste teatro africano, que se irá revelar um verdadeiro agente duplo, mergulha o PAIGC na confusão. Spínola ainda vai tentar a estratégia da infiltração no chão manjaco, em 20 de Abril de 1970 tal iniciativa acabará numa carnificina, um fechar de portas a qualquer tipo de diálogo.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 17 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8677: Notas de leitura (265): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Apesar do distanciamento de um escritor que nasceu no ano em que Cabral foi assassinado, mesmo assim ainda não vemos neste autor uma lógica de distanciamento que já devia haver.

Penso que só um guineense "fidjo de terra" escreverá um dia a verdadeira biografia de Amilcar e sua luta.

Só um guineense poderá um dia descrever o que é "um duplo nacionalismo" ou um "nacionalismo a dobrar". Ninguem senão os guineenses, tiveram essa oportunidade.

Para que seria um "desembarque" em Caboverde, se os Caboverdeanos já estavam em terra?

Antonio Tomás, passados tantos anos,já podia escalpelizar este "enorme" pormenor, do desembarque, e não abordá-lo superficialmente.



Este será um dos muitos pormenores porque Antonio Tomas não foi convidado a lançar o livro em Bissau.

Cherno Baldé disse...

"Por fim, compete ao leitor ajuizar se é possível aos guineenses, sobretudo a estes, continuar a usar Cabral como o seu pai fundador ou se a descontinuidade em que se vive depois da independência não é um doloroso equívoco alimentado de quimeras e um certo tipo de messianismo".

Caro Mario Beja Santos,

Gostaria muito de poder ler este livro do Antonio Tomas, nao obstante, acho que nao é da sua leitura que os Guineenses vao mudar o que quer que seja nos fundamentos da sua matriz politica, ideologica e/ou existencial.

O Amilcar Cabral, por mérito proprio que todos o reconhecem, ja é o fundador da nacionalidade Guineense e Cabo-Verdiana. Facto que nao se pode e nem se deve confundir com o curso seguido, posteriormente, por um ou outro país.

Cabral sempre se descreveu a si mesmo como um simples Africano que deu a sua modesta contribuicao para a dignificacao do Homem Africano, e podemos acrescentar, em particular, ao Homem Guineense e Cabo-Verdiano. Pese embora a incompreensao e peripecias de diversa ordem e origem que acompanharam a obra do Homem.

Que depois dele nao houve ninguém da sua dimensao é verdade verdadeira e, por isso ou por causa disso, todos nós perdemos um pouco, cada um a sua maneira:

Antes de ser Português ou Cabo-Verdiano ele já era Guineense (onde nasceu), para com cujos habitantes ele sempre nutriu um sentimento especial de reconhecimento e de gratidão, temperados no suor do sofrimento e de humilhacao a que estavam sujeitos.

Cabral fez tudo para unir os Africanos das ex-colonias e nao só, consciente que a uniao era a chave-mestra, primeiro para a sua libertacao e mais tarde para a construcao dos alicerces de uma relativa mas real independencia num mundo onde o imperialismo e a oligarguia financeira continuariam a dominar.

A terminar, queria fazer uma pergunta relacinonada com a sua introducao ao presente poste:

- Seria justo e sensato pedir que os Portugueses renunciassem ao D. Afonso Henriques do alto do seu pedestal feito de mil pedacos de mitos...quimeras e de messianismo, tudo por causa da actual governacao do país?

Cherno Baldé

Cherno Baldé disse...

Ao Mais Velho, Antonio Rosinha,

Gostaria de dizer que, certamente,
será bastante dificil que esta "verdadeira" biografia de Amilcar Cabral seja escrita por um Guineense.

Entre os Guineenses é conhecida uma frase, popularizada de algum tempo para cá em que se diz: "Guineensi ossa morti má i medi bardadi" ou seja, o Guineense nao tem medo da morte mas tem medo da verdade. Ou ainda, ele é corajoso na guerra mas cobarde na palavra.

É o tal medo que ja foi aqui retratado por um poste de Luis Graca.

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Cherno, nunca tive oportunidade de ouvir essa frase do "Não ter medo da morte mas tem medo da verdade".

É de uma lucidez enorme e que se aplica em qualquer parte do mundo, mas que na Guiné assenta que nem uma luva.

Mas sabemos que em Bissau pouco se escreve, mas oralmente não há lingua que fique calada. Mas como 31 de boca não faz fé em tribunal, ficam as coisas sempre por esclerecer e responsabilizar.

Cherno, mas nunca se escreveu tanto sobre qualquer dirigente dos movimentos do anti-colonialismo português, (Neto, Machel, Savimbi, Holden...e todos os divergentes destes, que na Guiné tambem houve FLING e outros), como se escreveu e vai continuar a escrever sobre Amilcar.

Tudo, porque todos os outros andaram a "reboque" de Amilcar e do esforço e sacrifício dos guineenses.

E, Cherno, se procurares em toda a internet, sobre todos os outros nem há discussões, mas sobre Amilcar vai continuar a escrever-se, mesmo que Angolanos e Moçambicanos não lhe creditem os méritos (ou deméritos) que neste blog lhe são atribuidos.

P.S. Cherno, temos na selecção portuguesa sub-20 um tal de SANA, preto uscuro, já telefonei ao Sana Jana se era primo, mas ele não conhece. Disse que há manga de Sanas cá, só em Alverca.