segunda-feira, 5 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Chegou a vez do Cristóvão de Aguiar entrar em cena.
Haverá razão para lhe dar o reconhecido destaque: tanto como me é dado saber, é o nome sonante que se imporá a partir dos anos 80 e praticamente até à actualidade.
Não é uma leitura amável, tal como José Martins Garcia sobressai pelo vigor da “açoarianidade” e um registo brutal das circunstâncias e dos gestos dos homens.

Um Abraço do
Mário


Um açoriano ciclónico com a cabeça cheia de Guiné

Beja Santos

Chama-se Cristóvão de Aguiar (1940), veio de São Miguel para Coimbra, interrompeu o curso e seguiu para a Guiné. Escreveu bastante prosa até que em 1985 aconteceu o “Ciclone de Setembro (Romance ou o Que Lhe Queiram Chamar)”, publicado pela Editorial Caminho. A Guiné tornou-se-lhe assunto recorrente. Formou-se em Filologia Germânica, foi redactor da Revista Vértice e leitor de Língua Inglesa na Universidade de Coimbra, tem recebido importantes prémios literários. Este Ciclone de Setembro de que vamos falar já apareceu com vários nomes, compreende-se como o seu autor o não queira deixar em paz. Como vamos ver.

É um ciclone autobiográfico, sem tirar nem pôr, até é possível imaginar a infância no Pico da Pedra, os estudos no liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada e, subitamente, chegamos ao primeiro grupo de combate da CCaç 666, que ele comandou.

No princípio, corre Setembro e a tarde espreguiça-se no supliciado soalheiro da lembrança, escreve ele e eu lembro-me de Nemésio, um dos patriarcas desta geração. Chegara a hora de enfiar as memórias, de se abrir a diferentes ventos, os das ilhas, os da guerra, os que preludiam o futuro, a obsidiante Guiné. Mas o génese do ciclone é portentoso.

Imagem da infância: “Ao ombro, preso pelas alças de cadarço, levo o saquitel enxadrezado da merenda; na mão, uma maleta envernizada, com um losango cor-de-canário ao meio da tampa. Trajo uma vestimenta em bom uso, a bem dizer nova do trinque: casaco estrenido e tom cinzento-claro, calça bege vincada a poder de ferro bem aquecido de brasas por sobre um pedaço de papel de jornal velho – nada melhor para o vinco ficar como um prumo. Vou descendo a ladeira da Rua do Norte nestes preparos domingueiros porque me encaminho para Santana, o campo de aviação que serve a ilha. O Dakota americano aterra às segundas, quartas e sextas... só quando estiver perto da casa amarela da araucária gigante, a um escassilho de tempo do Campo numa esgueirada corrida das minhas, é que hei-de enfim ter a certeza de que o Dakota, vindo Banda d’Além da Lomba de Santa Barbara, se vem fazendo à pista, desencolhidas já as três rodinhas do trem de aterragem”.

Um açoriano não sabe expressar-se se não falar do mar salgado, dos campos verdes, da bagacina, da solidão infinita que é o apanágio do viver em ilha, um marulhar atlântico que nunca mais se despega da pele. Um açoriano está sempre em condições de falar das noites esborralhadas de vento, dos temporais, da suspeita dos sismos, do vento que sopra pelas canadas, do labor imigrante e da construção das casas, o sonho de um melhor viver. Nunca se esquece do nascer da casa e de quem a constrói, naquelas ilhas: “A casa nova, ou melhor dizendo o mestre Manuel Pinzinho, um dos pedreiros da obra, oriundo dos Fenais da Luz. Assenta-se numa pedra de ladrilho contra a parede-do-meio-da-casa, a única que permaneceu do anterior casebre quase em ruínas. Vai colherando com vagares ilhéus o mata-bicho das nove da manhã: uma tigela de barro rasa de sopas de leite de pão de milho migado, uma lasquinha de queijo amarelo na mão esquerda, que vai condutando por via de iludir o travor bodumoso do leite acabadinho de ordenhar da cabra malhada do Guerra e aligeirar a massa embolada do pão enqueijado no seu caminho deslizante para o caninho do alimento”. Lembranças das rapaziadas, das ternuras familiares, das festas. Lembrança maior é a do pão, dos alguidares da amassaria. Mas também Vavó Aparecida, afecto singular na vida deste autor disfarçado de Arquelau de Mendonça. Depois o amor temporão, que deixam a marca da inocência. E os estudos, a convivência, as rivalidades inter-ilhas. E o peso das relações desencontradas com o pai, sobretudo.

Chegar e partir são momentos extraordinários, nunca se sabe quando se regressa, tais as inclemências do tempo, é por isso que as casas das ilhas estão preparadas para a hospitalidade imprevista de quem não pode partir ou é forçado a demorar graças ao mau tempo. Parte-se com malas e embrulhos, recebe-se a bênção, há sempre o olhar marejado da despedida, há sempre o calor da chegada.

Chegou a hora de uma aventurosa viagem, estão semeados os ventos da guerra, Arquelau acaba de chegar à Guiné, responde por 33 homens operacionais, um rancheiro, um primeiro-cabo telegrafista junta-se um casal de rafeiros, é assim que se parte para o Leste: Por ordem de SEXA, o comandante-chefe, segue para a sede do Batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o primeiro grupo de combate desta companhia. Vai abonado de alimentação até hoje. Até o soldado Covilhã da companhia acantonada em Fajonquito, e adido à 666 durante umas semanas devido a reparações efectuadas, por causa das cheias, num pontão sobre o Geba seguiu com guia de marcha: por ter morrido afogado no rio Geba quando se procediam obras de restauro num pontão sobre o mesmo, regressa, sobre escolta, à sua companhia, em Fajonquito, o soldado número mil setecentos e cinquenta, barra sessenta e três, o qual vai abonado de pré e alimentação até hoje inclusive...”

Em Jabicunda faz-se um pouco de psico-social, aliás custa pouco, são uns comprimidos de laboratório militar. Segue-se para Sonaco, povoação Fula, ainda pejada pelo comércio de brancos e libaneses. Arquelau assiste ao pesar da mancarra, o peso está sempre do lado do comerciante. Sonaco é um pouco de paraíso dentro do inferno da guerrilha. Arquelau (ou quem se esconde sobre este nome) medita sobre as reais qualidades do soldado português: “Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele”. O baptismo de fogo aconteceu no mato do Caresse. O comandante da companhia que os acolhe não se terá lá comportado muito bem, é preciso andar sempre com um olho bem arregalado neste capitão Castelar, pelo que fica escrito por Cristóvão de Aguiar um carrasco e um energúmeno: o guia, um prisioneiro, qualquer que seja o resultado da operação, será sempre abatido. “Depois faz constar do relatório: temos a lamentar a morte do guia indígena, guerrilheiro capturado em anterior operação, o qual, ao preparar-se para fugir em direcção mato, onde certamente se iria juntar às hostes inimigas, foi abatido a tiro por homens não identificados das nossas tropas... O palavreado do capitão Castelar tornou-se já um papel químico. Utiliza-o sempre nos circunstanciados relatórios enviados aos superiores hierárquicos. Também nas suas conversas quezilentas lança mão de um outro papel químico: não sou salazarista, nem político, nem democrata, nem muito menos comunista; não sou nada, meus senhores, sou apenas um militar que cumpre ordens; tenho raiva a quem se deixa levar por ideias subversivas, entendeu, doutor?”

Em certas circunstâncias, o torcionário Castelar impõe conivências, empurra a execução sumária do prisioneiro guia para um alferes. A descrição de Cristóvão de Aguiar faz-nos ribombar até ao sofrimento extremo: “O alferes não dispara apenas um tiro mas um carregador inteiro. O prisioneiro fez-lhe perder o domínio dos nervos. Após ter aberto o coval, disse para o alferes: Mate-me de costas, nosso alfero; mas antes, deixe-me fazer uma oração a Alá... E voltou-se para Meca, prostrado. Terminada a reza, disse já de costas para o oficial: Pode disparar, nosso alfero”. Não sei por onde anda o capitão Castelar, reduzido neste livro à condição mais mísera dos desgraçados morais. Durante uma emboscada, ele revelará a sua verdadeira condição, raspando-se ao tiroteio. Mas depois veio-lhe a gana e volta a dar ordens para matar o guia.

Este ciclone de Setembro, insiste-se, vai passar de obra para obra, como aqui se vai registar.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6092: Notas de leitura (87): Antologia O Corpo da Pátria, de Pinharanda Gomes (Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

"Puta de pátria que agradece aos coices..."

do Bretão