domingo, 5 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12544: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (6): Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, ambos sapadores...



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) >  Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, lá ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".)

Fotos: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados.




Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72  > Sistema de defesa de um destacamento


Foto: © Carlos Fraga (2011). Todos os direitos reservados.



1. Texto do David Guimarães, residente em Espinho (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas, da CART 2716, Xitole, 1970/1972), um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o  75, de 23 de junho de 2005 (*).

É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula, mais sendo ele um dos especialistas em minas e armadilhas:


2. Estórias do Xitole (6) > Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...

por David Guimarães

Quando ocupámos o Xitole, em substituição da CART 2413  que lá se encontrava [, no período de1968/70], procedemos de imediato ao armadilhamento da zona limítrofe do quartel. Foram colocadas muitas minas antipessoais, de fabrico português, com espoletas de pressão, reforçadas com mais cargas explosivas ou não, conforme a maior ou menor importância do local. O objetivo era impedir a aproximação e a infiltração do IN, criando um zona de segurança à volta do quartel...

Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objetos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...

Este processo de alarme e prevenção efetivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....

Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.

Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).

A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, acionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.

Bem, mas isto não é uma aula sobre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.

Um camarada nosso, o [fur mil minas e armadilhas] Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...

Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
─ Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... ─ Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.

Pela manhã, bem cedo, aí vai o pelotão de reconhecimento. Aproximação cautelosa ao local, sangue no chão...
─ Boa, que isto funcionou!

Mais sangue ali e acolá e eis que surge a vítima.... Um grande macaco, já morto... E não tinha camuflado!...
─ Ora, foda-se!

A guerra tinha disto...

David J. Guimarães


Em tempo: ironia do destino, o nosso camarada Quaresma acabou por morrer pela acção de uma granada dessas, a instantânea.. [Como já aqui foi contado, na estória do Xitole nº 1]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série > 

26 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11982: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (5): Uma noite em Tangali com ataque ao Xitole, o quico do furriel Fevereiro e o meu baptismo de... voo em 1971

(...) Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o [furriel] Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela). (...)



(...) Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN. (...)

12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir? (...)

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores

(...) Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não... Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...(...)

(...) Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc. Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá (...).

7 comentários:

Anónimo disse...

Ciomentários recolhidos pelo editor L.G., da página do Facebook da Tabanca Grande:

David Guimaraes,

Olhem amigos - fui eu quem levantou essa coisa - sol ardente e eu suei frio com "manga de cu pequenino" - só não tem medo quem é tolo!

há 12 horas

Rogério Cardoso;

É assim mesmo David Guimarães, todos tivemos medo o que é humano, desconfiar daqueles que dizem que não.
há 12 horas


Carlos E. Vinhal:

David, vi algumas mas nunca levantei nenhuma. Petardo ao lado e lá vai (foi) ela. Quem quase viu o Alferes vítima mortal de uma igual a esta, jamais se aventuraria, pelo menos o filho único dos meus pais.
há 12 horas

David Guimaraes:

Esse Alferes era o Couto! Andou contigo e comigo em minas e armadilhas e eu já o conhecia de vendas Novas - era bem mais velho que nós foram-no buscar á marinha mercante e pronto - sucedeu isto (corrige-me o nome se for o caso)
há 11 horas

Zé Rodrigues:

Há um buraco ao fundo das costas e diz-se que quem tem esse buraco tem medo.Passei pelo mesmo camaradas em Bissorã Manssaba,etc.


há 2 horas

Epifanio Gomes disse...

Camarada David Guimarães. Tempos difíceis para suportar todos os dias na incógnita do que poderia acontecer, fazia parte do mesmo batalhão na compª. 2714,Mansambo, percorria Mansambo, Xime, enxalé e a população de Afiá


Epifânio Gomes

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Tenho por todos os que sofreram a 'experiência' da Guiné, em geral, um grande apreço e consideração mas, em particular, os 'homens das minas' merecem-me uma reverência especial.

As várias histórias que já foram por aqui apresentadas, do Luís, do Matos, etc., foram lidas com todo o respeito e deixaram sempre uma grande emoção.

Por isso, David, acho que percebo bem o teu 'ponto de vista' e concordo perfeitamente com a ideia que só não tem medo quem é inconsciente. A questão está em como superar o medo.
Claro que é preciso começar por querer fazê-lo. A coragem é isso. E é válido para muitas circunstâncias da vida, não só para as minas.

Abraço
Hélder S.

manuel carvalho disse...

.Caros camaradas

Sem dúvida que os homens de minas e armadilhas ao manusea-las corriam muitos riscos.Mas julgo que não estou a dizer nenhum disparate se disser que a maior parte das vitimas destes engenhos eram homens que não tinhas essa especialidade.Na minha comp. tivemos dois brancos e um africano feridos gravemante por minas e os especialistas graças a Deus não tiveram ferimentos.Nos trilhos do mato quem ia na frente era um terror por o pé no chão.
Manuel Carvalho

Carlos Vinhal disse...

Caro Manuel Carvalho, julgo que te referes ao manuseamento de minas por pessoas não "habilitadas".
Na verdade era estranho, como por exemplo os guineenses se "especializavam" no levantamento de minas inimigas, confiando na sorte e no facto de algumas estarem já danificadas, principalmente no tempo das chuvas.
Os especialistas também morriam, principalmente por duas causas: inexperiência e, a partir de determinada altura, por excesso de confiança. O problema era darem prémio pelo levantamento destes engenhos.
Levantei uma única mina anticarro por saber que se a rebentasse ali mesmo, iria acabar com o pouco alcatrão que havia naquele local, o que tornaria extremamente perigoso transitar futuramente naquela estrada.
Não aceitei o prémio do levantamento que julgo terá acumulado com o prémio da detecção e entregue ao militar que a picou.
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

manuel carvalho disse...

Amigo Vinhal

O que eu quero dizer é que no meu entender a maior parte das vítimas das minas acontecia numa fase em que elas não tinham sido detetadas e então seriam aqueles que as calcavam os motoristas e acompanhantes normalmente da viatura da frente, etc. mas sempre dizendo que tenho grande admiração por aqueles camaradas especialistas e outros que não o eram e que mexiam naqueles engenhos como era o teu caso.
Não falamos muito dos picadores e para mim faziam um dos trabalhos de mais responsabilidade e perigo da guerra.Na minha comp. eram escolhidos um a um e tinhamos em conta serem muito responsavéis e corajosos e que me lembre sempre fizeram um bom trabalho.
Gande abraço

Manuel Carvalho

JD disse...

Minas e armadilhas!!...
O recurso a engenhos explosivos para surpreender, produzir danos, e intimidar o IN, constitui, eventualmente, o processo mais vil de fazer a guerra. E, por vezes, também é preverso, ao ponto de queimar as mãos aos próprios manipuladores ou aos que deles esperam protecção.
Por outro lado, o recurso a campos de minas para defesa dos locais onde ficava sediada a tropa, poderia derivar do medo de ser surpreendido na própria "casa", medo que tive oportunidade de verificar, "atacava" alguns comandantes. O perigo dessas instalações estava sempre presente, tanto no(s) acto(s), de instalar, como na "limpesa" do terreno. Vou reportar-me a duas estórias ocorridas em Piche para ilustrar o que referi:
Um senhor major, por motivos que não posso referir, montou na área aquartelada um ou mais engenhos perto do local onde habitualmente se encontrava. Disso resultaram danos físicos graves na NT. Um "especialista" foi incumbido de armadilhar/minar uma faixa da margem do Corubal onde, supostamente, se praticava a cambança. Mais de um ano depois, com o terreno irreconhecível e o que restava de um "croqui" mal amanhado, perdeu um pé quando ali se deslocou para "limpar" o terreno.
O nosso querido Luís Faria contou-nos a estória de como um conhecido e jovem capitão insistiu para que detectasse e levantasse as minas que outrém colocara numa bolanha em estado alagado. Um disparate a que conseguiu furtar-se.
Levantei umas quantas minas, poucas felizmente, e cheguei a montar armadilhas (portas nos trilhos) para passar noites tranquilas, mas depressa concluí dos perigos emanentes, e que a melhor defesa seria o combate sério.
Por isso, uma ocasião deixei um saco com minas que me mandaram colocar num trilho fronteiriço a norte de Bajocunda, num lugar onde havia ramos familiares de um e outro lado da fronteira. Nunca mais se falou no assunto, e não tive que fazer a "limpesa", mas imagine-se os danos que poderia ter causado em civis, velhos ou crianças.
Quero com isto dizer, que essas "brincadeiras" para alguns senhores, constituíam sérios riscos para todos os que (até fora de tempo) contactassem com aquela forma de fazer a guerra. E se me dei a estes "luxos" de decidir em causa própria, era porque andava só com um pelotão, e as ordens superiores podiam ser adaptadas às nossas conveniências e critérios que a tarimba determinava. Aliás, já aqui contei como ia ficando sem pelinhos púbicos, quando uma granada rebentou por baixo deste que vos escreve, enquanto eu armadilhava o espaço entre arames na defesa periférica de Bajocunda para garantia dos bons sonhos de uns poucos senhores. Talvez tivesse merecido uma medalha, mas não teria graça nenhuma, nem o verdadeiro mérito que justificasse a morte.
JD