segunda-feira, 3 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11666: Notas de leitura (488): “O Mestiço e o Poder – Identidades, dominações e a resistências na Guiné”, por Tcherno Djaló (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Tcherno Djaló junta-se com pergaminhos próprios aos nomes de Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa na importantíssima historiografia luso-guineense.
Este seu trabalho é do indiscutível interesse, ordena com rigor e propriedade a abordagem que faz sobre as formas de sociedade tradicional na Guiné-Bissau; é inovador na análise da mestiçagem luso-africana, tem ideias próprias e ricas sobre o espaço social mestiço na Guiné Bissau; introduz pontos polémicos sobre o papel do mestiços, cabo-verdianos na vida da colónia e na condução do PAIGC, é desassombrado e não se furta a pôr a nu as chamadas questões tabu à volta da alegada unidade Cabo Verde/Guiné.
É livro que se encontra facilmente nas livrarias, é leitura que se recomenda sem hesitação.

Um abraço do
Mário


O mestiço e o poder

Beja Santos

“O Mestiço e o Poder – Identidades, dominações e a resistências na Guiné”, por Tcherno Djaló, Nova Vega, 2012, é o documento essencial de tese de doutoramento que o autor apresentou na Universidade de Genebra. Tcherno Djaló é um académico e professor com créditos firmados. Foi assistente de ensino e pesquisa no departamento de sociologia da Universidade de Genebra e no Instituto Universitário de Estudos de Desenvolvimento de Genebra. Foi fundador e primeiro reitor da Universidade Amílcar Cabral e ministro da Educação e do Ensino Superior da Guiné-Bissau, sendo atualmente professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona de Lisboa. A sua investigação é um longo olhar sobre a sociedade bissau-guineense partido da ótica da mestiçagem, correlacionando o mais pequeno (a comunidade mestiça) e o maior (a sociedade tradicional africana). Porquê a mestiçagem? Tcherno Djaló responde quanto ao interesse desta investigação: A particularidade do papel histórico e político desempenhado durante séculos pela elite da comunidade mestiça na sociedade guineense. Se a mestiçagem luso-africana é um fenómeno quantitativamente marginal em comparação com outras experiências coloniais é, em contrapartida, qualitativamente determinante, desde há séculos, como núcleo da elite política, administrativa e comercial na Guiné-Bissau. Acresce, diz o autor, não existir nenhum estudo etnológico sobre os mestiços guineenses. Temos aqui um denso e vibrante itinerário onde se analisa a sociedade tradicional, a sua estrutura social, formas de propriedade, o espaço animo-fetichista, bem como o espaço muçulmano, as chefias tradicionais em todo o país; uma abordagem da mestiçagem no campo teórico, da psicossociologia, centrando-se depois na mestiçagem luso-africana; por último, o papel da mestiçagem no Estado colonial e na República da Guiné-Bissau.

Ao analisar a sociedade tradicional, Tcherno Djaló reconduz o seu trabalho para a verificação da estrutura social, do papel da família, da poligamia no contexto muçulmano e mestiço, a expressão das religiosidades guineenses, tanto no espaço animista como islamizado, vê-se perfeitamente que inventaria com segurança a documentação mais apropriada, e do mesmo modo procede com a sua análise às chefias tradicionais guineenses, região por região.

É no estudo da mestiçagem que a escrita se torna mais inovadora, desmontando com rigor o mito e a realidade da mestiçagem luso-africana, e demarca o povoamento e a colonização cabo-verdiana de igual processo na Guiné. Recorda que as ilhas tiveram como primeiros habitantes famílias portuguesas de nobres arruinados, camponeses, algarvios e alentejanos, deportados e degredados, escravos negros trazidos da costa da Guiné, cativos mouros e genoveses, espanhóis e flamengos. Referindo António Carreira, alude a uma influência demográfica sobre a população cabo-verdiana de, pelo menos, 27 grupos africanos diferentes, indo do Senegal à Serra Leoa, a cristianização da região e outros aspetos que moldaram a especificidade cabo-verdiana; faz-nos compreender a importância que tiveram os mestiços na evangelização da Guiné e como esta falhou rotundamente; tece um conjunto de hipóteses sobre a origem do crioulo e defende que o crioulo guineense decorre do crioulo cabo-verdiano, tese que tem bastantes críticos; procede a uma análise detalhada sobre o espaço social mestiço na Guiné-Bissau, relevado os papel dos “lançados”, o meio social dos grumetes e a identidade dos luso-guineenses; chama a atenção para o papel dos cabo-verdianos na Guiné e a ocupação que teve em lugares de chefia e aponta uma outra importante divergência entre Cabo Verde e a Guiné: “Contrariamente à colónia mestiça de Cabo Verde, as condições jurídicas, sociais e políticas da população da Guiné eram regidas pelo estatuto do indigenato (…) Os cabo-verdianos tinham o privilégio de serem considerados assimilados no contexto colonial devido à suposta semelhança da sua cultura com a cultura portuguesa. Por analogia, todos os mestiços na Guiné eram igualmente assimilados, por isso não podiam ser submetidos ao estatuto do indigenato. Mas na realidade, a insistência do estatuto do indigenato em Cabo Verde obedecia mais à racionalidade e à lógica de exploração colonial do que a razões de afinidade cultural (…) Graças a esta política de assimilação, todos os cabo-verdianos na Guiné e os mestiços luso-guineenses pertenciam à elite aculturada da Guiné”. Depois, desmonta com minúcia o Estatuto do Indigenato, concluindo este ponto dizendo: “Apesar da longa história entre a Guiné e Cabo Verde e da ideologia unionista praticada pelo PAIGC durante a luta pela independência, as contradições e os conflitos socioculturais suscitavam as uniões mistas permanecem ainda hoje. A desaprovação e até a hostilidade em relação a estes casamentos são os sentimentos dominantes dentro de todos os grupos étnicos. Na verdade, quando um negro de uma determinada condição social casa com uma mulher mestiça ou branca e, por isso, de uma outra categoria social, os seus têm muitas vezes o sentimento de que os laços e a solidariedade familiar foram rompidos”.

Igualmente muito interessante é o estudo que o investigador procede sobre a mestiçagem e o colonialismo e o pós-colonialismo. O mestiço e ou o cabo-verdiano tiveram um peso histórico preponderante, basta recordar André Álvares de Almada, Caetano José Nosolini, os Carvalho de Alvarenga, Honório Pereira Barreto, o papel dos mestiços nas “guerras de presídios” (1842-1879), em que o autor cita abundantemente René Pélissier, e outros conflitos que só começaram a esbater-se depois das campanhas de pacificação comandadas por Teixeira Pinto.

A Guiné separada de Cabo Verde (1879) é vista como a era do colonialismo, introduziram-se estratégias que permitiram uma gradual capilaridade administrativa, neutralizando tensões interétnicas, a africanização dos funcionários é um dado recente, só se torna uma realidade no tempo de Spínola. O investigador estuda a africanização do exército colonial, as companhias dos caçadores africanos dos comandos africanos, volta atrás e traça a génese das primeiras organizações políticas africanas até chegar aos movimentos independentistas; segue-se a análise sociopolítica do PAIGC e as ligações entre a elite guineense e cabo-verdiana. Posicionando-se ao lado de outros estudiosos, Tcherno Djaló considera que a clivagem entre as elites guineense e cabo-verdiana têm ressentimentos históricos antigos e recentes e entre os recentes a dominação dos mestiços na direção do partido e para prová-lo mostra a estrutura do partido nas zonas libertadas, e como um grupo dissidente, todo ele guineense, preparou o golpe que levou ao assassinato de Cabral. Segue-se o Estado independente e a falta de cuidado revelado pelos cabo-verdianos quanto às instituições da I República (1974-1980), em que a Assembleia Nacional Popular não tinha vida própria e a cúspide do Estado era controlada por cabo-verdianos, e daí o golpe de Nino Vieira, a encabeçar um movimento de descontentes.

Em jeito de conclusão, Tcherno Djaló releva a questão mestiça não como um conflito interétnico mas como uma questão política de fundo que divide a elite negra. E diz mesmo: “Nos nossos dias, todos os indicadores sugerem que o futuro da comunidade mestiça e da mestiçagem na Guiné estão ameaçados na sua essência. A rutura do cordão umbilical com Portugal após a independência, o espaçamento das relações genéticas, sociais, económicas, culturais e políticas na sequência do fracasso do projeto de união com Cabo Verde, fazem com que a minoria mestiça esteja ameaçada a prazo na sua existência enquanto grupo social distinto”. Para o autor, esta clivagem foi transferida para uma rivalidade entre as elites das comunidades de lusitanizados e as comunidades muçulmanas.

Obra do maior interesse, peça primeira classe na historiografia luso-guineense.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11660: Notas de leitura (487): "A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral", por Tomás Medeiros (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Além do mais trata-se de um Grande Amigo meu.

Abraço.

J.Cabral

Antº Rosinha disse...

Os africanos, guineenses começam a falar, já demorava.

Apesar de tudo e mais alguma coisa, os guineenses devem muito aos dirigentes caboverdeanos do PAIGC, "imaginação" de Amílcar.

Devem ao Amílcar e a Spínola, sem estes dois, a Guiné ia ser, repito sempre, uma autêntica "casamance".

E nunca é tarde, cuidado com alguns guineenses!