1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:
Queridos amigos,
A importantíssima tese de Carlos Lopes prende-se com o mundo Mandé e Malinké que ascende ao poder numa ampla região geográfica onde cabem a Gâmbia, o Senegal, o antigo Casamance, áreas do Futa-Jalo e parte essencial da Guiné-Bissau, entre outras. Houvera a queda do Estado do Gana devido à invasão dos Almorávidas que levou ao aparecimento do Império do Mali, no século XIII. Os Mandinka vinham do Império do Mali e invadiram a Senegâmbia e fundaram o Kaabú, com destaque para o povo Malinké. Este reino de cuja extensão já se falou, irá ter o seu centro político em Kansalá, situado na atual região norte do Gabú, Guiné-Bissau. Os Mandinka eram poderosos, maleáveis na administração, não hostilizavam frontalmente o animismo. Irão ser confrontados com a ascensão Peul ou Fula, serão estes os novos senhores mas, segundo Carlos Lopes, jamais se perdeu a coesão geográfica e cultural do Kaabunké com consequências que ultrapassam a lógica dos atuais países independentes da região.
Um abraço do
Mário
A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (1)
Mário Beja Santos
"Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, continua a ser o estudo mais completo sobre o que terá sido o Cabo Malinké, com incidência na historiografia da antiga colónia portuguesa, e como exercício da interdisciplinaridade que deve existir nos estudos africanos, de leitura obrigatória. Afinal, de que trata? Diz o autor tratar-se de uma investigação aprofundada sobre a história do Kaabú, uma estrutura política Mandinga da Alta Costa da Guiné que sobreviveu a todas as tempestades da África medieval e unificou os povos de
“Rios de Guiné durante seis séculos, do século XIII ao século XIX”. E adianta:
“Foi em 1972, no Congresso de Estudos Mandingas em Londres, que tomámos conhecimento das primeiras comunicações sobre o que viria a constituir uma grande descoberta para inúmeros historiadores: o Kaabú, os Mandingas do Oeste, os verdadeiros herdeiros do Império do Mali e da época gloriosa de Sunjata Keitá. O Kaabú foi um Estado unificador de todas as etnias da região, e as suas diversas áreas de influência expandiram-se e abrangeram a cultura de toda a região do Sudão Ocidental. Para o conhecimento das relações de poder existentes no passado longínquo da Guiné-Bissau, mas também da Gâmbia, de Casamance, do Senegal Oriental e do Futa-Jalo guineense, é necessário interpretar as características dos Kaabunké, o alcance da sua civilização e, acima de tudo, a unificação ou conjugação interétnica por eles levada a cabo”.
Definido o propósito do trabalho, o autor pronuncia-se sobre as diferentes fontes (tradições orais, fontes árabes, fontes portuguesas, fontes francesas e outras. Analisa o conceito de etnia, nação, Estado, sociedade e Mansaya, sente-se a complexidade de definir a etnia, mais fácil é encontrar o conceito de nação, que pressupõe um sentimento de solidariedade intergrupos na base dos mesmos princípios que os do conceito do grupo étnico, mas a nação carece de um espaço de expressão maior e de uma estrutura a que se chama Estado. O Estado no caso do Kaabú possuía uma estrutura política onde existia uma diferença entre governador e governado, a Mansaya, expressão de um poder estatal.
“As Mansaya, criação Malinqué, foram o modelo de organização política mais importante do Sudão Ocidental, porque se adaptaram a uma estrutura produtiva assente num volume de trocas relativamente reduzido e de longa distância. Nas Mansaya, o poder tinha uma forte conotação clânica, e os direitos de sucessão eram geralmente respeitados. A Mansaya tinha um sistema de poder por representação das diferentes camadas sociais, adoptaram um modelo e um aparelho ideológico que aliava a fé animista a certas aquisições do Islão, nas quais o Kaabú introduziu um sistema de governo com modificações substanciais, como a sucessão matrilinear”.
São equacionados grupos linguísticos (Sérèr), os Diola, Felupe, Baiote e muitos outros, como o Pajadinca, o Cassanga, o Brame, o Manjaco, o Balanta, o Beafada, o Bague, o Bijagó, o Nalu e o Fula, etnias e línguas que gravitavam no espaço Kaabunké com a língua Mandé.
Como situar a geografia Kaabunké? O autor responde:
“O espaço geográfico onde se desenvolveu o Kaabú, é um conjunto ecológico homogéneo, ou melhor, integrado. Caracteriza-se pela existência de grandes rios (Gâmbia, Casamance, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo) e dos seus afluentes que descem em cascatas do Futa-Jalo até ao mar. Um estudo minucioso de algumas fontes dos séculos XV e XVI demonstra-nos que os navegadores chegados a esta região a distinguiam claramente do Norte da Gâmbia, devido à quantidade de chuvas, à sua duração e ao calor que fazia no interior do território”.
Havia boas condições de navegação, a composição do solo permitia a rizicultura de tarrafo, os cursos de água constituíam um forte ponto de atração. O ouro que Bambuk e provavelmente da zona do Geba/Bafatá desempenhou um papel importante no papel da região. Há historiadores que não escondem os aspetos limitativos ligados à geografia, como o próprio autor observa:
“Muitos historiadores consideram que esta região era uma espécie de beco sem saída do mundo Mandinga, pois não passava do ponto extremo ocidental do Império do Mali, longe dos eixos comerciais trans-saarianos. É certo que permitia a expansão até ao Atlântico, o que pouco servia o Mali propriamente dito. O isolamento relativo desta região – bloqueada para lá do Futa-Jalo – em relação ao Mali pode explicar a necessidade sentida no interior deste espaço de uma maior relação entre as diferentes estruturas económicas e, evidentemente, políticas. O Kaabú teria, assim, sido o intérprete deste desejo ou necessidade de desenvolver uma dinâmica mais independente”.
Carlos Lopes discreteia em torno de um conjunto de lendas e socorre-se do Tratado de André Álvares de Almada para nos procurar dar um quadro do que era o Kaabú nos séculos XIV e XV. Citando outros autores, Carlos Lopes conclui que o Kaabú dos séculos XIV e XV é ainda uma província – Farim – do Mali, que é a referência de toda esta região; e diz que as fontes escritas refletem a importância do comércio exercido pelos reinos na zona de influência do Kaabú, acrescentando que a influência cultural do Kaabú nos leva a aceitar a ideia de que se tratava primordialmente de um espaço de alianças entre vários clãs, grupos de interesse, sobretudo Malinqué, não era pois um Estado forte, centralizador e com controlo territorial.
Fala-se depois se Cansalá era efetivamente o centro do poder, enuncia-se a estrutura social Kaabunké que incluía aristocracia, homens-livres, homens de casta e os escravos e agrupamentos étnicos dominados, tudo altamente desenvolvido no seu trabalho, tal como o espaço estatal, político e guerreiro.
Temos agora o espaço de trocas, e aqui Carlos Lopes releva as fontes portuguesas, qual a natureza das trocas, sobretudo nos reinos da costa. E adianta o seguinte:
“O comércio de longa distância do Kaabú partia dos pontos de tráfico de escravos na costa, através dos Rios do Sul, passava pelas feiras de escravos e mercados de tradição antiga não longe da costa, depois pelo Futa-Jalo, e dirigia-se por fim para o Alto Níger. A rede tinha uma base no Kaabú, mas estava muito mais disseminada, constituindo-se as feiras como pontos de redireccionamento. Existia de facto um mercado longínquo centrado na troca desigual".
Carlos Lopes desenvolve a noção de espaço cultural e linguístico, cita autores portugueses e estrangeiros, conclui que o espaço cultural e linguístico Kaabunké conheceu a sua primeira expansão no século XVII, é dado como um espaço homogéneo, predominando o Wolof a norte do Gâmbia e um território sob influência Malinké, do Gâmbia até à Serra Leoa. A questão religiosa é a mais complexa, no espaço Kaabunké coexistiam o animismo e o Islão, tinha tido um importante vetor de penetração no Sudão Ocidental.
Quando os portugueses chegaram à Guiné defrontaram-se com este desidrato religioso, toda a história da missionação na Guiné tem que ser percebida pela hostilidade do clima, pela falta de comunidade apoiante das missões, pelo pequeníssimo nome de missionários, tudo somado a política de conversão não funcionou. O aspeto mais curioso do Cristianismo na Guiné é de que presentemente ele está a conhecer um crescimento sem precedentes face aos séculos anteriores.
Não se pode falar no Império do Cabo, mas sim numa constelação de reinos dependentes do Mansa-Bá. O controlo territorial europeu era praticamente nulo. Os portugueses apenas se dedicavam ao comércio. Mesmo quando o Kaabunké entrou em desagregação completa, em pleno século XIX, a presença portuguesa preferiu a neutralidade nas horríveis guerras do Forreá, fez o possível e o impossível para não se imiscuir perante os invasores Fulas e a reação dos Beafadas.
Para terminar, resta dizer que havia uma profunda unidade natural da região, a generalidade dos investigadores assim o afirma. Seja como for, a administração Kaabunké, que tinha a concentração do poder na aristocracia, era muito maleável, procurava o melhor entendimento possível com os soberanos africanos. É neste contexto, e sendo o Kaabunké também um império traficante de escravos que os portugueses constituíram uma feitoria no Cacheu e no fim do século XVIII estavam implantados em Bissau.