sexta-feira, 23 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1623: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (39): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (1)


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > Aerograma, com data de 9/11/ [1968], enviado a Cristina Allen. O Beja Santos escrevia diaria e compulsivamente aos seus amigos e familiares. Eis um excerto do aerograma:

Meu adorado amor: Tivemos grande susto com os tiros rebeldes na fonte, e houve que elaborar um novo programa de prevenção, a fim de suprir deficiências na vigilância. De manhã, veio uma coluna de Finete que trouxe o correio da semana. Notícias de minha mãe e do Ruy [Cinatti]. Também tu não pudeste escrever. Não estejas zangada comigo, meu amor. Veio correio oficial, perguntas e formulários administrativos, houve de pôr em dia a mala posta militar. Ao raiar da claridade parto, parto para Bambadinca, numa missão deveras amistosa. Quarta feira, saída do pelotão, eu ficarei mais uns dias paar pôr ao facto o nosso cinzelador e régulo (...)."


Capa de A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queirós. Porto: Lello & Irmão, Editores. 1945. (Colecção lello, 1). Capa de Alberto Sousa, inspirada na entrada principal da Quinta de Tormes (situada no Concelho de Baião, é hohe sede da Fundação Eça de Queiroz, e vale uma visita), onde se passa a história do príncipe Jacinto e do seu amigo Zé Fernandes. Escreve o Beja Santos à sua mãe: "Imagine que reli sofregamente A Cidade e as Serras, do Eça. Encontrei na messe de oficiais em Bambadinca uma edição de 1945, da Lello" (...).

O Tigre de Missirá tinha fama de predador em Bambadinca... Fechavam-se portas, janelas e gavetas, ao ouvir-se o grito da sentinela: Vem aí o Tigre !.... De qualquer modo, depois do ataque de 19 de Março de 1968, ele partia da estaca zero, começando a reconstituir a sua biblioteca (e a sua morança) com alguns livros que trouxe de Bissau, depois da intervenção cirúrgica a que foi submetido no Hospital Militar. (LG)

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




39ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 8 de Março de 2007.


Caro Luís, fui ver o filme Cartas de Iwo Jima, do Clint Eastwood, que me comoveu muito e procuro aproveitar aquelas cartas nipónicas dos soldados do Imperador para as suas famílias adaptando-as às cartas que ia escrevendo às pessoas que mais amava.

O período que medeia entre os fins de Março e Maio foram uma silenciosa epopeia de guerra e paz: idas diárias a Mato de Cão, desmatou-se, repararam-se caminhos na antevisão da época das chuvas, fizeram-se tijolos, felizmente os rebeldes estiveram calmos, desconhecendo nas idas e vindas a Mato de Cão lhes rondava o paradeiro.

Este tipo de cartas talvez seja uma boa resposta para eu trazer à cena os meus problemas íntimos e, tal como os soldados do Imperador, falar da cultura densa, dos meus afectos e dos sonhos que deixara a marinar. Seguem dois livros pelo correio, sugiro as imagens que tens da reconstrução de Missirá e os apontamentos do Luís Casanova (...). Um abraço do Mário.


Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (1)
por Beja Santos



Para o Ruy Cinatti (2)

Ruy, Dear Father,


Regressei a Missirá há dois dias. Grande parte do quartel e da povoação foram devorados pelas chamas, devido a uma flagelação que aqui ocorreu no passado dia 19. Tenho abrigos danificados, chegou a altura de reconstruir mais dois, perderam-se 17 cubatas, a vida tornou-se muito difícil para todos nós. Há gente sem comida e falta arroz em Bambadinca. Antes da operação, estive no Batalhão de Engenharia e recebi muitas promessas. Com este revés, confio que o cimento, o arame farpado e os outros materiais de construção civil venham em quantidade suficiente para começar de novo.

A época das chuvas vai chegar em meados de Abril e é por isso que já estamos a construir os tijolos, numa corrida contra o tempo. A actividade militar continua com as idas e vindas diárias e nocturnas a Mato de Cão. A destruição de um aquartelamento implica muita burocracia com os abates, contagem de material. Como esta guerra é muito especial, quando falei sobre lista de material perdido, que é uma lista de enlouquecer, foi-me respondido que eu devia registar todo o material perdido, fazendo uma relação dos estragos através de uma comparação a olho vivo com o resto da carga não destruída...

Os meus soldados ajudam-me imenso, já que continuam a não regatear esforços, acumulando agora, em permanência, actividades de construção civil. Falta-nos muito arroz para a população civil , como disse, e ofereceram-nos arroz apanhado durante uma operação no Corubal.

Desapareceram no fogo todos os meus livros e discos. Peço-lhe pois que me dê a sua ajuda oferecendo-me alguns livros. Já escrevi ao meu padrinho e seu afilhado pedindo livros da Portugália Editora: romances contemporâneos, clássicos e ensaios. Veja se me pode oferecer poesia francesa contemporânea, romances da Ulisseia como a Viagem ao fim da noite, do Louis-Ferdinand Céline, que nunca tive oportunidade de ler. Aceito tudo, como Job.

Fui punido com dois dias de prisão e não terei férias. A Cristina está desconsolada e fala em vir viver em Bissau, dando aulas no liceu. Não tenho ainda opinião formada e confio no seu conselho. O Comandante Teixeira da Mota continua a escrever e tem-me dado apoio com as suas cartas. Esta experiência é muito dura, a solidão pesa e tenho uma saudade infinita de todos vós.

O Carlos Sampaio, filho do seu amigo Fausto Sampaio, está mobilizado para Moçambique. O estado de saúde da minha mãe deteriora-se e peço-lhe que lhe telefone. As cartas que recebo vêm cheias de censuras e azedume, o corte de relações com a Cristina levou à formação de grupos pró e contra, muito correio que aqui recebo traz as chamas do inferno.

Desculpe o tom desolado com que lhe escrevo, é com muita dificuldade que me habituo à ideia de que além de combater vou reconstruir este quartel animado pela vontade de o ver renascer das cinzas. Despeço-me com muita amizade e gratidão pela companhia que me dá. Perderam-se as suas cartas mas cresceu a estima que lhe tenho.





Capa do romance de Erico Veríssimo, Música ao Longe, 7ª ed. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. Capa de Bernardo Marques. (Colecção Livros do Brasil, 9). Com alguns livros comprados em Bissau e com outros, emprestadados por amigos e camaradas, o Alf Beja Santos lá foi reconstituindo a sua preciosa biblioteca, devoradada pelas chamas na noite do ataque a Missirá, em 19 de Março de 1969. No penúltimo post (3), Beja Santos escreveu: "Leio e releio sofregamente Música ao longe que me atrai pela sua simplicidade, pelos enredos plausíveis, pelo exótico de um mundo rural que eu desconheço. Abençoado o bem que Erico Veríssimo me faz. E daqui passo para O mistério do Bellona Club por Dorothy L. Sayers. Esta escritora britânica criou o detective Lord Peter Wimsey, um sofisticado que lê manuscritos de Justiniano, é requintado gastrófilo e tem um criado que é um verdadeiro pesquisador e angariador de informações".



Para o Carlos Sampaio (4)


Carlos, meu querido Amigo,

Recebi a tua carta quando estava a ser operado ao joelho direito em Bissau. Sei que partes para Moçambique em Junho e que já estás a formar batalhão. Rezo para que a tua comissão seja menos dura possível. Quando regressei a Missirá, há dias, todo o recheio da minha morança tinha ardido. Com excepção de três livros que me ofereceste, e que me acompanharam até Bissau, tudo se perdeu: os teus poemas, os teus desenhos, o carinho do teu estímulo.

Vezes sem conta relembro os nossos serões na Praça Pasteur nº 8, 2º esquerdo, a tua companhia no almoço no dia em que fui para Mafra e em que me deste a Bíblia de Jerusalém e um lindo livro de pintura grega. Felizmente que deixei ao cuidado da minha mãe aquele óleo que pintaste na Anadia, naquela semana de férias antes de eu partir. A Cristina fala-me muito da ajuda que lhe tens dado e sente-se preocupada com o teu ar fatigado.

Por aqui está tudo muito difícil, não sei se te hei-de incomodar com as obras da arrecadação que estamos agora a reparar, com as obras de um poço para termos água potável dentro de Missirá ou a substituição das três fileiras de arame farpado: a única consolação é que esta linguagem dentro de meses vai entrar no teu dia a dia.

Não nos veremos antes do final das nossas comissões e tu és o meu maior amigo. Sei que tens projectos para, depois dos estudos, trabalharmos juntos na livraria Sampedro. Contas comigo, gosto cada vez mais da aventura do livro, produzi-lo e vê-lo nas mãos dos outros. É esse projecto comum que me impede hoje de te dizer que estes mais de dois anos em que não conversaremos face a face me custam muito. Teremos uma vida inteira para editar e vender livros, que bom!

Estou muito cansado hoje, são duas da manhã e às cinco parto para Mato de Cão, junto do rio Geba. Desejo-te coragem e que tenhas sempre o entusiasmo que contagia a minha vida. Por favor, escreve-me.





Capa do romance policial O mistério do Bellona Club, de Dorothy L. Sayers. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 35). Capa de Cândido da Costa Pinto. "Aquela prodigiosa capa do Cândido da Costa Pinto sempre me intrigara, tinha chegado o momento de satisfazer a curiosidade com a trama da intriga policial" - escreveu Beja Santos, no post de 10 de Março último (3).


Para o Padre António de Almeida Fazenda, S.J.

Querido Padre Fazenda,

Recebi a sua carta que muito consolo me deu. Fico triste com o sofrimento que a sua zona lhe provoca e agradeço as suas orações. Procurei saber em Bissau se havia documentação sobre os Jesuítas que passaram por aqui nos séculos XVII e XVIII, nada encontrei mas já escrevi à maior autoridade em historiografia da Guiné, o Comandante Teixeira da Mota, e depois dar-lhe-ei notícias.

O meu quartel está reduzido a menos de metade, o que me aflige é o sofrimento das famílias dos soldados, que foram os mais atingidos, mas a população civil também perdeu algumas casas. Falta muita alimentação e ando permanentemente a fazer colunas de reabastecimento.

Lembro todos os dias com saudade as aulas de Latim e Grego, lembro a sua generosidade e os valores que me procurou transmitir. Confio que possa contar muitos e bons anos com esse seu apoio, aprendendo com a sua serenidade e despojamento. Desculpe ser breve, o cansaço está a tomar conta de mim, fui castigado e não posso ver-vos tão cedo. De resto, sei que vou contar com a misericórdia de Deus mas há momentos em que um homem fica de rastos. Mas amanhã estarei muito melhor, acredite. Contando com a sua benção, receba a muita estima daquele que admira a sua espiritualidade.


Para Angela Carlota Gonçalves Beja

Querida Maezinha:

Voltei a Missirá, a operação (3), como lhe disse ao telefone, correu muito bem, desapareceram as dores, ando sem sofrimento. Fico contente com as notícias que me deu, com o estado de saúde da sua irmã Carlota. Sei que vai passar férias a S. Pedro do Sul e fazer tratamentos, na companhia do Rodolfo. Não se esqueça de me escrever. Sei que lhe é difícil, mas, por favor, evite mais pormenores da sua zanga com a minha namorada.

Recebo constantemente correio que me inquieta e conto com o amparo de todos os meus entes queridos. Amparo, porque aqui há uma guerra, há incêndios como recentemente aconteceu em Missirá, onde perdemos muitas cubatas, tenho edifícios danificados, não sei o que nos aconteceria se sofrêssemos novo ataque. Agradeço-lhe as visitas que faz ao Fodé Dahaba e ao Paulo Semedo. Diga aos dois, por favor, que o Cherno Suane e o Mamadu Camará vão ser condecorados por feitos de bravura.

Os próximos meses vão ser muito duros pois estamos a reconstruir as casas da população civil e a melhorar a segurança do quartel. Perdi os meus livros todos, não tem importância nenhuma mas agradecia que pensasse nalguns livros a pretexto do meu aniversário. Imagine que reli sofregamente A Cidade e as Serras, do Eça. Encontrei na messe de oficiais em Bambadinca uma edição de 1945, da Lello. A Maezinha tinha-me oferecido As Minas de Salomão, O Mandarim e A Correspondência de Fradique Mendes.

No 7º ano A Cidade e as Serras foi leitura obrigatória. Achei muita graça o arranque do romance com aquele D. Galião que ao descer a travessa da Trabuqueta encontrou D. Miguel e ficou fiel ao miguelismo, exilando-se em Paris nos Campos Elísios 202, onde o Jacinto respirou progresso e civilização. A obra ajudou-me imenso até para entender a filosofia do fim do século XIX, sobretudo o positivismo e Schopenhauer.
A releitura desta obra prima é outra coisa. A força que o Eça imprime às descrições da ambientação do Jacinto em Tormes tem um brilho que ainda hoje me deslumbra. O recurso à figura do Zé Fernandes, um alter ego do Eça, é uma solução que anima a leitura, provocando uma excelente relação directa entre o Jacinto, a civilização parisiense e o contraste com o universo do Baixo Douro onde vai ter o desfecho feliz a obra. Deixo-me citar o final do romance:

"Em fila começámos a subir para a serra. A tarde adoçava o seu esplendor de Estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de casas amáveis, flamejavam com um fulgor de oiro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira".

Este livrinho tem capa do Alberto de Souza, inimitável aguarelista. Recomendo-lhe que leve este Eça para S. Pedro do Sul. As belezas aqui são muito diferentes. A cor da terra, como lhe disse, assinala o braseiro do calor permanente, a vegetação chega a ser exuberante e dizem-me que no Sul da Guiné, onde agora a guerra é horrível, há belezas incomparáveis na floresta hermética. Do que mais gosto é ver o pôr do Sol ao fim da tarde, ígneo a derramar-se sobre os palmeirais de Finete, quando cambo o Geba e venho pela bolanha. É um pôr do Sol súbito, próprio dos trópicos. Sei que vou guardar esta imagem toda a vida.

Fui castigado e não irei tão cedo a Portugal. Não se preocupe, estou bem, não me esqueço dos valores que me transmitiu e do amor que me tem oferecido. Quando regressar, procurarei dar-lhe companhia, iremos a exposições e espectáculos, folgo imenso sabendo que se mantém convivente e muito curiosa. Receba um beijo deste filho que nunca a esquece.


Para Cristina Allen


Meu adorado amor


Promessas para reconstruir o quartel tenho tido muitas, aos poucos vai chegando material, mas as idas a Mato de Cão têm-se multiplicado. Felizmente que tenho o exemplo monumental dos soldados que nada recusam. O Pimbas conseguiu o milagre e cedeu-me temporariamente mais 10 militares que nos ajudam nas desmatações e nos reforços já que a vida continua entre os patrulhamentos obrigatórios e a reconstrução de Missirá.
Antes que me esqueça queria-te pedir o grande favor de me comprares o Canto dos Bosques do Dimitri Chostakovitch, que ouvimos na Valentim de Carvalho. É uma edição do Chant du Monde, tu gostaste muito das vozes do tenor e baixo, não tenho dinheiro para comprar muito nem tão cedo irei refazer a discoteca, mas preciso de música vibrante que me levante moral.
Iremos continuar a falar da tua possível vinda para Bissau. A Maria Luísa Abranches está a obter informações sobre preços de casas, em Bissau, como te disse falei no liceu, é preciso concorrer em Agosto, entregando o diploma do curso, certidões como a do registo criminal e o formulário anticomunista, com registo do notário local. Há sempre vagas e o teu diploma falará por si, já que há muitos professores só com o 3º ciclo. Citas o exemplo do David Payne e da Isabel, não é a mesma coisa, o David está em Bambadinca, eu em Missirá e não há ainda notícias se algum dia saio do teatro de guerra. Vamos aguardar com tranquilidade, conto com o teu exemplo e a muita estima que me devotas.
Falando de trivialidades, o cabo Raposo anda desaparafusado, não nos deixa dormir há 4 noites com as suspeitas de que os rebeldes rondam junto do arame farpado, diz que vê fogos nas redondezas e ouve vozes. Consegue contagiar outra gente e noutro dia um macaco aproximou-se do arame farpado, dispararam uma rajada que se transformou em minutos em milhares de tiros atirados para o ar.
O auto da Fatu continua. Não sei se já te expliquei o que é uma deprecada, eu escrevo uma série de perguntas alusivas a um acontecimento e num posto da GNR alguém interroga um oficial sargento ou praça. Dou-te um exemplo com as perguntas que mandei hoje: "É do conhecimento do Sr. Capitão Miliciano Luís Vassalo Namorado Rosa que a granada que motivou as ocorrência não é do tipo de fumos mas sim armadilha? Que providências tomou face ao sinistro de 19 de Abril de 1967?".
Podes imaginar o trabalho de memória, o que o sobredito capitão fica a pensar do que eu sei que ele não sabe, mas é a única maneira de eu tirar as possíveis conclusões que permitam um mínimo de reparação para a pobre da Fatu.
A escala de férias, que estava a funcionar desde Janeiro, fica provisoriamente sem efeito. Não posso conceder férias, a não ser a título excepcional, nos próximos dois meses, até Missirá estar reconstruída. Rezo todos os dias para que não sejamos atacados nas próximas semanas. Desta vez, seria mesmo punido com justiça, já que não tenho valas abertas, dei prioridade à reconstrução de casas.
A propósito de punição, recebi a visita do Comandante Militar que veio aqui com outras altas patentes. O brigadeiro foi correctíssimo no tom em que me falou, quis visitar tudo, fez perguntas pertinentes, aceitou como um cavalheiro o nosso humilde acolhimento, deixou algumas mensagens de estímulo. Tudo tão diferente das visitas anteriores!
A todos a quem escrevo peço livros, e não te excepciono. Quando vim para a Guiné, julguei que iria privilegiar leituras à volta das ciências históricas, da antropologia e da sociologia. Puro engano, como tu sabes. Não tenho feito outra coisa que ler com entusiasmo tudo quanto é ficção, salvo os livros que me permitem conhecer melhor a Guiné. Como agora a oferta já não é abundante, deito mão ao que há.
O Carlos Sampaio tinha-me oferecido um ensaio precioso Arte e Mito, do Ernesto Grassi. Não imaginas como no meio deste desconforto todo é entusiasmante andar a discutir a natureza da arte, qual o móbil original da realização artística, o que está na origem da poesia ou da música, se a arte se entrepõe entre nós e a Natureza, o que significa a expressão "obra de arte", o porquê do que seleccionamos do passado e chega ao nosso presente, de que maneira interpretamos a ordem dos acontecimentos de um projecto artístico, ao nível dos dados sensoriais, da abstracção que fazemos da matéria e da forma, o papel do mundo religioso, como do mundo mítico surge a arte.
Este ensaio tem sido uma excelente companhia e quero que saibas que outro livro que o Carlos me ofereceu Espera de Deus me está a impressionar muito.
A noite já vai muito alta, ainda não perguntei pelos teus estudos, sei que estás a estudar com entusiasmo, confio que farás os teus últimos exames em Junho e terás justas férias. Não te preocupes comigo, com o teu amor todas estas penas vão ser suportadas e superadas. Tenho escrito ao Luís Zagalo Matos e vou contar-te tudo no correio de amanhã. Ele é muito estimado em Missirá e fico contente de vocês terem estudado juntos.
Beijo a minha senhora jovem dona, peço-te do coração que não estejas amargurada com os problemas do mau relacionamento com a minha família e tal como Madiu Colubali me escreveu de Dulombi onde foi aos funerais da mãe desejando-me beijes para alfer, toda a ternura entre Missirá e Lisboa e até amanhã.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1600: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (38): Missirá, a Fénix renascida
(2) Outras referências do Beja Santos ao poeta e seu amigo Ruy Cinatti (1915-1986): Vd. posts de
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá
10 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel
10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

(3) Vd. post de 10 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá
(4) Carlos José Paulo Sampaio, Alf Mil, da CCAÇ 2515/BCAÇ 2875, morto em Moçambique, em 2 de Fevereiro de 1970. Era natural do concelho de Anadia.

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