terça-feira, 16 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8677: Notas de leitura (265): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Aqui temos uma surpresa, na esteira da tese de doutoramento de Julião Soares Sousa.

António Tomás é um antropólogo da nova geração, não está enredado em cumplicidades, não está sujeito a silêncios, pôde trabalhar na equidistância de quem é angolano e não precisa de vender teodiceias.

O que ele mais procura nesta biografia é o progenitor de uma lusofonia justificada como o espaço que transformou Portugal e as suas antigas colónias num multiculturalismo onde o espaço da língua portuguesa se tornou multimodo. Tem consciência que é na Guiné que mais fortemente se vive a desilusão das independências, fruto de procedimentos históricos e até propagandísticos. Como antropólogo, sabe que as entrevistas não são neutras, só permitem ver um prisma da verdade histórica.

São estes alguns dados fascinantes que me levam a sugerir a todos os confrades que tenham acesso directo às cerca de 300 páginas deste livro imprevisto, ousado e de uma transparência por vezes brutal.

Com um abraço do
Mário


O fazedor de utopias, uma biografia de Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

“O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral”, por António Tomás (Tinta da China, 2007) é um livro singularíssimo na já ampla biografia que abarca os estudos do PAIGC ou a personalidade do seu líder fundador.

António Tomás é angolano, nasceu em 1973 e é antropólogo, o que lhe acarreta enormes vantagens pelo distanciamento (não precisa de se esconder em sofisticados silêncios), pelo não comprometimento geracional (não necessita de cultivar cumplicidades ou de promover mitologias) e pelo olhar que o antropólogo político pode lançar, equacionando a causa de estudo com o ambiente, o tempo histórico da luta anticolonial e as ondas de choque em sucessão entre a vida e o desaparecimento desse fazedor de utopias, Cabral, é incontornável referência revolucionária africana dos anos 60 e 70.

O olhar do antropólogo exige por definição um olhar com inserção e depois apurar, com toda a secura possível, a multiplicidade de nexos, classificando-os sem linguagem encomiástica, derrubando ideias feitas ou desfazendo conceitos mantidos em santuário fechado.

É o que António Tomás faz neste estudo, lembrando-nos logo à cabeça que os cabo-verdianos foram a verdadeira casta colonizadora da Guiné, que foram os cabo-verdianos que ao lado de Teixeira Pinto, conduziram as guerras de pacificação da Guiné, assumiram a liderança de negócios, foram a tutela administrativa e os zeladores da lei colonial. Impuseram a sua língua franca, o crioulo, que, com o passar do tempo, ganhou identidade local.

Não vale a pena disfarçar estas realidades, foram os cabo-verdianos quem durante séculos estiveram à frente das guarnições militares, foram capatazes, notários, professores, executantes da ordem colonial. Assim se pode perceber a mentalidade de Juvenal Cabral e como ele teve até à morte um procedimento de apoio incondicional à política de Salazar, nunca escondendo a sua admiração por Teixeira Pinto. Como diz Tomás, Juvenal Cabral considerava Salazar um político providencial. Definido o contexto em que se formou o jovem Amílcar, o seu despertar intelectual decorreu dentro dos preceitos específicos da cultura cabo-verdiana, a mãe, Iva Pinhel Évora, é o seu referencial, ele não tem ilusões sobre os sacríficos da sua mãe para a formação que recebeu.

É esse olhar de antropólogo que é lançado sobre os anos de Lisboa, ele chega com duas bolsas exíguas que mal dão para pagar as despesas, dá explicações e torna-se um aluno brilhante no Instituto Superior de Agronomia. Temos aqui a vertente do jovem estudante ser confrontado com outro tipo de mentalidade, a do branco que encara o negro à luz da inferioridade, e daí a necessidade de se estabelecer o contexto do que ocorrera na sociedade portuguesa depois da aprovação do Acto Colonial, em 1930.

Cabral está em busca de identidade, os ventos do pan-africanismo começam a chegar a Lisboa, sabe-se que os norte-americanos irão combater os impérios coloniais. Cabral, como outros jovens africanos, acolhe-se ao ideal da negritude. Aos poucos, insere-se no movimento oposicionista ao salazarismo, mas sempre com discrição.

Conclui o estudo, faz o estágio no Alentejo em pedologia, a ciência que se dedica ao estudo dos solos. Depois decide-se a trabalhar na Guiné, ninguém sabe o que o motivou a esta decisão. Chega a Bissau em Setembro de 1952, vem como director-adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, cargo que irá acumular com a direcção da Granja Experimental de Pessubé. Enquanto faz o recenseamento da agrícola da Guiné, trava conhecimento com um grupo de naturais e cabo-verdianos.

Cabo-verdianos e guineenses vivem então em mundos jurídicos diferentes: os primeiros são “civilizados”, os segundos, na sua esmagadora maioria, “indígenas”. Ou seja, encontram-se em patamares diferentes de civilização. O seu relatório sobre o recenseamento agrícola é corajoso, faz sugestões para se corrigirem deficiências, chama a atenção para os perigos das monoculturas e recomenda a diversificação das produções.

António Tomás, como mais tarde Julião Soares Sousa, desmonta algumas peças da hagiografia, por exemplo de que o governador da Guiné, Melo Alvim, lhe recomenda que abandone a província, dadas as suas actividades clandestinas. A história foi outra: Cabral e a mulher estavam fisicamente debilitados, não obstante a PIDE já o tem sob mira. Trabalha em África, tem um nome profissional prestigiado, eclodem entretanto os movimentos nacionalistas em África. A Guiné-Conacri torna-se independente, é o ensejo para Cabral se preparar para a clandestinidade. Vindo de Angola, em 1959, ajuda a fundar o PAIGC, escreve integralmente os seus estatutos. Tomás, tal como Julião Soares Sousa, considera que a fundação do PAIGC em 1956 não tem fundamento. Sente-se inspirado pelos ideais da unidade africana, aliás em Angola contribui para a fundação do MPLA. Quem vai mobilizar os guineenses é Rafael Barbosa, ele será a locomotiva da subversão interior até ser preso, em 1962.

Cabral começa a clandestinidade em Paris, daqui prossegue a difusão dos seus ideais tanto no norte de África como em Londres. António Tomás chama a atenção para o documento que ele elabora em Londres e que será difundido também graças ao empenho do jornalista e escritor britânico Basil Davidson. “The Facts About Portugal’s African Colonies” é de facto a primeira denúncia sobre o colonialismo português.

A linguagem é panfletária, atinge rapidamente a opinião pública: 11 milhões de africanos viviam sob a dominação colonial portuguesa, o país mais atrasado e com a mais baixa taxa de escolaridade em toda a Europa. Fala no estatuto do indigenato e na exploração operada pelos grandes interesses das companhias. Como Tomás observa, Cabral é conhecedor das críticas dos próprios agentes coloniais, como escreve: “Nos dados referentes à questão laboral em Angola, Amílcar Cabral havia elaborado o relatório explosivo elaborado por Henrique Galvão e apresentado à Assembleia Nacional em 1947. O documento de Galvão, um autêntico embaraço para o regime, vinha na tradição de outros relatórios, mormente os elaborados por estrangeiros, sobre as leis laborais e o regime de semiescravidão a que estava reduzida grande parte das populações africanas. Esta foi a razão pela qual muitos africanos de colónias portugueses preferiram emigrar ilegalmente para outros sítios, como o Congo ou a Zâmbia. Em Angola, a mortalidade infantil rondava os 60 por cento, enquanto a geral estava fixada em 40 por cento”. O documento, curiosamente é difundido por algumas agências noticiosas internacionais, a principal empresa francesa dá-lhe eco.

Agindo sempre em nome da unidade africana, junta-se aos outros movimentos independentistas e ruma para Conacri. O que se vai passar depois, até deixar de ser olhado com desconfiança por Sekou Touré é matéria conhecida, mas deu trabalho derrubar o medo de que todo aquele armamento até podia servir para um golpe de Estado dentro do país; Cabral impõe-se como líder organizativo, ganha as primeiras batalhas diplomáticas, os primeiros quadros entram em formação. O “ano horrível” de 1961 marca a fuga de estudantes africanos, matéria-prima indispensável para o PAIGC e para o MPLA.

A observação de António Tomás sobre a organização social deste PAIGC pode ser útil para se compreender o que vem adiante: “Na cúpula dirigente estavam os cabo-verdianos, entre os funcionários coloniais recrutados por Amílcar Cabral e os jovens quadros vindos de Lisboa e de outros pontos da Europa; na base encontravam-se os guineenses, camponeses e analfabetos, agarrados às tradições e crenças populares; como estrato intermédio havia os jovens de Bissau, com pouca escolaridade, mas que aprenderiam a manejar a máquina militar do PAIGC, vindo a tornar-se os verdadeiros senhores da guerra”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro Beja Santos,

Estou plenamente de acordo com o A. Tomas sobre o papel preponderante dos Cabo-Verdianos tanto na colonizacao (penetracao) como na administracao da Guiné, incluindo a lideranca na fase da organizacao para a contestacao ao poder colonial branco instituido, mas parece ter estudado mal a parte da historia relativa tanto as guerras de pacificacao levadas a cabo pelo Cap. Teixeira Pinto (1912-1915) assim como a questao relativa as origens do crioulo falado na Guiné que ainda constitui objecto de discussao e de pesquisa em que alguns investigadores defendem a tese inversa.

Todavia, nao deixa de ser uma contribuicao importante para o conhecimento do contexto historico em que se desenrolaram os acontecimentos que mais tarde conduziram a emancipacao dos povos das ex-colonias Portuguesas.

Um grande abraco a todos.

Cherno Baldé

Luís Graça disse...

Um dos 10 princípios essenciais do nosso blogue (ou da política editorial do nosso blogue) é a "recusa da responsabilidade colectiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro"...

Isto quer dizer, por exemplo que temos de ter "tento na língua" quando aqui escrevemos coisas que são (ou podem ser considerados) "excessos de linguagem" (passe o eufemismo...) como, por exemplo, aquela que há dias li, neste espaço reservado a comentários, de alguém (leitor) que dizia aqui para outro comentador (membro, registado, da nossa Tabanca Grande) qualquer coisa como "se fosse eu, fuzilava-te"... (Felizmente que aqui ninguém fuzila ninguém!)...

Como "excesso de linguagem" é falarmos colectivamente dos "caboverdianos" ou de outros povos (os judeus, os muçulmanos, os cristãos, os alemães, os cubanos, os chineses, ...) e imputarmos-lhes "responsabilidades históricas"...

Este excerto da recensão do livro do António Tomás corre o risco de poder ser tomado com uma "generalização abusiva":

“(…) O olhar do antropólogo exige por definição um olhar com inserção e depois apurar, com toda a secura possível, a multiplicidade de nexos, classificando-os sem linguagem encomiástica, derrubando ideias feitas ou desfazendo conceitos mantidos em santuário fechado.

“É o que António Tomás faz neste estudo, lembrando-nos logo à cabeça que os cabo-verdianos foram a verdadeira casta colonizadora da Guiné, que foram os cabo-verdianos que ao lado de Teixeira Pinto, conduziram as guerras de pacificação da Guiné, assumiram a liderança de negócios, foram a tutela administrativa e os zeladores da lei colonial. Impuseram a sua língua franca, o crioulo, que, com o passar do tempo, ganhou identidade local.

“Não vale a pena disfarçar estas realidades, foram os cabo-verdianos quem durante séculos estiveram à frente das guarnições militares, foram capatazes, notários, professores, executantes da ordem colonial.” (…)

Gosto de Cabo Verde, tenho amigos caboverdianos, simpatizantes e não simpatizanates do PAIGC, tenho amigos portugueses de origem caboverdiana, tenho o meu pai que foi "expedicionário" em Cabo Verde (1941/43)... Não sei se eles são capazes de perceber a subtileza (ou a ausência dela) do autor do livro e do seu recensor... Eu confesso que fiquei com vontade de ler o livro (o que é diferente de ler a recensão).

Um antropólogo, um cientista social, não pode "partir" para a construção de uma biografia de um líder político africano, sem romper contra "as evidências de senso comum" ou até "os preconceitos" como essa de que os "caboverdianos" foram os "maus da fita" do colonialismo na Guiné...).

De férias, neste nosso "querido mês de Agosto"... Com um abraço ao incansável Mário por mais esta sugestão de leitura.

Lourinhã, Luís Graça

Antº Rosinha disse...

Nunca devemos generalizar, como diz Luis Graça.

Nem com Caboverdeanos, que foram imensamente divergentes uns com os outros, quanto à guerra colonial, nem com guineenses ou angolanos que entre eles ainda hoje se "deconhecem" e se estranham imenso uns aos outros.

Podemos generalizar mais facilmente quanto aos que viajaram no Cuanza, Uige, Principe Perfeito... etc.

Especificamente sobre Amilcar Cabral e os dirigentes do PAIGC e MPLA, e FRELIMO, é que se pode generalizar quanto à luta anti-colonial e emancipalista.

Só que continua a não aparecer alguem destes movimentos a historiar com a isenção possível, a vida e a eliminação dos respectivos "pais" fundadores.

Com a exposição dos acontecimentos internos dessas direcções, talvez se compreendesse porque a luta pela descolonização durou a "eternidade" de 13 anos, fora a guerra fraticida que se seguiu.

Embora já fosse fraticida, Amilcar era português como eu e Luis Cabral.

Torcato Mendonca disse...

O Mário continua na sua “cruzada”. Muitos livros importantes são assim conhecidos no Blogue. São recensões e, como tal, devem ser lidas. Por vezes a verdade dói. Por vezes a verdade não é coincidente com o nosso pensamento. Depois de ler os comentários do Cherno, do Luís Graça e do Rosinha. Faço uma pequena nota, quase nota de rodapé. Breve em assunto passível de análise aprofundada. Não o farei pois a (s) recensão (ões) a este livro continuará e, espero eu, escreverei então. Estou em tempo de chegada, arrumo tudo até as ideias.
Desde já negando-me a polémicas estéreis, tenho delas conhecimento ligeiro pois apago de imediato. Sou um adulto já sexagenário, respeito e exijo que me respeitem, tenho muitos afazeres, considero o pensamento livre e plural, respeito este espaço a que aderi de livre vontade e, logicamente, vejo-me obrigado a acatar as regras. Este estudo, este relato de utopias feito por um Angolano leva-me a outro. Dizia ele (Águalusa): - de quantas mentiras é feita a verdade? Leio agora um livro Viriato. Aí está o mito, o homem que atravessou o tempo sofrendo múltiplas modificações. Um Chefe da Guerra de guerrilha, Lusitano, mas não português ou espanhol. Tem sofrido as modificações seculares ao sabor das conveniências… Gosto deste”Fazedor de Utopias…”não tanto do biografado. Gosto mais do modo e de quem assim o biografa e de como fala do Colonialismo. Modos de ver e, em respeito, concordar ou não. Análise cuidada no futuro. Continuarei) AB T.

Anónimo disse...

Conheco o livro. Li a obra e tive na altura do seu lancamento, o previlegio de debater (em entrevista) ao autor (radicado por sinal nos US) alguns aspectos historicos e factuais menos "precisos" da obra.

O livro e preciso que se lhe diga,apoia-se em parte em entrevistas e depoimentos, por conseguinte de forma alguma imune a leituras e fazendo aqui minhas as palavras do Luis Graca,a "evidencias" do senso comum...

E neste "metier" quando se e refem das proprias fontes,o risco comporta a tentativa de se "desmontar" uma dita " verdade" atraves de uma outra... de forma alguma mais... "Verdade" !!!

Resumindo, em o Fazedor de Utopias",o autor de forma ousada aposta na desmistificaao de alguns dogmas e ditas "verdades" historicas ! Resta entretanto apurar se tera sido desta !

De qualquer forma,pela ousadia e coragem, uma obra de leitura obrigatoria !!!

Como nota de rodape, saliento o facto da obra em questao ter sido oficialmente lancado em Cabo Verde e de pessoalmente ter me empenhado ( com o aval do autor) para que o mesmo acontecesse tambem na "nossa" Guine. Infelizmente, esforcos nesse sentido esbarraram-se em obstaculos, nao chamados,por enquanto a este debate !

Que venham mais recensoes, MB !!

Nelson Herbert
USA