
Queridos amigos,
As picardias do nosso confrade Alberto Branquinho são como o brandy Constantino, já vêm de longe, ele pertence a essa rara linhagem de quem tece com humor, troçando dos escriturários e suas bravatas. Temos aqui uma novela que mete respeito, este major de operações vai passar à história e nunca saberemos, e talvez também não tenha importância nenhuma, o que por ali se passou tem algo de autobiográfico.
O que enriquece esta prosódia é a falta de referência quanto a lugares, nomes reais de sítios, rios, dia, mês, ano. É também deste modo que se lê de forma universal as facécias, os absurdos e os permanentes impasses que atravessam a trama daquela guerra ou daquelas guerras, como Alberto Branquinho gosta de sublinhar, para nosso proveito.
Um abraço do
Mário
Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho
Beja Santos
O nosso confrade Alberto Branquinho pertence à linhagem daqueles que trabalham no tear com ponto cáustico, fio mordaz e alguma mofa esvoaçante. De parágrafo económico, cortante, sente-se à légua o seu azedume com os operacionais de escritório, oficiais, sargentos e praças. E não fala da guerra, é tudo no plural, as múltiplas e variegadas guerras, como ele observa: “A guerra, ela mesma, é composta de muitas outras guerras, que também causam baixas: É a guerra entre as hierarquias, a guerra com as hierarquias, a guerra de militares com aspirações políticas, a guerra entre os que planeiam as guerras e os que têm que as fazer, a guerra entre os que fazem a guerra e os serviços de apoio ou de retaguarda, etc.”.
Acaba de publicar “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019.
São guerras universais, a topografia é irrelevante, o que parece funcional, lógico, extraído do melhor pragmatismo acaba no teatro do absurdo. Logo no planeamento operacional, o diálogo entre o oficial de operações e o capitão, o que parece claro deixa de o ser, afinal o homem da PIDE mente ou esconde, o funcionário colonial resguarda-se para o futuro, afinal é cabo-verdiano e o racismo na guerra da Guiné também conta.
Enquanto os homens do PAIGC fazem a cambança é hora de saída lá no batalhão, aquela operação terá de dois a três dias, testam-se as transmissões e logo um pouco mais adiante começam os pequeninos entraves, passa por ali um javali, é um restolho que provoca frémitos, surge o lodo e a malta enterra-se até aos joelhos, o guia anda às apalpadelas, fora aprisionado, parece que vai bem amarrado, nisto ouvem-se uns estoiros, mas são bem ao longe. Primeira cena do primeiro ato, ou coisa parecida. Na segunda cena, o oficial de operações anda para ali inconclusivo mas ansioso, precisa de um sucesso retumbante, um ronco, no posto de informações não lhe dão notícias, no mato ninguém se entende com a escuridão, o melhor é que comece a clarear, continua-se a patinhar na lama, o pessoal vai ensonado, faz-se um alto, quem guarda o prisioneiro pede a um camarada que fique em vigilância, o silêncio da noite interrompe-se com rajadas e disparos de RPG vindos da mata à esquerda, um fogo que vai durar vinte minutos. É nisto que se descobre que o prisioneiro deu às de vila Diogo, o capitão está descorçoado, perdeu-se o efeito-surpresa. Nova cena, o solilóquio do alferes Félix, interrompido por morteiradas, anda tudo num arrebol. O capitão toma decisões, não se pode continuar a operação, vai-se bater a zona, regressa-se ao quartel, fim do primeiro ato.
Novo ato, abre em esplendor, um ataque ao quartel, Alberto Branquinho dá-nos aqui uns parágrafos para antologia:
“O furriel Matos, da secretaria do Batalhão, foi apanhado pelo ataque no exterior do quartel, trajando farda de passeio. Como que indiferente à tanta confusão, vinha caminhando lentamente pela rua da povoação, frontal à porta de armas, entre terror e espanto. Não conseguia correr.
- Apocalipse! – murmurava.
Parou. Sentou-se na soleira da porta fechada de um dos poucos comerciantes que permaneciam na localidade e que ele costumava visitar aos Domingos.
- Minha mãe! Mãe…
Ao ouvir o silvo de uma granada que lhe passava sobre a cabeça, levantou-se. A granada rebentou na bolanha, a pouco mais que uma centena de metros à sua frente, seguida de um clarão que iluminou a noite.
- Ai, minha mãe!
Voltou a sentar-se até que os rebentamentos pareciam ter cessado, embora os obuses do quartel ainda fizessem fogo espaçadamente.
Levantou-se. Lentamente caminhou pelo meio da rua em direção à porta de armas. Ao chegar à porta, o cabo viu-o com a impecável farda de passeio, reconheceu-o entre o pó e o fumo e, em espanto, abriu-lhe a porta.
- Ó meu furriel, o que é que você anda a fazer aí fora?
- Estava a ver…
- Ó meu furriel, entre depressa. Já há dois mortos e uma porrada de feridos. O Posto de Socorros está cheio. Uma granada rebentou com uma caserna.
Já dentro e em fúria, o furriel Matos arrancou a arma das mãos do cabo, apontou, pela porta entreaberta, para o exterior, carregou no gatilho e despejou, de rajada, o carregador. Depois largou a arma no chão e desatou a correr. Só parou junto à cama. Deitou-se e colocou a almofada em cima da cabeça”.
A vida no Batalhão tem peripécias e facécias, todos notam que a relação entre o capitão e o major de operações desferiu, correm murmúrios, trocam-se conversas entre alferes, parece que o comandante de companhia vai partir, terá sido transferido, tudo por se ter recusado a punir ou a propor punição a quem deixou fugir o prisioneiro. E de facto o capitão entrega o comando da companhia ao alferes mais antigo. Muita coisa se irá passar na ausência do capitão. O major de operações informa que se vai voltar à carga, a operação vai ser repetida, escolhe o itinerário, tem informações sobre o local exato do objetivo. E informa o alferes que vai acompanhá-los, levam uma equipa de sapadores. E a tropa fica estarrecida quando o major dos papéis se põe à frente da coluna. Lá chegam junto ao objetivo, quem ali vivia fugiu espavorido, o major mandou deitar fogo às palhotas, o regresso é acompanhado de problemas, rebentamentos próximos, logo um furriel com um pé esfacelado, tempos depois chegou um helicóptero que levou o ferido e desapareceu através das árvores. O major vai derreado, mal entrou no quartel foi tratado no Posto de Socorros.
Já tratado, informou o comandante:
“Foi muito útil esta operação porque cheguei à conclusão que o IN está a passar informações no sentido de encaminhar a nossa atenção e a nossa atividade operacional para zonas que já abandonou”.
Tudo isto aparece escrito de forma séria, a galhofa fica para quem experimentou operações frustradas e comentários ignorantes como este. Muda a cena, regressa o capitão, a companhia arruma a trouxa e parte numa LDG para novo aquartelamento, entremeiam-se solilóquios, estamos agora num quartel que aparentemente tem acalmia, vão começar os males da paz podre até que a companhia regressa a Bissau, daqui se parte para uma missão de apoio à construção de um novo aquartelamento.
Segue-se o humor negro de diferentes quadros de regresso, o destino de cada um, é a última cena do último ato, lá no navio que os transportava de regresso a Lisboa os alferes disparavam frases, interrompiam-se, não é nada como tu dizes, o que se passou foi o seguinte, não, não foi assim, um alferes médico não gostou daquela gritaria com fuzis verbais, pediu-lhes para deixarem a guerra em paz, o alferes Félix respondeu-lhe que não era capaz, não fizeram uma “guerra santa”…
Cai o pano, soube a pouco, exige-se que o Alberto Branquinho volte em breve, depois das brejeirices desta novela.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)