quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 – P6125: Guiné 63/74 - P6075: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (11): Um prisioneiro, no fundo, boa pessoa

1. Uma estória do nosso camarada António Paiva*(ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70), enviada em mensagem do dia 4 de Abril de 2010:

Camaradas,
Terminada a Especialidade, Janeiro de 1968, no Regimento de Cavalaria 5, no Porto, por estranho que me tivesse parecido me deram a escolher, assim como a todos do meu Pelotão (o 6.º, composto por, relaxados, preguiçosos, abandalhados e atrasados, por sermos sempre os últimos a formar, sendo todos de Lisboa, mais tarde contarei a história) a unidade para onde queríamos ir.
A maioria, senão a totalidade, escolheu Trem-Auto.
Tendo eu escolhido, Regimento de Infantaria 1, na Amadora.

Logo, por alguns, fui chamado de maluco e parvo, por ter escolhido uma Unidade onde os meus serviços iriam ser de piquetes, plantões, faxinas e guardas. Pois sim, mas a verdade é que o trabalho que eles iriam fazer a mim não me agradava. Ir buscar os Senhores Oficiais para o local de trabalho, depois levar os meninos à escola, levar as madames ao cabeleireiro, deixá-las no cinema e por vezes levá-las ao chá das 5, não era para meu feitio. Mas acima disto tudo, na Amadora morava uma andorinha com quem eu gostava de passar o tempo, quando possível, a dar umas bicadelas de vez em quando.

A minha estadia no RI1, foi perfeita e saudável. Fui colocado numa Companhia em que o Comandante, Capitão, era uma excelente pessoa, o 2.º Comandante era um Aspirante, bom moço, dias em que eu não estava escalado para serviço, me arranjava a dispensa de toque de ordem e de recolher, para eu poder ir a casa, sempre jantava melhor que no quartel.

Fiz plantões à caserna, fiz faxinas ao refeitório, fiz guardas (aqui procurava alinhar na formatura de maneira que não me calhasse a Porta de Armas ou Pinheiros, mas de vez em quanto lá ia) nestas funções, tudo correu sempre bem.
Se a memória não me falha, na escala havia outro serviço que era, Piquete da Guarda, cuja função era a de levar os presos ao Hospital ou Tribunal Militares.


Aqui vai a história de susto e medo, em que nossa liberdade se compromete

Um prisioneiro, no fundo, boa pessoa


Como todos devem estar lembrados, na nossa juventude deu-se o grande fogo da Serra de Sintra (não me ocorre agora o ano), onde morreram 27 militares, assim foi noticiado, não sendo essa a verdade.

A verdade é que se encontrava preso, no RI1, um soldado, não me lembro do nome, acusado de ser o autor do mesmo, muitos não acreditávamos, pela figura, maneira de ser e de estar do dito soldado.

Rapaz pequeno e magro, queimado pelo sol, provavelmente da sua terra onde tinha sido sacristão, calmo no falar e na maneira de estar, cativava-nos com a sua forma de ser. Não fumava, o que dava a entender não usar fósforos ou isqueiro, talvez em Sintra, se tivesse sentido primata, pega-se em duas pedras e fizesse fricção com as mesmas.
Já tinha ido a Tribunal duas vezes, ficava sempre adiado por falta de tempo.

No tempo em que lá estive, chegou a terceira vez, tocou-me a mim e a outro camarada levarmos o pacato prisioneiro à sala das confissões.

Às três é de vez, esperávamos que sim.

Quando lá chegamos, estava em curso um julgamento, antes do dele outro iria ter lugar. Por coincidência, típico e moderno daqueles tempos.

Enquanto aguardávamos pelo corredor, de Mauser ao ombro, no mesmo, de um lado para o outro andava uma saia azul acompanhada de uma blusa creme, com um belo monumento no seu interior.
Bonita e jeitosa, com todas as curvas no seu devido lugar, com passos firmes e segura do que estava ali a fazer. Tinha feito queixa de um soldado que a tinha desonrado.
Mas a sua memória, talvez não fosse a sua melhor companheira, esqueceu-se de a lembrar dos passos que já tinha dado.

Acabado o julgamento que estava a decorrer, quando lá chegamos, foi chamado quem fazia parte do seguinte, onde fazia parte a dita dama.

Podíamos entrar, mas tínhamos de deixar as armas cá fora, num suporte que havia para elas.

A sala tinha uns três ou quatro bancos corridos, quando entramos, já se encontravam os lugares quase completos, o nosso “preso” já se encontrava sentado, nós dois encontramos lugar no banco da frente.
Comentamos, não há problema, ele não se pira.

Decorria o julgamento, há já algum tempo, nada favorável à dama, quando olhamos para trás e não o vimos.
Pensamos, foi mijar.

Saímos para ver se o encontrávamos, mas nada, não estava dentro do tribunal.
Pegamos nas duas amigas que tínhamos posto no suporte e saímos do tribunal, talvez tivesse ido beber uma bica.
Nem na rua o encontramos.

Pensamos no pior. Este erro vai-nos custar a liberdade.

Depois de perguntarmos a pessoas se tinham visto por ali um militar, obtivemos respostas negativas.
Quando já nem sabíamos que fazer, avistamos o nosso sortudo, a subir a calçada em direcção a nós, no seu passo pachorrento e com um sorriso de ingénuo nos lábios, dizer-nos:

- Não tenham medo, eu não fujo, vim apanhar ar, já estava farto de estar lá dentro.

Podem crer que não tive reacção, fiquei desarmado, só agradeci a Deus os maus pensamentos que tive.

O nosso sortudo, tinha ido praticar uma boa acção.

Estava cá fora e uma rapariga perguntou-lhe onde podia apanhar transporte para Santos, o nosso bom amigo, foi com ela até aos Caminhos de Ferro, para lhe dizer onde apanhava o eléctrico.

Regressados ao tribunal, ainda decorria o julgamento da dama.
Perdeu por 8 a 0, por a memória a ter atraiçoado, não a lembrando dos passos antes dados, 8 eram as testemunhas dele, que antes dele dormiram com ela na mesma cama.

Quanto ao nosso Soldado desenfiado, mais uma vez ficou adiado por falta de tempo.
Pouco tempo depois sou mobilizado e mandam-me para o RSS Coimbra.

Um abraço
António Paiva
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6075: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (10): Quando a missão não deixa ver

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro António Paiva

Não há dúvida que tiveste imensa sorte!

Um abraço, na esperança que os dias te estejam a correr melhor.
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Helder

Tive sorte...sim!
Somos do tempo em que a nossa juventude tinha uma palavra a dizer e podiamos acreditar.
Hoje temos o mundo ao contrário(não entre nós)é só promessas.
Se a esperança é a ultima a morrer,para mim em forma de estar e saúde, está muito fraquinha, nem sei quando será o seu funeral.
No meu post enterior,no comentátio,dei resposta,á ternura e optimismo, que me deste, talvez não tenhas lido por ser 3 dias depois.

Um abraço
António Paiva