Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Pesquisar neste blogue
segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
Guiné 63/74 - P12550: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (3): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (2): Municípios de Covilhã a Linda-a-Velha
1. Terceira parte da série "Fábricas de Soldados", trabalho do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviado ao nosso Blogue em mensagem do dia 18 de Dezembro de 2013:
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 4 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12542: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (2): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (1): Municípios de Abrantes a Coimbra
Guiné 63/74 - P12549: Notas de leitura (550): "O Muro", por Afonso Valente Batista (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2013:
Queridos amigos,
Para mim, foi um dos acontecimentos literários de 2013.
Diferente de tudo mais e muitíssimo próximo da guerra em que forjámos a nossa camaradagem. Penso que ninguém foi tão longe a indignar-se contra a indiferença reservada aos combatentes. É um livro pícaro, sensual, emotivo, surpreende como estamos ali, ainda adolescentes e depois de cabelos brancos, a sonhar uma viagem para decifrar o que os fios da memória não nos oferecem.
Um livro que é dedicado “A todos quantos por lá andaram, e que de lá vieram, e de quem já nada sabemos porque vivemos os ignorados tempos que os tempos têm”.
Um abraço do
Mário
O Muro: Um livro formidável sobre a indiferença dos outros
Beja Santos
“O Muro”, por Afonso Valente Batista, Glaciar, 2013, é uma das grandes surpresas de um ano que não foi manifestamente fecundo em lançadas sobre África. O que impressiona neste livro é decorrer em Angola mas ter o sopro da universalidade, não há incómodo nenhum em nos revermos naquela viagem de barco, naqueles espantos quando fomos confrontados com os maciços florestais, aquela solidão dentro do arame farpado, as angústias das operações. Mas acima de tudo, este livro é um grito sobre a incompreensão, um apelo à dignificação da nossa memória e um convite soberbo a regressarmos para vermos o “muro” que ali construímos, talvez a metáfora do crescimento que mudou as nossas vidas.
Trata-se de uma arquitetura gramatical e de um engenho do léxico em que se mistura o coevo com o antigo, escrevem-se aerogramas para o futuro, há excessos presumivelmente barrocos para o jargão da caserna, de premeio sente-se latejar a solidariedade e o crescimento das conivências afetivas, as que se prolongam pela vida fora e as que a ocasião determina. Há loucos e há demências intratáveis. Há quem tenha esquecido o muro que os salvou da loucura, há quem organize uma viagem e vá visitar o muro, a última questão a decifrar… o livro deixa a viagem em denso nevoeiro, nunca se conhecerá o desfecho.
Primeiro, há o grito contra a incompreensão, a indiferença, o Cabo Costa que até andou pelos corredores do Miguel Bombarda e que acreditava que nada existia no muro para além do desperdício em que nos transformámos brada uma autêntica catilinária, assim:
“Ainda hoje, passados esses tantos anos que o tempo teve até aqui chegar, com os cabelos tão ralos e brancos, as artrites herdadas das noites de emboscadas com água até à alma, o verdadeiro manicómio dos medos e da solidão; ainda hoje, esbarramos com impotência de quem nada sabe ou quer saber o que aquilo foi, e, por isso, de nada nos valeu, nada nos deu, em nada nos compreendeu.
Para nós, sempre uma revolta. Essa revolta de não saber onde estamos bem, de querer porque já quisemos e não nos deixarem querer – a indiferença dos outros, os que não souberam entender os nossos silêncios é, foi e será a ausência de que mais dói – e choramos por dentro, para acalmar a solidão de luz fria de néon em que nos transformámos, acalmar esta vida de merda.
Chamo incompreensão, a esse desajuste com a história recente deste país que não soube viver culpas nem parir culpados”.
Segundo, há a marca indelével da viagem e há o pós-guerra, os próprios africanos que combateram ao lado dos portugueses vivem atolados na humilhação, amarfanhados, também eles podem dizer no mesmo coro:
“O buraco da memória é sempre fundo de cavar. Porque as recordações são a pá com que remexemos a memória, misturando-as com o lixo do sofrimento.
Naquele tempo em que se construiu o muro, vivia-se um estado de loucura coletiva, de alerta permanente, de excesso de lucidez, de ataque de cacimbagem, resultante, se calhar daquele lugre calor húmido que ia tomando conta de tudo: ossos, cartilagens, ansiedades (…)”. Porque durante a guerra esses africanos também puderam esclarecer esses soldados brancos que afiançavam vir defender Portugal, dizendo coisas assim:
“Nós somos gente já há muito tempo com os tempos cheios dos nossos antepassados que já andavam por este chão muito e muito antes de vocês cá chegarem e sempre aqui estivemos e não nos fomos embora porque esta é a nossa terra…”, é um texto declamatório estarrecedor, antológico.
Terceiro, há o cais, seguir-se-á viagem, a estupefação pelo encontro com a terra africana, a unidade militar marcha a caminho da guerra, são todos apresentados, um médico alcoólico, um carteirista, alguns matarruanos, todos vão ser identificados, porque há um cronista, de nome João, a ele competirá preparar o regresso, mais de 40 anos depois. A guerra em si aparece superficialmente documentada, o autor privilegia estados de alma, daí o livro cirandar do fim para o princípio, quando tudo parece caminhar vigorosamente para a viagem até ao muro, a obra interrompe-se, é emoção a que os leitores não têm direito a chegar. Por vezes, trocam-se azedas conversas entre os da tropa e os autóctones, a tropa bem procura praticar ação psicológica, cair no goto da população mas há sempre alguém que lembra que os colonos portugueses davam palmatoadas, usavam chicote, lançaram o fermento do ódio.
Quarto, enceta-se a viagem, é necessário reencontrar o muro, é preciso encontrar uma solução para este maldito labirinto em que mergulhamos:
“A guerra colonial, essa medonha espiral em que nos meteram e de que ainda não saímos, acaba, ainda agora, passado que foi tanto tempo, por não ter qualquer culpado. Não são culpados os que a inventaram e para lá nos mandaram. Não somos culpados nós, o que por lá andaram. Não são culpados aqueles que fomos defender. Não são culpados aqueles a quem fomos guerrear a sua terra. Ninguém é culpado. Ninguém.
Somos um país onde a culpa nunca existiu, onde nem culpados seremos ser. Somos um enredo onde a indiferença, a indulgência, a complacência, a desculpa e a misericórdia, em nome de um qualquer santo, ganha sempre à culpa. E um dia, se por acaso um culpado houver, é porque se distraiu ou porque é tão fraco e insignificante que até culpado pôde ser”.
Médico alcoólico, matarruanos, gente de expedientes e tantas outras figuras da galeria são convocados para depor sobre a finalidade daquela viagem até ao muro. A linguagem é eloquente, e ninguém está disposto a embarcar nessa nova aventura. João reencontra combatentes de ambos os lados, há lágrimas, mãos dadas, palavras embaralhadas, sofreguidões de dizer, sentires afogueados. Porque houve outras guerras a seguir à independência, voltou-se a perder, espalharam-se amarguras, de novo se separaram famílias, os que combateram estão mais pobres e os que vieram depois são hoje gente importante e com dinheiro. A viagem praticamente impossível inicia-se, mal a manhã nasceu. O autor diz que partiram como antigamente:
“Empoleirados num potente jipe, rumo ao Norte, à descoberta de um muro que por lá deixaram ia fazer 45 anos, contados dia-a-dia na memória de uma vida lembrada”.
Não sei se algum outro escrito sobre a guerra colonial foi tão longe aos labirintos da memória, aos gritos contra a indiferença pelo facto de se ter sido combatente de tal guerra. Uma obra singular e do melhor recorte literário.
Leitura especialmente indicada para quem queira conhecer os sentimentos de quem foi combatente em tal guerra.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Para mim, foi um dos acontecimentos literários de 2013.
Diferente de tudo mais e muitíssimo próximo da guerra em que forjámos a nossa camaradagem. Penso que ninguém foi tão longe a indignar-se contra a indiferença reservada aos combatentes. É um livro pícaro, sensual, emotivo, surpreende como estamos ali, ainda adolescentes e depois de cabelos brancos, a sonhar uma viagem para decifrar o que os fios da memória não nos oferecem.
Um livro que é dedicado “A todos quantos por lá andaram, e que de lá vieram, e de quem já nada sabemos porque vivemos os ignorados tempos que os tempos têm”.
Um abraço do
Mário
O Muro: Um livro formidável sobre a indiferença dos outros
Beja Santos
“O Muro”, por Afonso Valente Batista, Glaciar, 2013, é uma das grandes surpresas de um ano que não foi manifestamente fecundo em lançadas sobre África. O que impressiona neste livro é decorrer em Angola mas ter o sopro da universalidade, não há incómodo nenhum em nos revermos naquela viagem de barco, naqueles espantos quando fomos confrontados com os maciços florestais, aquela solidão dentro do arame farpado, as angústias das operações. Mas acima de tudo, este livro é um grito sobre a incompreensão, um apelo à dignificação da nossa memória e um convite soberbo a regressarmos para vermos o “muro” que ali construímos, talvez a metáfora do crescimento que mudou as nossas vidas.
Trata-se de uma arquitetura gramatical e de um engenho do léxico em que se mistura o coevo com o antigo, escrevem-se aerogramas para o futuro, há excessos presumivelmente barrocos para o jargão da caserna, de premeio sente-se latejar a solidariedade e o crescimento das conivências afetivas, as que se prolongam pela vida fora e as que a ocasião determina. Há loucos e há demências intratáveis. Há quem tenha esquecido o muro que os salvou da loucura, há quem organize uma viagem e vá visitar o muro, a última questão a decifrar… o livro deixa a viagem em denso nevoeiro, nunca se conhecerá o desfecho.
Primeiro, há o grito contra a incompreensão, a indiferença, o Cabo Costa que até andou pelos corredores do Miguel Bombarda e que acreditava que nada existia no muro para além do desperdício em que nos transformámos brada uma autêntica catilinária, assim:
“Ainda hoje, passados esses tantos anos que o tempo teve até aqui chegar, com os cabelos tão ralos e brancos, as artrites herdadas das noites de emboscadas com água até à alma, o verdadeiro manicómio dos medos e da solidão; ainda hoje, esbarramos com impotência de quem nada sabe ou quer saber o que aquilo foi, e, por isso, de nada nos valeu, nada nos deu, em nada nos compreendeu.
Para nós, sempre uma revolta. Essa revolta de não saber onde estamos bem, de querer porque já quisemos e não nos deixarem querer – a indiferença dos outros, os que não souberam entender os nossos silêncios é, foi e será a ausência de que mais dói – e choramos por dentro, para acalmar a solidão de luz fria de néon em que nos transformámos, acalmar esta vida de merda.
Chamo incompreensão, a esse desajuste com a história recente deste país que não soube viver culpas nem parir culpados”.
Segundo, há a marca indelével da viagem e há o pós-guerra, os próprios africanos que combateram ao lado dos portugueses vivem atolados na humilhação, amarfanhados, também eles podem dizer no mesmo coro:
“O buraco da memória é sempre fundo de cavar. Porque as recordações são a pá com que remexemos a memória, misturando-as com o lixo do sofrimento.
Naquele tempo em que se construiu o muro, vivia-se um estado de loucura coletiva, de alerta permanente, de excesso de lucidez, de ataque de cacimbagem, resultante, se calhar daquele lugre calor húmido que ia tomando conta de tudo: ossos, cartilagens, ansiedades (…)”. Porque durante a guerra esses africanos também puderam esclarecer esses soldados brancos que afiançavam vir defender Portugal, dizendo coisas assim:
“Nós somos gente já há muito tempo com os tempos cheios dos nossos antepassados que já andavam por este chão muito e muito antes de vocês cá chegarem e sempre aqui estivemos e não nos fomos embora porque esta é a nossa terra…”, é um texto declamatório estarrecedor, antológico.
Terceiro, há o cais, seguir-se-á viagem, a estupefação pelo encontro com a terra africana, a unidade militar marcha a caminho da guerra, são todos apresentados, um médico alcoólico, um carteirista, alguns matarruanos, todos vão ser identificados, porque há um cronista, de nome João, a ele competirá preparar o regresso, mais de 40 anos depois. A guerra em si aparece superficialmente documentada, o autor privilegia estados de alma, daí o livro cirandar do fim para o princípio, quando tudo parece caminhar vigorosamente para a viagem até ao muro, a obra interrompe-se, é emoção a que os leitores não têm direito a chegar. Por vezes, trocam-se azedas conversas entre os da tropa e os autóctones, a tropa bem procura praticar ação psicológica, cair no goto da população mas há sempre alguém que lembra que os colonos portugueses davam palmatoadas, usavam chicote, lançaram o fermento do ódio.
Quarto, enceta-se a viagem, é necessário reencontrar o muro, é preciso encontrar uma solução para este maldito labirinto em que mergulhamos:
“A guerra colonial, essa medonha espiral em que nos meteram e de que ainda não saímos, acaba, ainda agora, passado que foi tanto tempo, por não ter qualquer culpado. Não são culpados os que a inventaram e para lá nos mandaram. Não somos culpados nós, o que por lá andaram. Não são culpados aqueles que fomos defender. Não são culpados aqueles a quem fomos guerrear a sua terra. Ninguém é culpado. Ninguém.
Somos um país onde a culpa nunca existiu, onde nem culpados seremos ser. Somos um enredo onde a indiferença, a indulgência, a complacência, a desculpa e a misericórdia, em nome de um qualquer santo, ganha sempre à culpa. E um dia, se por acaso um culpado houver, é porque se distraiu ou porque é tão fraco e insignificante que até culpado pôde ser”.
Médico alcoólico, matarruanos, gente de expedientes e tantas outras figuras da galeria são convocados para depor sobre a finalidade daquela viagem até ao muro. A linguagem é eloquente, e ninguém está disposto a embarcar nessa nova aventura. João reencontra combatentes de ambos os lados, há lágrimas, mãos dadas, palavras embaralhadas, sofreguidões de dizer, sentires afogueados. Porque houve outras guerras a seguir à independência, voltou-se a perder, espalharam-se amarguras, de novo se separaram famílias, os que combateram estão mais pobres e os que vieram depois são hoje gente importante e com dinheiro. A viagem praticamente impossível inicia-se, mal a manhã nasceu. O autor diz que partiram como antigamente:
“Empoleirados num potente jipe, rumo ao Norte, à descoberta de um muro que por lá deixaram ia fazer 45 anos, contados dia-a-dia na memória de uma vida lembrada”.
Não sei se algum outro escrito sobre a guerra colonial foi tão longe aos labirintos da memória, aos gritos contra a indiferença pelo facto de se ter sido combatente de tal guerra. Uma obra singular e do melhor recorte literário.
Leitura especialmente indicada para quem queira conhecer os sentimentos de quem foi combatente em tal guerra.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P12548: Parabéns a você (674): Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53 (Guiné, 1970/72)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 5 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P12543: Parabéns a você (673): João Meneses, ex-2.º Ten FZE, DFE 21 (Guiné, 1972); Ricardo Figueiredo, ex-Fur Mil Art do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, ex-Sold Cond Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)
Nota do editor
Último poste da série de 5 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P12543: Parabéns a você (673): João Meneses, ex-2.º Ten FZE, DFE 21 (Guiné, 1972); Ricardo Figueiredo, ex-Fur Mil Art do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, ex-Sold Cond Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)
domingo, 5 de janeiro de 2014
Guiné 63/74 - P12547: (In)citações (59): Homenagem a Eusébio da Silva Ferreira, o "pantera negra" (Lourenço Marques, 1942 - Lisboa, 2014)
1. Excerto do poste de 5 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)
Cherno Baldé, aliás, dr. Cherno Baldé |
(...) O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?...
Ele trabalhava na caserna de um dos pelotões da companhia, uma construção em betão armado enterrada alguns metros debaixo do solo e onde se alojavam mais de 20 homens e que estava situada nos confins do aquartelamento. Nós, que éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor, mas muitos anos depois, quando me recoradava daqueles homens brancos metidos naquele buraco, mal conseguia imaginar o tamanho do sacrifício a que estavam sujeitos.
![]() |
Equipa de futebol de cinco, Fajonquito, já depois da independência. Foto de Cherno Baldé. |
Para além da irreverência e alma de desportistas natos, unia-nos o gosto da aventura e a frequência do quartel o nosso palco de actuação predilecto. Ao contrário dos outros rapazes da mesma idade, tínhamos a particularidade de andar sempre de calções em saia, sem ligações entre as pernas, a violencia da prática de futebol e a vagabundagem constante não permitiam tanto aprumo e tambem éramos daqueles que raramente voltavam a casa para o habitual banho da tarde e a troca de roupas, a água lamacenta da bolanha para nós ja era suficiente mesmo se pareciamos mais com porcos de mato com a lama branca da bolanha a cobrir a maior parte do corpo e os olhos cor de tijolo.
Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?
Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós, na verdade, esta fronteira racial nunca deixou de existir e de se manifestar no comportamento dos actores em cena, verificando-se uma espécie de invasão ou interpenetração de comportamentos estranhos, a cultura e educação tradicional de parte a parte e em especial dentro das nossas moranças que a insolência e incontinência dos soldados no baixo do escalão da hierarquia militar, e não só, agudizavam cada dia mais.
![]() |
Equipa de futebol da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). Foto de Arlindo Roda |
e já existe no ar uma certa africanizaçao dos espíritos e começa a apontar uma certa confrontação atiçada pelos desafios de futebol entre africanos (que ou são tropas auxiliares em preparação ou serviçais no quartel) contra soldados portugueses, que sempre terminavam em brigas, sem consequencias graves, de resto.
Nós ja tínhamos os nossos atletas preferidos entre os africanos, claro, mesmo se a vantagem era quase sempre do lado dos brancos mais fortes e exímios em jogadas rápidas e golpes traiçoeiros de bola parada. Quando havia briga, os brancos venciam na mesma. Não eram soldados preparados para a guerra?... Os africanos tomavam a sua desforra durante os bailes da noite, com ritmos de Angola e do Congo com a luz de vácuo meio apagada para apalpar, na escuridão, os corpos redondos e suados das bajudas nas coladeiras. (...)
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12459: (In)citações (58): Estradas da região de Tombali, Guiné-Bissau, 40 anos depois da independência: o espelho da Nação (AD - Acção para o Desenvolvimento)
Guiné 63/74 - P12546: Facebook...ando (32): "Silêncio de Pedra", um texto de Paulo Costa, ilustrado pelo fotógrafo Rui Pires
1. Incitado pela mensagem do dia 3 de Janeiro de 2014 do meu amigo Fernando Jorge Rocha dos Santos, ex-Alf Mil de Eng.ª que fez a sua comissão de serviço em Angola, aqui fica o texto e a foto que ele me mandou e que encontrei publicados, no Facebook, na página "Aldeias de Portugal":
SILÊNCIO DE PEDRA
As tuas mãos são as que ainda sinto.
Nem queria acreditar, o teu olhar, quadro que jamais havia sido pintado.
Recordo, na saudade, o começo do nosso amor, lá atrás, como se fosse ontem.
Vida madrasta, aquela que te levou à guerra, aquela que a guerra me roubou, tu.
Dizias que nem sabias ao que ias, quanto mais para onde ias.
Hoje ninguém fala, apenas preferem divagar sobre as boas relações com África.
Pobres coitados, aos milhares, jovens, partiram para o Ultramar, muitos para nunca mais voltar.
Para morrer ou matar, por uma bandeira que um dia nos havia de abandonar.
Odeio armas, como odeio!
Malditas guerras, malditos homens, os que as criam.
Se soubessem o tamanho do amor que um dia sentimos, muitos suicidavam-se.
Recordo o beijo que me deste, na face, antes de partires.
Prometeste-me que regressavas, para pedires a minha mão aos meus pais, para casar.
Coitadinho, foste, para morrer ou matar.
Não sei quantos mataste, mas sei que morreste.
Sei!? Talvez não saiba, pois ainda vives dentro de mim, assim, numa forma abundante.
Pergunto-me, tantas vezes, quem sou eu?
Não saberei ao certo, mas sei que sou o que sempre desejei ser: tua.
E cá continuo, sempre, a amar-te eternamente, só, abraçada a este silêncio de pedra.
Texto: Paulo Costa
Foto: Rui Pires
____________
Publicado aqui com os devidos créditos aos autores do texto e foto, a partir da página Aldeias de Portugal no Facebook
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12517: Facebook...ando (31): Fotos de armamento do PAIGC apreendido, em 1973, por forças do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74) (Angelo Gago, ex-sold cond auto, residente em São Brás de Alportel)
SILÊNCIO DE PEDRA
As tuas mãos são as que ainda sinto.
Nem queria acreditar, o teu olhar, quadro que jamais havia sido pintado.
Recordo, na saudade, o começo do nosso amor, lá atrás, como se fosse ontem.
Vida madrasta, aquela que te levou à guerra, aquela que a guerra me roubou, tu.
Dizias que nem sabias ao que ias, quanto mais para onde ias.
Hoje ninguém fala, apenas preferem divagar sobre as boas relações com África.
Pobres coitados, aos milhares, jovens, partiram para o Ultramar, muitos para nunca mais voltar.
Para morrer ou matar, por uma bandeira que um dia nos havia de abandonar.
Odeio armas, como odeio!
Malditas guerras, malditos homens, os que as criam.
Se soubessem o tamanho do amor que um dia sentimos, muitos suicidavam-se.
Recordo o beijo que me deste, na face, antes de partires.
Prometeste-me que regressavas, para pedires a minha mão aos meus pais, para casar.
Coitadinho, foste, para morrer ou matar.
Não sei quantos mataste, mas sei que morreste.
Sei!? Talvez não saiba, pois ainda vives dentro de mim, assim, numa forma abundante.
Pergunto-me, tantas vezes, quem sou eu?
Não saberei ao certo, mas sei que sou o que sempre desejei ser: tua.
E cá continuo, sempre, a amar-te eternamente, só, abraçada a este silêncio de pedra.
Texto: Paulo Costa
Foto: Rui Pires
____________
Publicado aqui com os devidos créditos aos autores do texto e foto, a partir da página Aldeias de Portugal no Facebook
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12517: Facebook...ando (31): Fotos de armamento do PAIGC apreendido, em 1973, por forças do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74) (Angelo Gago, ex-sold cond auto, residente em São Brás de Alportel)
Guiné 63/74 - P12545: O segredo de... (14): António Graça de Abreu (,ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74): Também fiz o curso de Minas e Armadilhas, em Tancos, ainda em 1971... E até sonhei um dia em ser... bombista!
1. Comentário, com data de ontem, de António Graça de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74, ] ao poste P12540 (*):
Encartado, licenciado, nunca mais esqueço uma barras de trotil, amarelinhas, cilíndricas que roubei e escondi na cozinha da minha casa, em Benfica, com uns detonadores e cordão lento guardados no outro lado, na sala, à espera de fazer umas bombas para ajudar a rebentar com o regime.
Santa e perigosa ingenuidade! Depois do 25 de Abril, o trotil, os detonadores, o cordão lento foram metidos em dois sacos diferentes, com umas pedras de lastro, e lançados por mim para o fundo das águas do Tejo, num barco, a meio do rio, na carreira Belém/Trafaria.
Nunca contei isto em parte nenhuma. Vai agora. As coisas que um homem faz, ou não faz, na vida!... Abraço, António Graça de Abreu
2. Comentário de L.G.:
Vai fazer, em abril próximo, quatro anos que esta série (***) tem estado parada... Publicaram-se até então 13 postes, com pequenos/grandes segredos que camaradas nossos quiseram partilhar connosco... Um deles, o Luís Faria (1948-2013) infelizmente já não está entre nós... Ontem por acaso, tropecei neste pequeno/grande segredo que o nosso camarada António Graça de Abreu quis divulgar... "Nunca contei isto em parte nenhuma. Vai agora. As coisas que um homem faz, ou não faz, na vida!"... O propósito deste série é esse mesmo: ser uma espécie de confessionário (ou de livro aberto) onde se vem, em primeira mão, revelar "coisas" do nosso tempo de vida militar que, até então, por uma razão ou outra, guardámos só para nós...
É esperado que os nossos leitores não façam nenhum comentário crítico, e nomeadamente condenatório, em relação às "revelações" aqui feitas, mesmo que esses factos pudessem eventualmente, à luz da época, constituir matéria do foro do direito penal, militar ou civil, infringir a disciplina ou ética militar, etc. ...Saibamos ouvir sem julgar.
_____________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 4 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12540: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (5): Sou do famigerado XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 e terminado 17 de Setembro de 1966, na Escola Prática de Engenharia (EPE), em Tancos
(**) Vd. poste de 16 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10809: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (20): Notícias da minha antiga companhia, a CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, e do meu substituto, o alf mil Potra
(...) Canchungo, 18 de Setembro de 1972
Entrei para a tropa em Outubro de 1970. Durante seis meses em Mafra, com a recruta e especialidade, fizeram de mim um pequeno aspirante a oficial miliciano atirador de Infantaria. Fui colocado no Batalhão de Caçadores 5, em Lisboa, onde dei instrução a soldados durante um curto espaço de tempo.
Segui para Tancos, para a Escola Prática de Engenharia e em dois meses tirei um curso de Minas e Armadilhas. Fui mobilizado para a Guiné e colocado no Regimento de Infantaria 1 na Amadora, para formar Batalhão, exactamente este Batalhão 3863 que veio para o chão manjaco. A minha companhia 3460 foi parar ao Cacheu, mas eu não parti para a Guiné juntamente com estes homens.
Uma operação a uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito, resultado de uma cena de pancadaria em que fui o personagem principal quando tinha dezassete anos, devidamente explorada, possibilitou-me a passagem aos serviços auxiliares. Fui reclassificado com a especialidade de Secretariado e desmobilizado. (...)
(**) Vd. poste de 16 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10809: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (20): Notícias da minha antiga companhia, a CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, e do meu substituto, o alf mil Potra
(...) Canchungo, 18 de Setembro de 1972
Entrei para a tropa em Outubro de 1970. Durante seis meses em Mafra, com a recruta e especialidade, fizeram de mim um pequeno aspirante a oficial miliciano atirador de Infantaria. Fui colocado no Batalhão de Caçadores 5, em Lisboa, onde dei instrução a soldados durante um curto espaço de tempo.
Segui para Tancos, para a Escola Prática de Engenharia e em dois meses tirei um curso de Minas e Armadilhas. Fui mobilizado para a Guiné e colocado no Regimento de Infantaria 1 na Amadora, para formar Batalhão, exactamente este Batalhão 3863 que veio para o chão manjaco. A minha companhia 3460 foi parar ao Cacheu, mas eu não parti para a Guiné juntamente com estes homens.
Uma operação a uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito, resultado de uma cena de pancadaria em que fui o personagem principal quando tinha dezassete anos, devidamente explorada, possibilitou-me a passagem aos serviços auxiliares. Fui reclassificado com a especialidade de Secretariado e desmobilizado. (...)
(***) Vd. postes anteriores desta série O Segredo de...
30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações
(..) Estando com o meu grupo de comandos no Xitole, sensivelmente em meados de 1965, fomos fazer uma patrulha de reconhecimento pois o inimigo há muito mostrava sinais de intensificar a sua actividade na região. Porém, as informações eram escassas. Desconhecia-se com precisão por onde andavam os guerrilheiros e as possíveis localizações dos acampamentos. Por tal facto, foi-nos dada a missão de efectuar um reconhecimento ofensivo, tentando localizar o destruir o inimigo. (...)
30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN
(...) Tinha acabado de receber notícias trágicas acerca da morte dos meus dois amigos de infância.Isolava-me e chorava e este sentimento de perda prolongou-se por alguns dias.O poiso escolhido era o topo da paliçada, onde fingia estar a fazer a vigilância habitual, embora perfeitamente exposto. Apetecia-me morrer. Foi terrível. P3143: Blogoterapia (62): A minha vida morreu; morreram os meus amigos (Santos Oliveira) (...)
6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato
6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato
11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite
(...) Numa das saídas das explorações que nos eram confiadas, foi apanhado um guerrilheiro e feito prisioneiro. Quando o pessoal chegou, já era noite. Não eram horas de entregar o prisioneiro à PIDE. Então o capitão lembra-se da brilhante ideia, como o Colaço está de serviço permanente ao posto rádio, fica a guardar o prisioneiro. Ordens são ordens e não há que contestar. (...)
4 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)
(---) Das nossas lides bloguísticas eu sabia, talvez há mais de dois anos, que o meu amigo e camarada Virgínio Briote acalentava a secreta esperança de um dia poder entrevistar (ou ter uma conversa franca com) o Luís Cabral... Fez várias tentativas. Em vão. Até que a morte do histórico dirigente do PAIGC, ocorrida há dias em Lisboa, veio fechar-lhe a última porta (...)
11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...
11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...
24 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura:Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias
(...) Apesar de me terem advertido para a eventual polémica a propósito da revelação da entrega de gasóleo ao PAIGC , surpreendeu-me a quantidade e agressividade dos comentários produzidos. Vou tentar clarificar as coisas. (...)
24 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5006: O segredo de... (8): Joaquim Luís Mendes Gomes: Podia ter-me saído caro aquele pontapé no...
21 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5138: O segredo de... (9): Fur Mil J. S. Moreira, da CCAV 2483, que feriu com uma rajada de G3 o médico do BCAV 2867 (Ovídio Moreira)
24 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5529: O segredo de... (10): António Carvalho (ex-Fur Mil Enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74): Os tabefes dados ao Bacari
(...) Desde há algum tempo tenho vindo a pensar que nem sempre éramos correctos no nosso relacionamento com os civis e que essa faceta raramente ou nunca tem sido aqui objecto de qualquer relato. Parecendo-me que esta perspectiva da nossa (con)vivência com a população também faz falta à verdadeira história da guerra do ultramar ou colonial, eis-me aqui a falar de mim, falando dos meus pecados (...)
18 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5670: O segredo de... (11): Um ataque a Bissau, uma bravata do Hoss e do Django (Sílvio Fagundes Abrantes, BCP 12, 1970/71)
(...) Vou contar a história real dum ataque a Bissau feito em 1971. Um dia, eu e o meu amigo Julião Pais dos Santos (o Django), pensámos em atacar Bissau... Dito e feito. Mas faltava a estratégia. Depois de alguns dias a pensar na estratégia, finalmente chegou a luz ao fundo do túnel. (...)
27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló)
Guiné 63/74 - P12544: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (6): Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...
Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, ambos sapadores...
Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, lá ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".)
Fotos: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados.
Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Sistema de defesa de um destacamento
Foto: © Carlos Fraga (2011). Todos os direitos reservados.

1. Texto do David Guimarães, residente em Espinho (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas, da CART 2716, Xitole, 1970/1972), um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o 75, de 23 de junho de 2005 (*).
É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula, mais sendo ele um dos especialistas em minas e armadilhas:
2. Estórias do Xitole (6) > Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...
2. Estórias do Xitole (6) > Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...
por David Guimarães
Quando ocupámos o Xitole, em substituição da CART 2413 que lá se encontrava [, no período de1968/70], procedemos de imediato ao armadilhamento da zona limítrofe do quartel. Foram colocadas muitas minas antipessoais, de fabrico português, com espoletas de pressão, reforçadas com mais cargas explosivas ou não, conforme a maior ou menor importância do local. O objetivo era impedir a aproximação e a infiltração do IN, criando um zona de segurança à volta do quartel...
Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objetos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...
Este processo de alarme e prevenção efetivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....
Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.
Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).
A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, acionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.
Bem, mas isto não é uma aula sobre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.
Um camarada nosso, o [fur mil minas e armadilhas] Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...
Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
─ Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... ─ Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.
Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objetos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...
Este processo de alarme e prevenção efetivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....
Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.
Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).
A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, acionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.
Bem, mas isto não é uma aula sobre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.
Um camarada nosso, o [fur mil minas e armadilhas] Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...
Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
─ Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... ─ Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.
Pela manhã, bem cedo, aí vai o pelotão de reconhecimento. Aproximação cautelosa ao local, sangue no chão...
─ Boa, que isto funcionou!
Mais sangue ali e acolá e eis que surge a vítima.... Um grande macaco, já morto... E não tinha camuflado!...
─ Ora, foda-se!
A guerra tinha disto...
David J. Guimarães
Em tempo: ironia do destino, o nosso camarada Quaresma acabou por morrer pela acção de uma granada dessas, a instantânea.. [Como já aqui foi contado, na estória do Xitole nº 1]
_____________
Nota do editor:
Postes anteriores da série >
(...) Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o [furriel] Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela). (...)
4 de agosto de 2013 >Guiné 63/74 - P11903: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (4): Um tiro numa cabra de mato... que deu direito a um prémio Governador Geral
(...) Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN. (...)
12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo
12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo
(...) Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir? (...)
24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores
24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores
18 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha
Guiné 63/74 - P12543: Parabéns a você (673): João Meneses, ex-2.º Ten FZE, DFE 21 (Guiné, 1972); Ricardo Figueiredo, ex-Fur Mil Art do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, ex-Sold Cond Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12532: Parabéns a você (672): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)
Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12532: Parabéns a você (672): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)
sábado, 4 de janeiro de 2014
Guiné 63/74 - P12542: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (2): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (1): Municípios de Abrantes a Coimbra
1. Segunda parte da "Fábricas de Soldados", trabalho do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao nosso Blogue em mensagem do dia 18 de Dezembro de 2013:
(Continua)
____________
Nota do editor
Primeiro poste da série de 2 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12534: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (1): Introdução, Biografia, Índice das Unidades, Estruturas Militares, Órgãos de Comando e Número de Unidades mobilizadas
Guiné 63/74 - P12541: Os nossos seres, saberes e lazeres (63): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (7) (Tony Borié)
1. Em mensagem do dia 29 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), enviou-nos o 7.º episódio da narrativa da sua viagem/aventura de férias, num percurso de 7000 milhas (sensivelmente 11.265 quilómetros) através dos Estados Unidos da América, na companhia de sua esposa.
Companheiros, o Ano Novo vai começar, vamos esquecer por alguns momentos a guerra, o “Bom ou Mau Tempo na Bolanha”, os “contra-guerrilheiros, do companheiro combatente JD”, que me vai desculpar de eu me ter aproveitado daquelas “geniais” palavras que pelo menos para mim, eram novas na nossa linguagem de antigos combatentes, mas quer queiramos ou não, fazem algum senso, sim senhor.
Não abusando da paciência do “comandante” Luís, dos seus mais directos colaboradores, das análises e comentários de todos, pois os vossos comentários “ajudam-me”, não importa que gostem ou não gostem, são a vossa sincera expressão, saem da boca e são escritas pela mão de companheiros combatentes que andaram lá, sentiram o cheiro daquela terra vermelha, mas em particular e sem “beliscar” nenhum de vocês, as análises do companheiro Hélder Valério, que gostava de ter encontrado lá na Guiné, “true, encourage them, who knows what he writes, are special”, desculpem de a mensagem ir em inglês, mas é a maneira mais fiel de me expressar, do sempre dedicado Carlos Vinhal, que com a sua maneira de estar no tempo, firme e honesta, nunca se esquece do seu trabalho, se alguma coisa nos escapa, ele está lá e lembrar-nos, a corrigir-nos, a explicar que aquele texto “não está adequado”, ou que daquela maneira, o texto, “está muito bem adequado”, contribuindo assim para o bom nome do “nosso blogue”, que com a sua “ bondosa paciência”, vai aturando este “Tó d’Agar, este Cifra, este Tony”, que também foi combatente, e que pela conversação que tem mantido com o Carlos, já o considera “a friend, also special”, e claro de todos vocês, que como já expliquei por diversas vezes, constituem a minha segunda família.
Vamos então divertir-nos um pouco com a continuação da nossa viajem do ano que já lá vai, que era aquele há muito tempo, há uns dias, na semana que passou.
Não se lembram onde parámos para dormir no último dia?(*)
Eu lembro foi na cidade de Mitchell, lá no estado de Dakota do Sul.
Pela manhã o tempo não estava muito mau, demos uma volta pela cidade de Mitchell, ainda em Dakota do Sul, dizem que quem lhe deu o nome foi um senhor muito rico, que até era presidente dos caminhos de ferro de Chicago, Milwaukee e St. Paul, que se chamava Alexander Mitchell, esta a razão do nome Mitchell.
O tanque ainda tinha gasolina que dava para umas tantas milhas, portanto rumámos ao Atlântico, ou seja para leste, esperando encontrar a gasolina a um preço mais acessível o que aconteceu passado umas horas, ainda em Dakota do Sul, próximo da cidade de Sioux Falls, onde estando na estação de serviço, portanto com alguma segurança, começa uma enorme tempestade, com chuva, vento e trovoada, por um período de mais de uma hora, inundando toda a zona, e com todos os carros e camiões de longo curso, saindo da estrada, a quererem refugiar-se na estação de serviço. Foi aquilo a se chama “um engarrafamento”, demorámos quase outra hora para sair da estação de serviço, mas saímos “secos” e em segurança.
Continuámos a nossa rota, entrando no estado de Minnesota, que é o maior estado da região centro-oeste dos Estados Unidos em extensão territorial. Só as cidades de Saint Paul, que é a capital, e Minneapolis, abrigam mais de 60% da população do estado. O solo da região sul de Minnesota é um dos mais férteis do mundo, e é uma das líderes nacionais na produção de trigo e soja. Minnesota, inicialmente fez parte da colónia francesa de “Nova França”, mas em 1763, a região, passou sob os termos do “Tratado de Paris”, para controle britânico, e claro após a independência dos Estados Unidos, em 1783, a região sul de Minnesota passou ao controle dos Estados Unidos, enquanto a região norte passou a controle Espanhol, mas esta última região passaria novamente a controle francês em 1800, mas foi anexada pelos Estados Unidos em 1803, na “Compra da Luisiana”, de que já aqui falámos em anteriores textos.
A palavra Minnesota, vem de duas palavras “sioux”, “mine”, que significa “água”, e “sota”, que significa “cor-do-céu”, portanto em “sioux”, o seu verdadeiro nome é “Águas Cor-do-Céu”.
Fomos ao centro de boas-vindas, informando-nos dos pontos importantes a ver no estado, o que fizemos, pois fomos ver o “Fort Belmont”, onde dizem que alguns exploradores, como os irmãos William, George e Charles Wood, vindos de Indiana, no ano de 1856, estabeleceram-se por aqui, construindo um local para se abrigarem, a que deram o nome de “Springfield”, pois a primavera aproximava-se. Foram chegando pessoas vindas do leste, depois passou a ser um posto avançado de trocas, entre os índios da região, as pessoas que viajavam para oeste, onde alguns por aqui ficaram.
Também fizemos paragens nas cidades de Worthington, Fairmont, Albert Lea, Austin, Rochester, entrando no estado de Wisconsin ainda ia o sol alto.
O estado de Wisconsin, possui um dos maiores rebanhos de gado bovino dos Estados Unidos, dizem que é o maior produtor nacional de queijo e manteiga, e o segundo maior produtor de leite. Foi o primeiro estado a abolir a pena de morte no país. Os primeiros exploradores europeus no Wisconsin foram os franceses, e fez parte da colónia francesa de “Nova França”, até 1763, quando passou a ser controlada pelo Reino Unido, mas em 1783, após a independência, o Wisconsin passou a ser administrado pelos Estados Unidos, fazendo parte de diversos territórios até 1836, quando o “Território de Wisconsin” foi fundado, mas só em 1848, é que o Wisconsin se tornou o 30.º estado norte-americano. O Wisconsin é uma palavra de origem nativa, mas ninguém sabe ao certo o seu significado, que pode muito bem significar, “agrupamento de águas”, “campos selvagens de arroz”, “terra natal” ou “grande rocha”.
Aqui a paisagem já era diferente, havia vegetação, havia algumas subidas e descidos na estrada, já não era só planície, paramos na cidade de Madison, comprámos queijo, num estabelecimento que só vendia queijo, e tinha queijos gigantes, da altura de um homem, de todas as qualidades, de todas as cores!
O preço, não era muito convidativo, o Tony ficou com a ideia que se podia adquirir o mesmo produto, em qualquer outro estado, pelo mesmo preço, em qualquer loja de produtos alimentícios local.
Ao cair da tarde, entrámos no estado de Illinois, e dormimos na cidade de Rockford, onde já havia movimentação, muitos hotéis, restaurantes, comércio, pessoas na rua, já cheirava a Chicago, aquele “Chicago, Chicago”, dos filmes e dos “Al Capones”, de que vos falarei no texto do próximo dia.
Este foi o resumo do dia 7, praticamente na estrada.
Tony Borie, Agosto de 2013
____________
Notas do editor
(*) Vd. poste de 2 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12239: Os nossos seres, saberes e lazeres (59): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (6) (Tony Borié)
Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12352: Os nossos seres, saberes e lazeres (62): Estalo Novo, nova peça da Companhia Maior, que vai ser estreada no Centro Cultural de Belém no do dia 28 de Novembro (Carlos Nery)
7000 MILHAS ATRAVÉS DOS USA - 7
Companheiros, o Ano Novo vai começar, vamos esquecer por alguns momentos a guerra, o “Bom ou Mau Tempo na Bolanha”, os “contra-guerrilheiros, do companheiro combatente JD”, que me vai desculpar de eu me ter aproveitado daquelas “geniais” palavras que pelo menos para mim, eram novas na nossa linguagem de antigos combatentes, mas quer queiramos ou não, fazem algum senso, sim senhor.
Não abusando da paciência do “comandante” Luís, dos seus mais directos colaboradores, das análises e comentários de todos, pois os vossos comentários “ajudam-me”, não importa que gostem ou não gostem, são a vossa sincera expressão, saem da boca e são escritas pela mão de companheiros combatentes que andaram lá, sentiram o cheiro daquela terra vermelha, mas em particular e sem “beliscar” nenhum de vocês, as análises do companheiro Hélder Valério, que gostava de ter encontrado lá na Guiné, “true, encourage them, who knows what he writes, are special”, desculpem de a mensagem ir em inglês, mas é a maneira mais fiel de me expressar, do sempre dedicado Carlos Vinhal, que com a sua maneira de estar no tempo, firme e honesta, nunca se esquece do seu trabalho, se alguma coisa nos escapa, ele está lá e lembrar-nos, a corrigir-nos, a explicar que aquele texto “não está adequado”, ou que daquela maneira, o texto, “está muito bem adequado”, contribuindo assim para o bom nome do “nosso blogue”, que com a sua “ bondosa paciência”, vai aturando este “Tó d’Agar, este Cifra, este Tony”, que também foi combatente, e que pela conversação que tem mantido com o Carlos, já o considera “a friend, also special”, e claro de todos vocês, que como já expliquei por diversas vezes, constituem a minha segunda família.
Vamos então divertir-nos um pouco com a continuação da nossa viajem do ano que já lá vai, que era aquele há muito tempo, há uns dias, na semana que passou.
Não se lembram onde parámos para dormir no último dia?(*)
Eu lembro foi na cidade de Mitchell, lá no estado de Dakota do Sul.
Pela manhã o tempo não estava muito mau, demos uma volta pela cidade de Mitchell, ainda em Dakota do Sul, dizem que quem lhe deu o nome foi um senhor muito rico, que até era presidente dos caminhos de ferro de Chicago, Milwaukee e St. Paul, que se chamava Alexander Mitchell, esta a razão do nome Mitchell.
O tanque ainda tinha gasolina que dava para umas tantas milhas, portanto rumámos ao Atlântico, ou seja para leste, esperando encontrar a gasolina a um preço mais acessível o que aconteceu passado umas horas, ainda em Dakota do Sul, próximo da cidade de Sioux Falls, onde estando na estação de serviço, portanto com alguma segurança, começa uma enorme tempestade, com chuva, vento e trovoada, por um período de mais de uma hora, inundando toda a zona, e com todos os carros e camiões de longo curso, saindo da estrada, a quererem refugiar-se na estação de serviço. Foi aquilo a se chama “um engarrafamento”, demorámos quase outra hora para sair da estação de serviço, mas saímos “secos” e em segurança.
Continuámos a nossa rota, entrando no estado de Minnesota, que é o maior estado da região centro-oeste dos Estados Unidos em extensão territorial. Só as cidades de Saint Paul, que é a capital, e Minneapolis, abrigam mais de 60% da população do estado. O solo da região sul de Minnesota é um dos mais férteis do mundo, e é uma das líderes nacionais na produção de trigo e soja. Minnesota, inicialmente fez parte da colónia francesa de “Nova França”, mas em 1763, a região, passou sob os termos do “Tratado de Paris”, para controle britânico, e claro após a independência dos Estados Unidos, em 1783, a região sul de Minnesota passou ao controle dos Estados Unidos, enquanto a região norte passou a controle Espanhol, mas esta última região passaria novamente a controle francês em 1800, mas foi anexada pelos Estados Unidos em 1803, na “Compra da Luisiana”, de que já aqui falámos em anteriores textos.
A palavra Minnesota, vem de duas palavras “sioux”, “mine”, que significa “água”, e “sota”, que significa “cor-do-céu”, portanto em “sioux”, o seu verdadeiro nome é “Águas Cor-do-Céu”.
Fomos ao centro de boas-vindas, informando-nos dos pontos importantes a ver no estado, o que fizemos, pois fomos ver o “Fort Belmont”, onde dizem que alguns exploradores, como os irmãos William, George e Charles Wood, vindos de Indiana, no ano de 1856, estabeleceram-se por aqui, construindo um local para se abrigarem, a que deram o nome de “Springfield”, pois a primavera aproximava-se. Foram chegando pessoas vindas do leste, depois passou a ser um posto avançado de trocas, entre os índios da região, as pessoas que viajavam para oeste, onde alguns por aqui ficaram.
Também fizemos paragens nas cidades de Worthington, Fairmont, Albert Lea, Austin, Rochester, entrando no estado de Wisconsin ainda ia o sol alto.
O estado de Wisconsin, possui um dos maiores rebanhos de gado bovino dos Estados Unidos, dizem que é o maior produtor nacional de queijo e manteiga, e o segundo maior produtor de leite. Foi o primeiro estado a abolir a pena de morte no país. Os primeiros exploradores europeus no Wisconsin foram os franceses, e fez parte da colónia francesa de “Nova França”, até 1763, quando passou a ser controlada pelo Reino Unido, mas em 1783, após a independência, o Wisconsin passou a ser administrado pelos Estados Unidos, fazendo parte de diversos territórios até 1836, quando o “Território de Wisconsin” foi fundado, mas só em 1848, é que o Wisconsin se tornou o 30.º estado norte-americano. O Wisconsin é uma palavra de origem nativa, mas ninguém sabe ao certo o seu significado, que pode muito bem significar, “agrupamento de águas”, “campos selvagens de arroz”, “terra natal” ou “grande rocha”.
Aqui a paisagem já era diferente, havia vegetação, havia algumas subidas e descidos na estrada, já não era só planície, paramos na cidade de Madison, comprámos queijo, num estabelecimento que só vendia queijo, e tinha queijos gigantes, da altura de um homem, de todas as qualidades, de todas as cores!
O preço, não era muito convidativo, o Tony ficou com a ideia que se podia adquirir o mesmo produto, em qualquer outro estado, pelo mesmo preço, em qualquer loja de produtos alimentícios local.
Ao cair da tarde, entrámos no estado de Illinois, e dormimos na cidade de Rockford, onde já havia movimentação, muitos hotéis, restaurantes, comércio, pessoas na rua, já cheirava a Chicago, aquele “Chicago, Chicago”, dos filmes e dos “Al Capones”, de que vos falarei no texto do próximo dia.
Este foi o resumo do dia 7, praticamente na estrada.
Tony Borie, Agosto de 2013
____________
Notas do editor
(*) Vd. poste de 2 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12239: Os nossos seres, saberes e lazeres (59): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (6) (Tony Borié)
Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12352: Os nossos seres, saberes e lazeres (62): Estalo Novo, nova peça da Companhia Maior, que vai ser estreada no Centro Cultural de Belém no do dia 28 de Novembro (Carlos Nery)
Guiné 63/74 - P12540: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (5): Sou do famigerado XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 de Agosto e terminado a 17 de Setembro de 1966, na Escola Prática de Engenharia (EPE), em Tancos
1. Mensagem de Mário Gaspar, com data de 18 de dezembro último
Camarada Luís
Envio-te este texto, que foca mais o percurso do Serviço Militar Obrigatório antes da minha mobilização.
Um abraço, Mário Vitorino Gaspar
P. S - Assino somente o meu nome completo pelo amor que nutro e nutria pela minha MÃE - Maria Eugénia da Conceição Vitorino Gaspar
[ex Furriel Miliciano, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba"
Chamado para frequentar o Curso de Operações Especiais (CIOE) em Lamego, em 4 de Julho, em 10 de Julho, fomos inúmeros Oficiais e Sargentos eliminados deste curso, que tem muitas histórias para contar.
De 15 de Julho até 1 de Agosto estive novamente como Monitor no RI 14 em Viseu. Escolhido para representar a Unidade nos Campeonatos da 2ª Região Militar, em Tomar a 20 de Julho. Nestes campeonatos fui à final, e escolhido para os Campeonatos Nacionais das Regiões Militares.
Quando menos esperava, deixei o RI 14 visto ter conhecimento pessoalmente – e no dia do Juramento de Bandeira dos recrutas onde era um dos Monitores – ter sido mobilizado, ignorando o destino, se Angola, Guiné ou Moçambique. Os pelotões onde administrei recrutas, compunham-se de 77/78 mancebos, e quando se trata de falar em preparar jovens para a guerra são pelotões com um número anormal.
Marchei, portanto em 6 Agosto para a Escola Prática de Engenharia (EPE) em Tancos, a fim de frequentar o XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 e terminado 17 de Setembro de 1966. Pensei logo. Mais valia ter ficado em Lamego e frequentar o Curso de Operações Especiais.
O Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, curiosamente, foi uma pausa na minha caminhada militar, visto ter sido rico em situações de algum modo caricatas. Somente Oficiais e Sargentos Milicianos, quase na unanimidade os que tinham estado comigo no CIOE em Lamego e que haviam sido excluídos (não é bem o termo porque a verdade é que não o quisemos frequentar, na grande parte dos casos), para além de um “levantamento de rancho”, numa Carne de Porco à Alentejana, por aquilo que me lembro, o levantamento só se fez na Messe de Sargentos. As amêijoas encontravam-se estragadas. Depois de diversas tentativas para uma reconciliação, mantivemos a posição até substituírem os bivalves, que cheiravam mal, por outra refeição.
Posteriormente na instrução prática, desviámos um detonador pirotécnico, um petardo de trotil, um adaptador e cordão lento. À noite, após a devida montagem, foi colocado este engenho explosivo, por um grupo previamente escolhido, num passeio, e encostado a uma caserna. Os outros, desde um Tenente, passando pelos Aspirantes e Cabos Milicianos, deitaram-se.
Aqueles que haviam colocado o engenho explosivo, nas maiores calmas, para que não sucedesse algo de imprevisto que estragasse a “brincadeira”, foram igualmente para as suas camas.
Rebentamento forte na Escola Prática de Engenharia, em Tancos – no XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas – diga-se o XX Curso porque acho que ficou conhecido. E, após o rebentamento um alerta. Toda a EPE na parada. Sabotagem? A ARA? Diversas versões. Por mais voltas que dessem, ninguém piou. Quem foi, e quem não foi? Sabe-se lá o que mais se disse.
Eu fiquei sem os 90$00 do pré, porque o Cabo Miliciano era 1º Cabo no pré e Sargento no Serviço. Foi o castigo, que acho ter sido igual para todos.
No final do Curso, quanto à parte prática, tínhamos de “inventar uma armadilha”, mesmo montada ou em alternativa sugeri-la através de desenhos ou por sugestões escritas. Eu tinha como Instrutor um Tenente de Engenharia, bastante simpático e, quando chegou a vez de apresentar o meu trabalho, perguntou-me:
Camarada Luís
Envio-te este texto, que foca mais o percurso do Serviço Militar Obrigatório antes da minha mobilização.
Sei que o texto não vai agradar a alguns, mas há que ter em conta que tive imenso cuidado, nesta época festiva, de narrar algo que julgo ser divertido. O Natal de 1967 foi terrível para mim, penso até que nenhum ex combatente gosta do Natal. Mas isso é caso para partilhar - talvez ainda esta semana, ou no início da semana que vem - num texto que posso tentar escrever.
Um abraço, Mário Vitorino Gaspar
P. S - Assino somente o meu nome completo pelo amor que nutro e nutria pela minha MÃE - Maria Eugénia da Conceição Vitorino Gaspar
Uma das traiçoeiras minas A/C montadas pelo PAIGC, algures no TO da Guiné...
"Em 5 de Agosto de 1968, pelas 10h07, em [?] 1615 1220 A0-74, foi levantada uma mina A/C TMD, reforçada com 2 granadas P27, uma de cada lado. As duas espoletas MUV foram escorvadas em 2 petardos de 20 gramas de trotil e colocadas ao alto, indo o armador apoiar-se directamente na cauda do percutor, estando a mina montada para ser accionada por pressão. Em lugar da cavilha normal metálica da espoleta MUV encontrou-se uma cavilha calibrada, de madeira. O peso de qualquer indivíduo era suficiente para partir tal cavilha e accionar a espoleta, pelo que a mina assim montada funciona como anti-carro e anti-pessoal." [Fonte: Extrato de Supintrep, nº 32, de Junho de 1971]
Infografia: A. Marques Lopes (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
2. Sou do famigerado XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 de Agosto e terminado 17 de Setembro de 1966, na Escola Prática de Engenharia (EPE), em Tancos
por Mário Gaspar
[ex Furriel Miliciano, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba"
(Gadamael e Ganturé, 1967/68)]
Eu, Furriel Miliciano de Artilharia nº 03163264, como Cabo Miliciano de Artilharia – e como costumo usualmente dizer – mas munido de G3 e de todas as armas, rumei para o RI 14, em Viseu, no dia 13 de Abril de 1966, onde, como Monitor, dei diversas instruções até 26 de Junho.
Chamado para frequentar o Curso de Operações Especiais (CIOE) em Lamego, em 4 de Julho, em 10 de Julho, fomos inúmeros Oficiais e Sargentos eliminados deste curso, que tem muitas histórias para contar.
De 15 de Julho até 1 de Agosto estive novamente como Monitor no RI 14 em Viseu. Escolhido para representar a Unidade nos Campeonatos da 2ª Região Militar, em Tomar a 20 de Julho. Nestes campeonatos fui à final, e escolhido para os Campeonatos Nacionais das Regiões Militares.
Quando menos esperava, deixei o RI 14 visto ter conhecimento pessoalmente – e no dia do Juramento de Bandeira dos recrutas onde era um dos Monitores – ter sido mobilizado, ignorando o destino, se Angola, Guiné ou Moçambique. Os pelotões onde administrei recrutas, compunham-se de 77/78 mancebos, e quando se trata de falar em preparar jovens para a guerra são pelotões com um número anormal.
Marchei, portanto em 6 Agosto para a Escola Prática de Engenharia (EPE) em Tancos, a fim de frequentar o XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 e terminado 17 de Setembro de 1966. Pensei logo. Mais valia ter ficado em Lamego e frequentar o Curso de Operações Especiais.
O Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, curiosamente, foi uma pausa na minha caminhada militar, visto ter sido rico em situações de algum modo caricatas. Somente Oficiais e Sargentos Milicianos, quase na unanimidade os que tinham estado comigo no CIOE em Lamego e que haviam sido excluídos (não é bem o termo porque a verdade é que não o quisemos frequentar, na grande parte dos casos), para além de um “levantamento de rancho”, numa Carne de Porco à Alentejana, por aquilo que me lembro, o levantamento só se fez na Messe de Sargentos. As amêijoas encontravam-se estragadas. Depois de diversas tentativas para uma reconciliação, mantivemos a posição até substituírem os bivalves, que cheiravam mal, por outra refeição.
Posteriormente na instrução prática, desviámos um detonador pirotécnico, um petardo de trotil, um adaptador e cordão lento. À noite, após a devida montagem, foi colocado este engenho explosivo, por um grupo previamente escolhido, num passeio, e encostado a uma caserna. Os outros, desde um Tenente, passando pelos Aspirantes e Cabos Milicianos, deitaram-se.
Aqueles que haviam colocado o engenho explosivo, nas maiores calmas, para que não sucedesse algo de imprevisto que estragasse a “brincadeira”, foram igualmente para as suas camas.
Rebentamento forte na Escola Prática de Engenharia, em Tancos – no XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas – diga-se o XX Curso porque acho que ficou conhecido. E, após o rebentamento um alerta. Toda a EPE na parada. Sabotagem? A ARA? Diversas versões. Por mais voltas que dessem, ninguém piou. Quem foi, e quem não foi? Sabe-se lá o que mais se disse.
Eu fiquei sem os 90$00 do pré, porque o Cabo Miliciano era 1º Cabo no pré e Sargento no Serviço. Foi o castigo, que acho ter sido igual para todos.
No final do Curso, quanto à parte prática, tínhamos de “inventar uma armadilha”, mesmo montada ou em alternativa sugeri-la através de desenhos ou por sugestões escritas. Eu tinha como Instrutor um Tenente de Engenharia, bastante simpático e, quando chegou a vez de apresentar o meu trabalho, perguntou-me:
– Então Mário, o que fez? – Respondi-lhe:
– Não me ocorreu nada, meu Tenente!.
Ele agarrou no meu Livro enorme de Minas e Armadilhas, e teve tempo ainda para dizer:
– Tem este livro que tem tudo sobre minas e armadilhas….
Ouviu-se um estoiro. Eu havia retirado as páginas centrais do livro, substituindo as mesmas por páginas de jornais onde fizera uma fenda onde coloquei um disparador de descompressão. Trabalho difícil, mas fi-lo mais como brincadeira. Digo bem, foi uma brincadeira! O Tenente riu e gostou desta minha prova de final de Curso. Muitos foram os chumbos neste Curso.
No Cine Teatro de Tancos – para os que o completaram com êxito o Curso – foi-lhes ofertado um Diploma. Eu tenho o meu. Os que chumbaram, julgo que foram punidos disciplinarmente. Ouvimos todos, um raspanete do Comandante de Instrução:
No Cine Teatro de Tancos – para os que o completaram com êxito o Curso – foi-lhes ofertado um Diploma. Eu tenho o meu. Os que chumbaram, julgo que foram punidos disciplinarmente. Ouvimos todos, um raspanete do Comandante de Instrução:
– Porque o vosso Curso foi o pior da Escola Prática de Engenharia… Por isto e por aquilo!
Ter feito este Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, foi a pior coisa que me aconteceu no meu percurso militar.
Pergunto para quem me lê:
Ter feito este Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, foi a pior coisa que me aconteceu no meu percurso militar.
Pergunto para quem me lê:
– Quantos Especialistas de Explosivos de Minas e Armadilhas morreram ou ficaram deficientes nesta Guerra Colonial?.
É pena que não tenham feito um Levantamento da Guerra Colonial. Colocavam as questões: (i) Esteve na Guerra Colonial?; (ii) Se esteve diga onde?. E com espaços para as respostas... Outras questões podiam e podem ser colocadas.
Tiveram todo o tempo para o fazer, e todas as oportunidades com os “Censos”. Penso que após o fim da Guerra Colonial existiram os “Censos” de 1981, 1991, 2001 e 2011, portanto ultimamente são efectuados de dez em dez anos. Agora possivelmente só em 2021.
Muito embora não tenha falado sobre a minha experiência de guerra em Gadamael Porto e Ganturé, passando por Mejo, Guileje, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Cacine. Mais tarde surgiu Gandembel, que deve ser, e com certeza, uma “pedra no sapato” dos nossos cérebros militares. Para quem lá estava, e que conhecia a realidade da zona do famigerado “corredor da morte”, impensável montar um aquartelamento em pleno corredor, também chamado “corredor de Guileje”.
É pena que não tenham feito um Levantamento da Guerra Colonial. Colocavam as questões: (i) Esteve na Guerra Colonial?; (ii) Se esteve diga onde?. E com espaços para as respostas... Outras questões podiam e podem ser colocadas.
Tiveram todo o tempo para o fazer, e todas as oportunidades com os “Censos”. Penso que após o fim da Guerra Colonial existiram os “Censos” de 1981, 1991, 2001 e 2011, portanto ultimamente são efectuados de dez em dez anos. Agora possivelmente só em 2021.
Muito embora não tenha falado sobre a minha experiência de guerra em Gadamael Porto e Ganturé, passando por Mejo, Guileje, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Cacine. Mais tarde surgiu Gandembel, que deve ser, e com certeza, uma “pedra no sapato” dos nossos cérebros militares. Para quem lá estava, e que conhecia a realidade da zona do famigerado “corredor da morte”, impensável montar um aquartelamento em pleno corredor, também chamado “corredor de Guileje”.
E viu-se o que se viu. Acabou-se com Sangonhá e Cacoca – enquanto a CART 1659 se encontrava em Gadamael – e depois Ganturé e Mejo. Gandembel vai também ao ar e incrivelmente em Guileje acontece o que todos sabem. E Gadamael Porto esteve por pouco.
Depois foi o caos.
____________Depois foi o caos.
Nota do editor:
Último poste da série > 3 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12538: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (4): Elementos para a história e a cultura da nossa presença em África: o antropólogo Augusto Mesquitela Lima, refundador do Museu do Dundo / Diamang, e o comandante Ernesto Vilhena, administrador-delegado da Diamang
Último poste da série > 3 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12538: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (4): Elementos para a história e a cultura da nossa presença em África: o antropólogo Augusto Mesquitela Lima, refundador do Museu do Dundo / Diamang, e o comandante Ernesto Vilhena, administrador-delegado da Diamang
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2013:
Queridos amigos,
A observação deste capitão da Ilha de S. Tiago está centrada no norte e no centro da Guiné, como hoje a conhecemos. É verdade que todo o relato começa no alto Senegal e findará na Serra Leoa. No que tange ao território atual as descrições começam no rio de S. Domingos, passam pelos Bijagós, e depois entusiasma-se com o reino dos Beafadas, a etnia então mais poderosa no Sul.
Temos aqui a descrição do comércio e dos seus povos. Ficamos a saber que havia pequenos elefantes e leões e o tão cobiçado anil, e havia mesmo ouro. Descrição poderosa, por vezes galvanizante.
Assim como a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, é o encontro com a história, este Tratado que marca o início das belíssimas narrativas sobre os povos da Guiné.
Um abraço do
Mário
Tratado breve dos rios da Guiné: A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (2)
Beja Santos
Se é verdade que o bordão do historiador é a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, a obra que marca o encontro entre os nautas portugueses e os povos da Guiné é esse fabuloso documento intitulado “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, da responsabilidade do capitão André Álvares de Almada. O relato começa com a descrição dos Jalofos, do rio de Sanagá, o tal rio que separa os mouros da terra dos negros. Impressiona a sua linguagem detalhada e clara, como segue exemplo: “Este Reino dos Jalofos era muito grande, e estava debaixo da obediência de um Rei muito poderoso, o qual era entre esta nação como Imperador, e quando se falava nele se dizia o Gran-Jalofo. Tinha outros reis que lhe davam obediência e pagavam tributos. Mas como o tempo costuma a desfazer a uns e levantar a outros, muitas vezes de nada, assim foi com este do Império dos Jalofos”. Desce ao pormenor falando dos seus costumes e trocas comerciais, outro exemplo: “As mercadorias que levam os nossos a estas partes são cavalos, vinhos, bretanhas, contaria da Índia chamada da fémea limpa e boa, e o cano de pata, que é a mesma contaria comprida, outra da mesma contaria redonda, do tamanho de uma avelã e maior. Toda esta contaria é estimada entre eles é o tesouro e joias que eles têm. Estimam também o ouro; compram algumas peças feitas, vinta-quatreno vermelho, grão, margarideta, continha de Veneza, papel, coral miúdo, e búzio miúdo, o qual corre como dinheiro para gastos. Nesta costa se acha muito âmbar, e o rei do sertão dela tem muita quantidade dele, porque de todo o que acham os negros lhe dão sua parte, e tem tanta quantidade que tem dentro dos seus paços um modo de casa de barro, como forno de cozer pão, e o tem cheio dele e em muita estima”.
Dos Jalofos passou à descrição dos Barbacins, depois o reino da Gâmbia, chega então à barra de S. Domingos, descreve os Falupos (Felupes), o reino de Casamansa, o reino dos Buramos (Brames), que confina com os Balantas, e ao Beafares. A navegação prossegue até ao reino dos Bijagós e à terra dos Beafares, a descrição é cuidadosíssima: “Este Beafares não tem as suas casas aldeadas como as outras nações, senão afastadas algum tanto umas das outras, e as fazem segundo a pose de cada um, e no lugar onde as fazem vivem ali os parentes todos juntos, reconhecendo ao mais velho a quem dão obediência; e por isso em alguns casos de Juízos e Leis que entre eles há, sendo condenados algumas vezes os maiores a perdimento de bens e liberdade, se cativa uma geração. Vivem apartados em casas de taipa cobertas de palhas, às quais, como cá se chama entre nós Quintas, chamam eles Polonias, e há algumas de alguns fidalgos muito grandes de muitas casas”. Álvares de Almada revela uma atenção enorme sobre as culturas, hierarquias sociais, está atento às inclemências do tempo: “Esta terra de Biguda é toda coberta de muitos matos e arvoredos; chove nela muito; dão grandes trovões; caem muitas pedras de corisco. Usa Nosso Senhor com estes Gentios de sua misericórdia grandemente, porque lhes dá água em abastança e muitos temporais, e o inverno com tanta temperança que não pode mais ser; porque ainda que chova muita água, logo torna o tempo sereno e bom; e desta maneira cria a terra muito. E ainda que esteja o tempo claro, arma-se uma nuvenzinha pequena, que vai-se fazendo maior; e quando se não precatam começam de roncar os trovões; dá um grande pé-de-vento, e antes de dar há de acalmar o outro que ventava de antes; e dando o vento dura por espaço de um quarto de hora ou mais; deixa-se descarregar tanta água que não há pode-la esperar; tanto que choque que logo cessa o vento e dura a água uma hora ou duas; depois torna a esclarecer tudo e a fazer sol; e por isso tem tão boas novidades”.
Estamos portanto em pleno Sul da atual Guiné, e começa a descrição dos reinos dos Nalus, Bagas e Coquolins, descreve o comércio do rio grande de Buba, com todo o detalhe: os Nalus vendem escravos, esteiras finas, pequenos dentes de marfim, eram terras em que se matavam muitos elefantes e segue-se uma descrição pormenorizada: “Estes negros, não sei porque arte, se metem debaixo dos elefantes com umas azagais muito largas e grandes, e metendo-se dão-lhes com aquela arma e as mais vezes que podem, e acolhem-se. Começa o elefante de correr a uma e a outra parte, e vão-lhe caindo as tripas delgadas, e com as mãos e pés as vão trilhando e quebrando até que morre. Vai o negro pelo rasto do sangue dar com ele morto. Desfazem-no; dão ao rei o que tem dali, que são as mãos e pés e a tromba; o mais comem eles. Perguntando algumas vezes a alguns negros como se metem debaixo daquele animal tamanho e tão espantoso; respondiam que comiam mesinha para isso. Seja como for, eles o fazem; descreve os búfalos, o gado vacum, fala em onças e leões, a terra destes Nalus é grande, o comércio era feito por povo entreposto, os Beafares. Outra preciosidade para o comércio era o anil, tintas muito procuradas e explica a técnica a partir de árvores como hera e que vão trepando pelas outras árvores e têm as folhas largas: “E os negros, no tempo, apanham estas folhas e as pisam, e fazem uns pães como de açúcar, assim grandes, enfolhados com as folhas de cabopa, e vêm os nossos navios carregarem-se destas tintas, que é um grande trato, para o rio de S. Domingos. E já nos outros anos, governando a Rainha D. Caterina, que Deus haja, se mandou carregar e trazer à cidade de Lisboa uma caravela destas tintas, para as experimentarem, isso levou a Cádis parte da tinta. Não sei de que modo a acharam, mas sei que da ilha de S. Tiago se levou por muitas vezes a tinta que se nela faz a Sevilha e a Cádis e a acharam boa e da erva de que se faz o verdadeiro anil”. Fica-se igualmente a saber que esta tinta era levada para o rio de S. Domingos e utilizada pelos Brames e os Banhuns, e mesmo comercializada no Casamansa, resgatada por escravos.
A viagem no que é a Guiné-Bissau está praticamente a findar. Refere ainda os Bagas, muito atraiçoados isto é matavam à traição, com ritos absolutamente selvagens: “E em os matando cortam-lhes as cabeças e dançam com ela. E depois as cozem e tiram a carne toda, e limpas de carne e miolos bebem por elas, servindo-lhes de púcaros. Nisto não há dúvida. E quantos mais vasos tiver um negro em sua casa mais honrado é. E hão de entender que não hão de ser somente de brancos, se não de quaisquer pessoas que eles possam matar. Suas armas são umas azagais de uns ferros largos e compridos. Usam espadas, frechas e adargas de verga e rota boas. Têm suas almadias, que navegam de uma parte para a outra, e de rio em rio ao longo da terra”.
E assim se chega ao Cabo da Verga, dobrado chega-se ao rio das Pedras, o reino dos Sapes, vamos ter descrições até à Serra Leoa, assim descrita: “Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos; muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, limoeiros, canas-de-açúcar, muitos palmares, e muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar; há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”. Texto sugestivo em que Álvares de Almada sugere ao rei que venha gente da Europa e de Cabo Verde para aqui, aqui há riqueza, é melhor deixar empresas duvidosas e povoar território fértil até à Costa da Malagueta. E assim se despede de El Rei, com o desejo de ver esta terra povoada de cristãos.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
A observação deste capitão da Ilha de S. Tiago está centrada no norte e no centro da Guiné, como hoje a conhecemos. É verdade que todo o relato começa no alto Senegal e findará na Serra Leoa. No que tange ao território atual as descrições começam no rio de S. Domingos, passam pelos Bijagós, e depois entusiasma-se com o reino dos Beafadas, a etnia então mais poderosa no Sul.
Temos aqui a descrição do comércio e dos seus povos. Ficamos a saber que havia pequenos elefantes e leões e o tão cobiçado anil, e havia mesmo ouro. Descrição poderosa, por vezes galvanizante.
Assim como a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, é o encontro com a história, este Tratado que marca o início das belíssimas narrativas sobre os povos da Guiné.
Um abraço do
Mário
Tratado breve dos rios da Guiné: A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (2)
Beja Santos
Se é verdade que o bordão do historiador é a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, a obra que marca o encontro entre os nautas portugueses e os povos da Guiné é esse fabuloso documento intitulado “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, da responsabilidade do capitão André Álvares de Almada. O relato começa com a descrição dos Jalofos, do rio de Sanagá, o tal rio que separa os mouros da terra dos negros. Impressiona a sua linguagem detalhada e clara, como segue exemplo: “Este Reino dos Jalofos era muito grande, e estava debaixo da obediência de um Rei muito poderoso, o qual era entre esta nação como Imperador, e quando se falava nele se dizia o Gran-Jalofo. Tinha outros reis que lhe davam obediência e pagavam tributos. Mas como o tempo costuma a desfazer a uns e levantar a outros, muitas vezes de nada, assim foi com este do Império dos Jalofos”. Desce ao pormenor falando dos seus costumes e trocas comerciais, outro exemplo: “As mercadorias que levam os nossos a estas partes são cavalos, vinhos, bretanhas, contaria da Índia chamada da fémea limpa e boa, e o cano de pata, que é a mesma contaria comprida, outra da mesma contaria redonda, do tamanho de uma avelã e maior. Toda esta contaria é estimada entre eles é o tesouro e joias que eles têm. Estimam também o ouro; compram algumas peças feitas, vinta-quatreno vermelho, grão, margarideta, continha de Veneza, papel, coral miúdo, e búzio miúdo, o qual corre como dinheiro para gastos. Nesta costa se acha muito âmbar, e o rei do sertão dela tem muita quantidade dele, porque de todo o que acham os negros lhe dão sua parte, e tem tanta quantidade que tem dentro dos seus paços um modo de casa de barro, como forno de cozer pão, e o tem cheio dele e em muita estima”.
Dos Jalofos passou à descrição dos Barbacins, depois o reino da Gâmbia, chega então à barra de S. Domingos, descreve os Falupos (Felupes), o reino de Casamansa, o reino dos Buramos (Brames), que confina com os Balantas, e ao Beafares. A navegação prossegue até ao reino dos Bijagós e à terra dos Beafares, a descrição é cuidadosíssima: “Este Beafares não tem as suas casas aldeadas como as outras nações, senão afastadas algum tanto umas das outras, e as fazem segundo a pose de cada um, e no lugar onde as fazem vivem ali os parentes todos juntos, reconhecendo ao mais velho a quem dão obediência; e por isso em alguns casos de Juízos e Leis que entre eles há, sendo condenados algumas vezes os maiores a perdimento de bens e liberdade, se cativa uma geração. Vivem apartados em casas de taipa cobertas de palhas, às quais, como cá se chama entre nós Quintas, chamam eles Polonias, e há algumas de alguns fidalgos muito grandes de muitas casas”. Álvares de Almada revela uma atenção enorme sobre as culturas, hierarquias sociais, está atento às inclemências do tempo: “Esta terra de Biguda é toda coberta de muitos matos e arvoredos; chove nela muito; dão grandes trovões; caem muitas pedras de corisco. Usa Nosso Senhor com estes Gentios de sua misericórdia grandemente, porque lhes dá água em abastança e muitos temporais, e o inverno com tanta temperança que não pode mais ser; porque ainda que chova muita água, logo torna o tempo sereno e bom; e desta maneira cria a terra muito. E ainda que esteja o tempo claro, arma-se uma nuvenzinha pequena, que vai-se fazendo maior; e quando se não precatam começam de roncar os trovões; dá um grande pé-de-vento, e antes de dar há de acalmar o outro que ventava de antes; e dando o vento dura por espaço de um quarto de hora ou mais; deixa-se descarregar tanta água que não há pode-la esperar; tanto que choque que logo cessa o vento e dura a água uma hora ou duas; depois torna a esclarecer tudo e a fazer sol; e por isso tem tão boas novidades”.
Estamos portanto em pleno Sul da atual Guiné, e começa a descrição dos reinos dos Nalus, Bagas e Coquolins, descreve o comércio do rio grande de Buba, com todo o detalhe: os Nalus vendem escravos, esteiras finas, pequenos dentes de marfim, eram terras em que se matavam muitos elefantes e segue-se uma descrição pormenorizada: “Estes negros, não sei porque arte, se metem debaixo dos elefantes com umas azagais muito largas e grandes, e metendo-se dão-lhes com aquela arma e as mais vezes que podem, e acolhem-se. Começa o elefante de correr a uma e a outra parte, e vão-lhe caindo as tripas delgadas, e com as mãos e pés as vão trilhando e quebrando até que morre. Vai o negro pelo rasto do sangue dar com ele morto. Desfazem-no; dão ao rei o que tem dali, que são as mãos e pés e a tromba; o mais comem eles. Perguntando algumas vezes a alguns negros como se metem debaixo daquele animal tamanho e tão espantoso; respondiam que comiam mesinha para isso. Seja como for, eles o fazem; descreve os búfalos, o gado vacum, fala em onças e leões, a terra destes Nalus é grande, o comércio era feito por povo entreposto, os Beafares. Outra preciosidade para o comércio era o anil, tintas muito procuradas e explica a técnica a partir de árvores como hera e que vão trepando pelas outras árvores e têm as folhas largas: “E os negros, no tempo, apanham estas folhas e as pisam, e fazem uns pães como de açúcar, assim grandes, enfolhados com as folhas de cabopa, e vêm os nossos navios carregarem-se destas tintas, que é um grande trato, para o rio de S. Domingos. E já nos outros anos, governando a Rainha D. Caterina, que Deus haja, se mandou carregar e trazer à cidade de Lisboa uma caravela destas tintas, para as experimentarem, isso levou a Cádis parte da tinta. Não sei de que modo a acharam, mas sei que da ilha de S. Tiago se levou por muitas vezes a tinta que se nela faz a Sevilha e a Cádis e a acharam boa e da erva de que se faz o verdadeiro anil”. Fica-se igualmente a saber que esta tinta era levada para o rio de S. Domingos e utilizada pelos Brames e os Banhuns, e mesmo comercializada no Casamansa, resgatada por escravos.
A viagem no que é a Guiné-Bissau está praticamente a findar. Refere ainda os Bagas, muito atraiçoados isto é matavam à traição, com ritos absolutamente selvagens: “E em os matando cortam-lhes as cabeças e dançam com ela. E depois as cozem e tiram a carne toda, e limpas de carne e miolos bebem por elas, servindo-lhes de púcaros. Nisto não há dúvida. E quantos mais vasos tiver um negro em sua casa mais honrado é. E hão de entender que não hão de ser somente de brancos, se não de quaisquer pessoas que eles possam matar. Suas armas são umas azagais de uns ferros largos e compridos. Usam espadas, frechas e adargas de verga e rota boas. Têm suas almadias, que navegam de uma parte para a outra, e de rio em rio ao longo da terra”.
E assim se chega ao Cabo da Verga, dobrado chega-se ao rio das Pedras, o reino dos Sapes, vamos ter descrições até à Serra Leoa, assim descrita: “Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos; muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, limoeiros, canas-de-açúcar, muitos palmares, e muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar; há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”. Texto sugestivo em que Álvares de Almada sugere ao rei que venha gente da Europa e de Cabo Verde para aqui, aqui há riqueza, é melhor deixar empresas duvidosas e povoar território fértil até à Costa da Malagueta. E assim se despede de El Rei, com o desejo de ver esta terra povoada de cristãos.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)
Subscrever:
Mensagens (Atom)