Queridos amigos,
O seu a seu dono, José Joaquim Lopes de Lima faz parte do leque de escritores de leitura obrigatória para se saber algo mais sobre a presença portuguesa na Senegâmbia na primeira metade do século XIX, deixou-nos um relato sumário mas impressivo. Aqui se publica o que sobre ele se diz no conceituado Dicionário Bibliográfico do Inocêncio, é pouco abonatório, Lopes de Lima deverá ter andado metido em irregularidades espúrias. E sinto-me feliz pela descoberta no Archivo Popular de 1839 (uma publicação do género enciclopédico, já então muito comum em toda a Europa) por este artigo ou memória sobre os Felupes, ele não cita fontes, deverá ter por aqui viajado, talvez em Bolor, Jufunco ou imediações, seja como for, o que deixa relatado tem muito interesse no campo etnológico e antropológico.
Um abraço do
Mário
Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (1)
Mário Beja Santos
O nome José Joaquim Lopes de Lima não nos é estranho, pode aparecer associado às principais narrativas referentes à Senegâmbia na primeira metade do século XIX, podemos juntá-lo aos trabalhos de Conrado de Chelmicki, Senna Barcelos, Travassos Valdez e Honório Pereira Barreto. Não terá tido uma vida muito regular, segundo o Dicionário Bibliográfico Português, Estudos de Inocêncio Francisco da Silva, Tomo IV, 1860, onde se pode ler o seguinte a respeito do dito: “Do Conselho de Sua Majestade, Cavaleiro da Ordem de Torre e Espada, Capitão de Fragata, Governador-Civil no Reino e Ultramar, Deputado. Homem de inegável inteligência e muita atividade, tido como um dos mais devotados sustentáculos do partido denominado Cartista, foi sucessivamente incumbido de comissões superiores e melindrosas que, todavia, deu sempre infelicíssima conta. Parece que o seguia uma espécie de fatalidade, vendo-se não menos de três vezes forçado a abandonar cargos que lhe confiavam, e a procurar na fuga o meio de subtrair-se às consequências de uma animadversão geral, que em toda a parte concitou com o seu procedimento. Mandado recolher ao reino debaixo de prisão para responder pelo modo como desempenhara a comissão que por último lhe fora conferida nas ilhas de Solor e Timor, faleceu durante a viagem”.
De todos os seus escritos, o mais útil e continuadamente estudado pelos investigadores são os Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas na África Ocidental e Oriental, tomos publicados em 1840 e 1846. É no livro I – parte II que descreve a Guiné de Cabo Verde (páginas 80 a 119). Despede-se deste seu trabalho frente à Guiné com a seguinte observação: “Em mais de um lugar nesta obra eu fiz ver os imensos lucros que daria o comércio de Bissau e Cacheu a uma companhia mercantil portuguesa a quem se concedesse o exclusivo da navegação e resgates de compra e venda dentro nos rios de Geba e Farim (e muito mais se ela tentasse explorar de novo o Rio Grande e o Rio Nuno), com a única condição de ela compreender no seu grémio portugueses que se resolvessem, como os nossos antepassados, a ir afrontar por uma vez somente uma febre aguda, para depois gozarem por anos dilatados de todas as vantagens do homem rico e poderoso, sem mais receio pela sua existência, de que se vivessem na Europa”. Esta memória sobre os Felupes foi publicada em O Archivo Popular, Semanário Pintoresco, N.º 40, em 5 de outubro de 1839 e no N.º 41 de 10 do mesmo mês e ano. Vamos ao essencial deste trabalho.
Primeiro, a religião dos Felupes: “É mais um teísmo bárbaro do que uma idolatria; eles reconhecem e adoram um só Deus universal, e não dão culto a divindades subalternas; não só não têm ídolos, mas não têm templos ou casas de adoração; e não professam ritos, ou cerimónias quotidianas. Contudo, há vários lugares sagrados, onde só nos casos de importância, o povo se dirige presidido pelo rei, e pelos padres, a consultar a vontade do Ente Supremo, fazendo libações e holocaustos, e examinando no fim, como os áugures romanos, o interior da vítima. Os lugares onde isto se pratica são chamados chinas (…) Nenhuma liturgia se observa entre este povo; nenhuma prática adotam senão a da confissão (que provavelmente tomaram antigamente dos cristãos). A dignidade sacerdotal é hereditária, bem como a real, de tios a sobrinhos; os sacerdotes, que eles mesmo chamam padres, nada recebem do povo senão veneração; e trabalham nas suas lavouras, bem como qualquer outro: não têm distintivo algum senão o de não usarem dos enfeites de contas ou manilhas, de que os outros usam.
Todavia, este povo crê, assim como todas as nações africanas, na feitiçaria, e nos processos; e como não têm nem o mais leve conhecido da arte de curar, nem das moléstias do corpo humano, muitas vezes se sentem enfermos, pensam que o demónio (ou o irã) lhe arrebatou a alma, e a tem presa, e assim entram a clamar em altas vozes, chamando jambacós na língua felupe, o qual se supõe ter um demónio familiar, que lhe fala à vista de todos os Felupes, sem que seja visto por ninguém: este, depois de ter recebido avultados presentes, faz ajuntar o povo, trazendo todos uma boa porção de vinho de palma, que bebem em concurso; e no meio desta embriaguez geral, o impostor faz falar o seu oráculo do canto de uma casa mui escura, e com várias cerimónias tão supersticiosas como ridículas, depois de ter resgatado a alma do enfermo lha restitui pelo sovaco do braço, assoprando-a por um corno de vaca: se o doente melhora foi devido à mágica do jambacós, se morre ele é tão responsável por isso como os nossos médicos que não curam”.
E, por último: “Os Felupes creem na imortalidade da alma, e em outra vida depois desta, em que há de haver prémio para os bons, e castigo para os maus. Supõem o mundo tão eterno como o seu autor; e acerca do princípio da geração humana, creem que Deus, tendo criado primeiro a mulher e depois o homem, estes tiveram dois filhos, dos quais um escarneceu do seu pai por estar descomposto quando dormia e o outro o repreendeu: que deste bom filho nasceu a geração dos brancos e do mau a dos negros: não sabem porém o nome nem dos pais nem dos filhos; e por isso mesmo pode suspeitar-se que a história dos filhos de Noé, ouvida por eles aos primeiros cristãos que ali se estabeleceram, tenha ficado transmitida de uma maneira bárbara às gerações que se seguiram. Não têm cerimónia alguma de batismo, nem mesmo põem nome aos filhos senão depois que eles chegam à idade de falar”.
Iremos ver adiante o que Lopes de Lima nos tem a dizer sobre os casamentos, os funerais, os usos e costumes dos Felupes. Não deixa de ser curiosa a forma como ele contextualiza a presença portuguesa, o comércio e até o clima: “Quando algum branco chega de novo a Bolor para fazer negócio, é do uso mandar ao rei um ou dois frascos de aguardente, e algum tabaco, rogando-lhe que venha a casa do seu hóspede para pôr as medidas, é este o princípio da boa fé. Os Felupes negoceiam pouco em escravos, pois que eles não escravizam pessoa alguma, e apenas servem de corredores de escravos, que lhes remetem do Interior para serem vendidos aos brancos. A porção de marfim que se pode encontrar neste país é insignificante, assim como a de coiros e cera; mas a vizinhança em que está da costa chamada Debaixo fornece de todos estes géneros o comerciante que aqui se vem fornecer”. Lopes de Lima diz que o clima é igual ao dos outros sítios da Guiné, há duas estações, o país é abundante em galinhas, patos, porcos e mesmo bois e que as frutas do país são a banana, a papaia, a laranja e o ananás.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22789: Historiografia da presença portuguesa em África (293): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (2) (Mário Beja Santos)