sábado, 11 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12571: Bom ou mau tempo na bolanha (42): O navio Uíge (Tony Borié)

Quadragésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O diário do Cifra, quando se abriam algumas páginas, era horrível, triste, às vezes era melhor mudar de página, pois lá só havia rabiscos, que pareciam letras, talvez fosse escrito em momentos de aflição, ou então devia de ter acabado de fumar algum cigarro feito à mão, estavam lá coisas assim, o Cifra, vai só mencionar algumas, onde as palavras se conseguem coordenar e também vai “amaciar” as palavras, porque a linguagem é um pouco parecida com a do Curvas, alto e refilão.

Dia 2 de Setembro, que devia de ser de 1964
O comando prendeu um africano, que por duas vezes se tentou suicidar na prisão, antes, era muito estimado por alguns no aquartelamento, principalmente pela polícia do estado, pois era ele que ajudava essa polícia, servindo de carrasco, com um chicote nas mãos, a interrogar e servindo também de intérprete, quando havia interrogatório aos prisioneiros. Tinha toda a liberdade, passeava-se pelo aquartelamento em construção, fazendo perguntas, entrando e saindo onde bem queria, parecia tal e qual a polícia do estado, vivia na aldeia que existia próximo do aquartelamento, tinha quatro mulheres, para as quais levava comida e não só, do aquartelamento. No parecer dessa mesma polícia do estado, era um guerrilheiro disfarçado. As quatro mulheres ficaram viúvas, pois ele foi evacuado de helicóptero, não sabe o Cifra para onde, pois nunca mais o viu no aquartelamento, nem na aldeia. Mais tarde, houve uma notícia, que nunca foi confirmada, que tinha morrido por “acidente”, na capital da província. 

Mudando de página, vem lá assim:
Dia 13 de Março, que devia de ser de 1965
O Cifra veio à capital da província, no carro dos doentes, sem licença, portanto “desenfiado”, porque chegava o navio “Uíge” com tropas novas, onde devia vir um amigo da região do Cifra em Portugal, que trazia uma encomenda da mãe Joana. 
Quando deixou o carro dos doentes, no hospital, arranjou uma boleia num jeep para o cais de embarque. Pelo caminho tiveram um acidente com outra viatura militar, mas antes de vir a Polícia Militar, o Cifra abandonou o local a mancar, porque não tinha autorização para se deslocar à capital da província. Foi com dores até ao cais, mas quando lá chegou o amigo já tinha desembarcado e seguido com o seu batalhão, levando a encomenda da mãe Joana, não sabe o Cifra para onde.

Triste e com dores, sentou-se no muro, que também fazia de banco, na beira do rio, com a maré baixa, calor húmido e sufocante, o barco lá ao longe um pouco inclinado, pois devia de estar com o casco a bater no lodo, esperando a maré cheia. Tinha saído pela manhã de Mansoa, no carro dos doentes, a caminho do hospital, contente e sem qualquer dor, e regressou à tarde triste e cheio de dores, vindo do hospital.
Durante a viagem de regresso começou a pensar no barco inclinado, que no seu pensamento talvez estivesse a ir ao fundo, e um dia, no futuro, já não o levaria de regresso à Europa. 
Naquele momento o barco devia de estar sem militares vestidos com um camuflado novo, que já tinham desembarcado, talvez prontos ou não, para uma guerra, num cenário muito longe de onde eram oriundos, no próximo dia, talvez com a maré cheia, iriam embarcar novos militares, mais velhos dois anos, com o camuflado velho, roto e coçado, fartos de guerra, e também já não teria o peso do equipamento bélico, que tinha transportado da Europa, que devia ser, armas, canhões e explosivos, que talvez servissem para matar pessoas, mas no pensamento do Cifra, o barco estava inclinado, quase a ir ao fundo, pois a maré estava baixa, e o Ilhéu do Rei, que se via do lado de lá do barco inclinado, com paisagem africana, e não europeia, mais parecendo um vigilante, com os olhos muito abertos, a ver quem entrava e saía do rio. 

Entretanto o carro dos doentes chegou a Mansoa, alguém ajudou o Cifra a saltar do veículo militar, e o sacana do Curvas, alto e refilão, que o esperava, junto do Setúbal, do Trinta e Seis, do Marafado, do Mister Hóstia e do Furriel Miliciano, a fumar o cigarro feito à mão, pois estavam à espera de abrir a encomenda, e comerem e beberem o que a mãe Joana tinha mandado para o seu filho, que andava na Guiné a dar o corpo às balas, diz-lhe a sorrir: 
- Porra, a encomenda devia de ser grande, até vens a mancar com o peso!

O Cifra fechou o diário, com receio que lhe explodisse nas mãos!.

Tony Borie, 2010
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12514: Bom ou mau tempo na bolanha (41): "Contra-guerrilheiro"

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Bem podia se chamar "as desventuras dum militar em Bissau"...

Caro "Cifra", hoje as tuas recordações são de duas datas.
Quanto à primeira, quero crer que a distância temporal te faz 'ampliar' as considerações... pode lá ser isso que te veio à lembrança!

Quanto à 'caça à encomenda' bem se pode dizer que o 'desenfianço' ia saindo caro.
Claro que os amigos tinham que te mimar com piadinhas, Aliás, só podiam, pois a merenda 'foi-se'!
Mas, olha, deve-te ter restado a consolação de que o petisco deverá ter aquecido o estômago e o coração de alguns 'pobres diabos' que estavam a começar a aprender.

Abraço
Hélder S.

Rogerio Cardoso disse...

Caro Amigo Tony
Primeiro que tudo, os meus parabens por mais este artigo, que em poucas palavras dizes muito, a tal ponto que muitos de nós vão relembrar casos semelhantes.
O que vou contar não se passou comigo mas com outros camaradas, que por acaso eram cabos cripto. Um dia veio uma encomenda, do norte do pais, talvez da zona da Régua, que continha presunto, paios, chouriças e outros afins, que não passava pelo estreito todos os dias. O destinatário que era um pouco "graxa", convidou a oficialiada toda para o repasto, para o fim do dia. Então a "malandragem" comeu antecipadamente tudo o que estava dentro da caixa e repos a encomemda com pedras. Chegado o momento, todos presentes, houve pela parte do dono da encomenda um pequeno dircurso sobre a qualidade caseira dos produtos que iriam comer, e a malta já com água na boca esperando já com falta de paciência. Depois da caixa aberta, caem os queixos ao seu dono, humilhado e com vergonha, gritou a plenos pulmões " se eu descubro quem foi o cabrão que comeu o que estava aqui dentro, dou-lhe um tiro nos cornos", claro no fim a risada foi geral. Ele nunca soube quem tinha sido o autor, foi o seu melhor amigo, que ainda hoje goza quando se lembra.
Roger
Cart.643-AGUIAS NEGRAS