O Regresso dos Heróis*
Por
Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)
DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887
V - A VIAGEM
Olhei o cais e senti saudades. Saudades desta Guiné que para mim conta apenas como dia de ontem, da pequena cidade de Bissau, a quem o exército empresta vida e movimento, das bolanhas, dos pântanos e dos rios de águas turvas e insalubres.
Senti saudades dos amigos que, no cais, pensativos e tristonhos, ficaram a olhar o barco que se vai afastando no horizonte. E muitos deles bem que já mereciam o prémio do regresso.
Lembrei-me dos que tombaram em combate, vitimados por uma guerra cruel que lhes roubou o sangue e a vida. Uma guerra para onde os empurraram e que sem fé e convicção tiveram de fazer. Eles pagaram um tributo elevado à pátria e ao destino. Pagaram dando a vida... Pagaram dando o sangue.
E recordei-me dos que caíram vitimados por enfermidades contraídas nesta terra que já vou a perder de vista, por falta de uma assistência médica aceitável, ou de uma alimentação que lhes permitisse manter ou criar as forças suficientes para resistir às agruras da vida e às inúmeras doenças tropicais.
E lembrei-me dos que, doentes ou feridos em combate, regressaram antecipadamente à metrópole, em busca de repouso e tratamento.
E lembrei-me, também, com muita mágoa, da malvadez humana que vi e senti um pouco por todo o lado, em grande parte responsável por muito do sofrimento destes homens agora embarcados, e pelo desaparecimento, até, dos que a morte ceifou ingloriamente.
E lembrei-me, também, de um povo rude e generoso, junto de quem vivemos, a quem a tropa ajudou a minorar os efeitos da miséria e do atraso em que vive, mas povo que nos ajudou, também, às vezes com enorme sacrifício, a viver os nossos tristes dias.
Lembrei-me! É que todos nós, menos a população, fizemos, mas em sentido inverso, esta mesma viagem... E naqueles dias todos sonhávamos neste regresso a que alguns, a sorte determinou que não chegassem... Mas, o critério a que obedeceu essa escolha é algo que permanece inacessível ao alcance do nosso pensamento ridículo e limitado...
Ao entardecer o Sol pôs-se por entre nuvens e vapores, num ambiente pesado e quente, sem brilho e beleza que mereçam uma referência especial.
Guiné > Bissau > s/d > Ponte-cais, Bissau. Em primeiro, vê-se o monumento a Diogo Cão. Bilhete Postal, colecção "Guiné Portuguesa, 110". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).
Dia 26
Vi o Sol nascer, com um brilho maravilhoso a pratear as águas do oceano em toda a dimensão do horizonte.
O navio prossegue, mar além, muito lentamente, embalado em ondas de águas serenas, a sua viagem, que é também a nossa viagem. A bordo reina a boa disposição. Vamos todos a caminho do destino mais desejado de sempre. Há, no entanto, pessoal enjoado. Mas a esperança de chegar faz esquecer todos os pequenos sofrimentos e contratempos.
O que interessa é mesmo que o barco viaje muito depressa e ultrapasse este mar sem fim que nos separa de um destino cada vez mais próximo. É que agora todos acreditam mesmo que o tempo dos problemas e dos azares imprevistos chegou mesmo ao fim.
Dia 27
Pouco depois do meio-dia avistámos ao longe um barco a navegar na nossa direcção. Quando se aproximou verificámos que se tratava de um barco de guerra português.
Pelas treze horas, muito ao longe, começou a ver-se uma neblina bastante densa. Pouco depois, de entre essa névoa, começou a surgir a ilha do Sal, do arquipélago de Cabo Verde.
Era esta neblina que no tempo das descobertas indicava aos mareantes a proximidade das terras que descobriam.
Pelas três horas da tarde o barco fundeou em frente da ilha do Sal. Seguidamente, desembarcou um pequeno contingente de tropas, destinadas à guarnição local, e embarcou outro com destino à metrópole. O embarque e o desembarque decorreram em péssimas condições e com um mar bastante agitado. Aliás, quer o embarque quer o desembarque tiveram lugar em pleno oceano, já que o barco não tem condições de acostagem.
Pelas vinte e duas horas o Quanza levantou ferro e navegou para Norte, rumo ao mar português, ainda mar distante.
Ilha do Sal - Cabo Verde
Foto retirada do site Panoramio, com a devida vénia.Editada por Carlos Vinhal
Dia 28
O mar por estas paragens anda bastante agitado. Sopra continuamente um vento bastante frio que se dirige para sudeste. Pela manhã o sol prateou de novo tudo quanto é mar. Apesar do vento e da ondulação bastante forte, o barco baloiça relativamente pouco. Tem bastante estabilidade. À noite houve cinema. Exibiram alguns documentários sem interesse e depois passaram o filme “ Marinheiros em Terra.” Ao fim da primeira parte fui dormir. É uma doença antiga que tenho. Sempre que vou ao cinema dá-me sono e acabo por perder grande parte do espectáculo.
Dia 29
O mar parece estar bastante mais calmo. As vagas são menos alterosas e o vento mais suave. De manhã realizou-se um exercício de salvamento e abandono do barco em caso de necessidade. À noite houve de novo cinema.
Dia 30
De manhã o sol não apareceu. Densas e escuras nuvens cobriam tudo à nossa volta. Parece que vamos ter chuva durante a viagem. O mar, esse, continua calmo e o vento brando.
De tarde teve lugar um novo exercício de salvamento. Estes exercícios devem ter por finalidade manter a tropa ocupada.
Já vamos a mais de meio da viagem. Estamos a passar pela zona das ilhas Canárias. Pelas dez horas da noite o barco passou em frente de Santa Cruz de Tenerife. Viam-se perfeitamente ao longe as luzes da cidade.
Passaram o filme os “Jardins do Diabo”
Dia 31
Durante o dia vários barcos de passageiros, e também de carga, cruzaram-se com o nosso. Hoje tivemos um mar mesmo muito calmo. No horizonte quase se não descobre qualquer vestígio de espuma.
O oceano assemelha-se a um grande lago, grande até não ter fim, onde todos vamos, serenamente e alegremente navegando. É impressionante, magnífico, sempre grandioso, este quadro que a natureza nos deixa contemplar diariamente.
Comove-me, até ao mais íntimo de mim mesmo, esta grandeza que não termina, este mundo de luz e mistério perante o qual sinto mais presente a minha pequenez que também não tem fim.
MÊS DE FEVEREIRO
Dia 1
O barco baloiça mais alguma coisa e o vento e o ambiente são bastante mais frescos, mesmo frios. É Portugal que fica mais perto. É o frio do Inverno que já nos espera.
Cada barco que se cruza com o nosso é para nós motivo de distracção, mesmo uma novidade. Os nossos olhos perseguem no horizonte todos esses navios que se avistam, até que se percam na linha do horizonte. E são bastantes os barcos que durante o dia se cruzam com o nosso.
Ao mesmo tempo que é bela, a vida no mar é também cheia de isolamento e de abandono.
De qualquer modo, se a viagem, que está quase no fim, se prolongasse por mais uns dias, não seria grande o sacrifício que teríamos que suportar. É efectivamente maravilhoso viajar por este oceano, por este mar sem fim, quando isso tem lugar com algum conforto e em segurança. E quando há um tão grande grupo de pessoas que se conhecem a viajar, mal se pode falar de isolamento, ou mesmo de abandono.
Mas esta nossa viagem está mesmo a chegar ao fim. Mais umas horas, bem poucas, e já estaremos a navegar Tejo acima. Pelo mesmo Tejo que, já lá vão muitos meses, num soalheiro dia de Maio, nos viu partir, pesarosos, rumo a um futuro incerto e desconhecido, mas que foi, afinal, a estrada que, embora sinuosa, nos conduziu a este hoje, radiante e desde sempre tão desejado, que na altura era futuro incerto e hoje um presente bem palpável, que força nenhuma, por certo, irá arrastar das nossas mãos, ou do nosso destino.
A esperança de ontem, vaga e imprecisa, transformou-se em certeza, numa realidade que já ninguém admite perder.
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Notas de CV:
(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.
Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8679: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (4): O último azar
1 comentário:
Meu caro Domingues Gonçalves
Tenho lido os capítulos anteriores, do livro oferecido ao conhecimento geral, aqui, através do nosso Blogue, e tinha pensado comentar só no fim, mas, não posso deixar de comentar este capítulo, pela grandeza da sua expressão, em que recorda tudo e todos os que ficaram, os que partiram antes do tempo e os que consigo voltaram.
A forma como se expressa demonstra a sua inequívoca sensibilidade por tudo o que o rodeia, e isso é a forma mais humana de fazer sentir o vasto leque de situações e seus implicados, e é sobremaneira realçada por se tratar de uma situação de guerra, que pese embora, não foi o suficiente para o fazer alhear-se das realidades.
O regresso em si, toda a descrição da viagem, é espectacularmente retratada, dando-nos a sensação de também a fazer-mos.
Agradeço-lhe o registo das suas recordações e felicito-o por tão bem no-las descrever.
Os meus parabéns.
Um abraço fraterno da
Felismina Costa
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