segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 – P12552: Memórias de Gabú (José Saúde) (37): Que é feito de ti, camarada Rui ?



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.



As minhas memórias de Gabu

Rui, oriundo dos choupais de Coimbra, um afidalgado cavalheiro

Que é feito de ti, camarada?

Mostrava-se um rapaz amigo. Não lhe conheci momentos conflituosos que gerassem mal estar entre os camaradas. A minha cama, durante o tempo de uma comissão que fora entretanto antecipada graças à Revolução dos Cravos que se desenrolou com o 25 de abril de 1974, situava-se mesmo ao lado da sua. Dissecávamos constantemente conversas sobre as nossas vidas. Falávamos das namoradas, dos nossos tempos de escola, dos amigos, do futebol e, como era óbvio, da guerra na Guiné. O Rui era um companheirão. 

Não tenho a certeza da sua verdadeira especialidade, mas julgo que se tratava de um camarada de minas e armadilhas. O outro furriel miliciano desta especialidade era o Santos e disso não me restam dúvidas algumas. Acontece que no momento em que o capitão decidiu atribuir algumas tarefas ao pessoal da Companhia, coube ao Rui abdicar da sua especialidade e ficar como o furriel vagomestre do quartel.

Recordo a azáfama do Rui no princípio da sua novata e primária experiência. A sua roda-viva quotidiana em coordenar a tarefa das compras; na feitura das refeições para o rancho; no cuidar com preceito de todo o material comestível que tinha chegado na coluna do último reabastecimento; se havia, ou não, faltas que obedecessem a uma prévia informação superior; nas suas idas constantes a procurar hortaliças, possíveis, para completar as refeições do rancho, ou na aquisição peças de carne fresca que os militares muito apreciavam; nas contas meteóricas ao dinheiro que o 1º sargento da secretaria diariamente lhe entregava; revejo-o a manusear os pesos (escudos), em notas, para as citadas compras; compras que eram enquadradas com o dinheiro disponível; enfim, um rol de movimentos financeiros, também mentais, que o Rui já tratava com ligeireza.

Esporadicamente deparava-me com o Rui arreliado. O capitão e o sargento imponham-lhe rédeas curtas. Exigiam-lhe o teor das contas tim-tim. Os custos do “material” e o que sobrava das compras. E o meu camarada ficava fulo como uma barata. “Estão a duvidar de mim”, dizia-me um bom do Rui. A dúvida, na minha pressuposta opinião, situava-se nas cúpulas dos comandos da Companhia. Não no furriel miliciano que se limitava a exercer funções para as quais fora chamado já em território guineense. Funções, aliás, que se assumiam como contas de um outro “abastado” rosário, não o dele.

Mas com o evoluir do tempo, o Rui começou a conhecer as manhas do sistema, presumo.   Começou a saber lidar com a “troika” (capitão, 1º sargento e vagomestre) imposta pelos ortodoxos métodos que a guerra ultramarina declarava. Suponho que a sua postura mudou radicalmente. Atravessou um deserto de dúvidas, ergueu-se, iniciou uma peleja de bate-papos com a hierarquia militar e a certa altura a sua voz também se fez ouvir. O toque do clarim que impunha sentido, deixou-o de perturbar.

Com a bandeira branca hasteada no seio da “troika”, o Rui começou a disfrutar de mais tempo para si, deixou de se arreliar com as permanentes chamadas à secretaria para mais um apuro de contas, bem como das possíveis contestações que os profissionais em princípio lhe dirigiam, e eis então o nosso camarada rei e senhor de uma tarefa com a qual se deparou ao longo da nossa comissão.

As minhas memórias de Gabu sugerem momentos irrepreensíveis num território onde a guerra se cruzou, também, com outros pormenores que passavam ao lado do soldado sem medo. Lembro-me da canseira do Rui, e do 1º sargento, a vistoriar à risca a presença de camaradas de outras unidades militares que passavam, ocasionalmente, pelo nosso quartel. Conclui, depois, que cada estadia era faturada e entrava nas contas como uma diária ou como uma meia diária. Dia de partida e de chegada, não obstante a hora constatada, era atribuída a cem por cento para as contas da unidade. Normalmente a presença de um camarada de passagem ser-lhe-ia conferida a percentagem máxima. Era da praxe.

Numa tarde sem stress, e já com as contas de tesouraria feitas, o Rui, homem de Coimbra, pousou para a minha máquina fotográfica Olympus e eis que a sua imagem se mantém inalterável no baú das minhas recordações guineenses. 

Resta concluir e parafrasear o velho fado coimbrão cantado por Fernando Machado Soares: “Gabu (Coimbra) tem mais encanto, na hora da despedida”… Que é feito de ti, camarada?




Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

19 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P12475: Memórias de Gabú (José Saúde) (36): Visita à piscina do QG, em Bissau. Uma ida a banhos.


2 comentários:

Antunes disse...

Gente que passou por Gabu. Eu passei por Gabu em Dezembro de 1970 a caminho de Paúnca. CCART 11 - 70/72 Fur. Mil. Antunes Atirador de Artilharia


Para todos um bom ano de 2014.

Mário Vasconcelos disse...

Uma forma muito atraente e humana de reviver uma amizade,que por certo nunca acabará. Um abraço para os dois camaradas.