AS CHEIAS (estas e as outras)
Há alguns dias atrás, ocorreram o que agora se designam por “fenómenos extremos” originando, principalmente na zona de Lisboa (mas não só) um conjunto de circunstâncias das quais resultaram avultados estragos em estabelecimentos comerciais, em elevados prejuízos económicos, resultando ainda na morte de uma senhora.
Tudo isto é lamentável, e uma morte que seja, é sempre uma vida humana que se perde estupidamente.
Muito se falou. As televisões dedicaram largos períodos do seu dia a fazerem reportagens sobre as diversas peripécias dos acontecimentos, onde não faltarem as arengas dos “especialistas de tudo” que agora aparecem em todos os canais.
Foi tudo abordado: a construção em leitos de cheias, a impermeabilização dos solos, a falta de limpeza das sarjetas (claro que ninguém se responsabilizou pelo lixo que faz e deita para a rua), a falta de meios de intervenção (com o costumeiro “aqui ninguém apareceu”), o atraso ou ausência de informação sobre a possibilidade de chuvadas fortes (normalmente ninguém liga seriamente aos “avisos laranjas” e outros), etc..
Aqui e ali, de fugida, ainda houve algumas referências às “cheias de Novembro de 1967” mas rapidamente isso foi ultrapassado, diria submergido, pelo imediatismo do dia e pela publicidade das medidas previstas e já em curso, para a construção de túneis e reservatórios tendo em vista resolver, ou pelo menos minorar significativamente, a questão dos problemas de Lisboa. Passou-se então a discutir a paternidade e a antiguidade das soluções e o resto foi-se diluindo, tal qual a água foi vazando….
Aguardo com interesse o que se começará a dizer quando for mais conhecida a origem da tuneladora adquirida para os trabalhos de perfuração do solo com vista à construção dos tais túneis… é que os preconceitos com o material chinês devem dar para inúmeras reportagens!
Entretanto, uma foto dum artigo que um amigo me enviou, despertou a minha atenção e as recordações desses dias, começados a 26 de Novembro de 1967, assaltaram-me novamente.
Essa foto encabeça um artigo da “NiT” (que reproduzo com a devida vénia), a propósito dessas cheias de 67 e mostra a Rua Serpa Pinto, em Vila Franca de Xira. Essa rua era onde o meu pai e o sócio tinham o seu comércio/oficina de mobílias (nesse tempo alguns móveis ainda vinham “em branco”, sendo necessário trabalhá-los) e foi aí que que os “meus trabalhos” começaram. A loja ficava do lado direito, na foto, no piso térreo, onde se vêm pessoas numa varanda, e não posso garantir que o vulto que se vê, empurrando detritos, seja eu, mas também não desminto.
A chuvinha continuava, umas vezes mais forte outras mais branda, mas sempre presente. Da parte da tarde começou a engrossar e quando regressei a casa, a Vila Franca, cerca das 19:00, estava desconfortável, foi só tomar banho para aquecer, jantar e, ao contrário do que era habitual, já não saí, indo para a cama muito mais cedo do que o costume.
Cerca das 5 da manhã de domingo tocam insistentemente à campainha a avisar que havia enxurradas, que as ruas eram um mar de água, lama e em alguns sítios com coisas a boiar (automóveis, caixotes, etc.), que a água saía das sarjetas pois a maré estava alta e, salvo erro, eram “águas grandes”. Na Serpa Pinto já tinham subido bastante e estavam a entrar para os estabelecimentos.
Claro que fomos logo para lá, tentar evitar o mais possível os estragos. Na foto já era de dia, o pior já tinha passado, já se estava, naquele local, no “rescaldo” mas, entretanto, começam a chegar as notícias do drama e do desastre (catástrofe) humanitário que tinha assolado a aldeia das Quintas, povoação que viu mais de metade dos seus habitantes perecerem, 89 de 150. Os corpos, resgatados pelos bombeiros foram sendo depositados nas capelas de Vila Franca e da Castanheira e começaram depois a surgir notícias de outros locais.
No dia seguinte, segunda-feira, fui para Alhandra dar apoio a colegas e seus familiares, para ajudar a limpar toda aquela desgraça de que foram alvo. Ali, em Alhandra, a desgraça, em termos de vítimas, não atingiu as proporções que eventualmente poderiam ter acontecido, devido a uma composição ferroviária de mercadorias estar estacionada onde a enxurrada investiu, vinda de São João dos Montes, evitando que tudo aquilo entrasse de supetão pelas ruas e casas da então vila. A atriz e encenadora Maria João Luís estava lá na ocasião, em casa de familiares, e ainda não deixa de ser com um frémito de emoção que exterioriza quando recorda esse episódio.
Durante essa 2.ª feira, o Movimento Estudantil de Lisboa, mobiliza-se para criar brigadas de apoio aos vários locais sinistrados nos concelhos de Vila Franca, Loures, Carenque e zonas de Lisboa, protagonizando (principalmente os alunos de Medicina) uma campanha de vacinação contra o tétano e outras possíveis infeções. Tal voluntarismo naturalmente que não foi bem aceite pelos poderes de então, pois não só lhes fugiu ao controlo como também permitiu um maior conhecimento das realidades, da tragédia em si, dos números das vítimas (coisa que o poder procurou minimizar), das condições de vida de largas franjas da população e foi um motor para a tomada de consciência da necessidade de mudança de muitos jovens de classes menos desfavorecidas que, até aí, estavam a “salvo” desses problemas.
Não é correto comparar coisas apenas parcialmente comparáveis. Tanto naquela altura como agora, choveu muito. A precipitação não foi igual mas, ainda assim, originou muitos problemas. Em termos de prejuízos materiais também há semelhanças. As causas foram diferentes, em alguns aspetos, mas muitos outros houve em que os velhos e eternos problemas estiveram presentes. A maior e principal diferença foi o número de vítimas mortais: 1 agora e mais de 700 então.
Já as questões sociais, não sendo iguais, também refletem semelhanças. Naqueles dias, passei uma noite com outros dois colegas, a imprimir uns panfletos onde se procurava demonstrar causas para a desgraça ocorrida e a apontar responsabilidades e, por via disso e para fazer chegar à população tal documento, saí de madrugada, de camioneta da carreira para Alenquer, onde fui fazendo a distribuição até já ser dia e perceber que a GNR estava a montar cerco para chegar ao autor da distribuição. Tendo percebido isso, tomei precauções, passei sem percalço pela barreira formada, tomei a camioneta de regresso a Vila Franca e essa aventura terminou sem consequências.
Portanto, o que se passou há 55 anos foi, em termos de vítimas, muito mais grave do que agora mas não se deve menorizar os atuais acontecimentos pois eles refletem a inércia das autoridades, dos poderes instituídos, a incapacidade ou falta de vontade política de enfrentar e resolver os problemas.
Por isso aqui deixo estas reflexões (e informações) que espero não sejam passíveis de repetição daqui a algum tempo (porventura pouco), devido à maior frequência e amplitude com que alguns “fenómenos extremos” vêm ocorrendo.
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23916: (In)citações (226): "O pedinte da berma da estrada" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
7 comentários:
Amigo Hélder agora compara os meios de comunicação de 1967 com os de agora: Tu com o teu simples meio de comunicação artesanal tiveste que fugir para não seres preso pela GNR, com o alcunha de subversivo, muito havia para dizer comentar mas não dá para comparar o que não é comparável. Mas vá lá dizer a esta juventude de agora quando diz que antigamente "Salazar" é que era bom! Abraço.
Cheias de 1967. A tragédia que Salazar quis esconder
Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, de Cascais a Alenquer, a chuva chegou a atingir os 170 L/m2 – por hora. Água e lama levaram bairros e aldeias, 20 mil casas foram destruídas. Oficialmente, houve 462 mortos, mas o número pode ter chegado aos 700. Perante a apatia de Salazar, 5 mil alunos ajudaram as vítimas. Um movimento que marcou uma geração.
RR - Rádio Renascença | Dina Soares e Joana Bourgard
https://especiais.rr.pt/cheias-1967/index.html
Helder, bem lembrado e uma muita boa descrição.
Em 25/26 de Novembro de 1967 ainda estava na EPC, Vendas Novas, a tirar a Especialidade para Atirador.
Foi no fim duma semana toda chuvosa e tínhamos feito uns exercícios de atravessar lagoas com ajuda de cordas presas nas margens, sempre com chuva.
Não me lembro bem, sei que eu não atravessei, por que foi suspenso o exercício e regresso ao Quartel em passo de corrida. Julgo que a forte chuvada aumentou o caudal das lagoas e os instrutores (tenente, aspirantes e cabos milicianos) não podiam explicar/exemplificar como devíamos fazer a travessia.
Quando passamos na Avenida principal da Vila,em passo de corrida todos encharcados, havia gente, principalmente mulheres, comentando 'coitados todos molhados e a correr'.
Na 6ª. feira 24, não houve instrução por não haver fardas de trabalho secas, apenas a farda de saída, tanto aos recrutas como aos instrutores.
Sem parar de chover, foi suspensa a saída para fim de semana e só a partir da 3ª. feira seguinte fomos obrigados a vestir as fardas ainda húmidas para a instrução.
Não me lembro de ouvir notícias das mortes para os lados Lisboa, das mortes ou sequer dos estragos provocados pelas cheias.
Morreram mais de 700 pessoas que viviam em bairros de lata na periferia de Lisboa.
Era proibido dar noticias das desgraças.
(não admira, ainda hoje, haver "comichão" com notícias de desgraças noutras paragens)
Abraço e saúde da boa em 2023
Valdemar Queiroz
Cheias de 1967. 21 fotos do rasto de morte que Salazar quis ocultar
Morreram 700 pessoas, mas Salazar parou de contá-las aos 426. Houve 20 mil casas destruídas pela chuva que caiu de 25 para 26 de novembro, 1/5 da precipitação daquele ano. As fotos das cheias de 1967.
Observador
https://observador.pt/2017/11/24/cheias-de-1967-21-fotos-do-rasto-de-morte-que-salazar-quis-ocultar/
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Cheias de 1967 na região de Lisboa
Duração 25 de Novembro e 26 de Novembro de 1967
Vítimas cerca de 700 mortos, milhares de desalojados
Áreas afetadas região de Lisboa e Vale do Tejo
As cheias de 1967 na região de Lisboa foram causadas por fortes chuvas na madrugada de 25 para 26 de Novembro de 1967. Causaram cerca de 700 mortes e a destruição de 20 mil casas[1], constituindo a pior catástrofe na região lisboeta desde o grande sismo de 1755.
Apesar da gravidade da tragédia, as cheias e as suas consequências foram sub-noticiadas, devido às fortes limitações impostas pela censura do Estado Novo. Foi igualmente impedida a contabilização completa de mortes e estragos[1].
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cheias_de_1967_na_regi%C3%A3o_de_Lisboa
CHEIAS DE 67 - Câmara Municipal de Vila Franca de Xirahttps://www.cm-vfxira.pt › writer_file › document
PDF
01/02/2020 — JORNAL DA EXPOSIÇÃO. Page 2. 2. [1] Lisbon Flood Disaster. A Calamidade das Cheias de Lisboa. Terence Spencer. Novembro de 1967. Col. Museu ...
36 páginas
https://www.cm-vfxira.pt/cmvfxira/uploads/writer_file/document/21085/cheias_de_67___jornal_da_exposicao.pdf
Hélder, tinha 20 vinte anos, ia fazer 21 em janeiro, e ser chamado para a tropa no 2º semestre de 1968... Fiquei tão indignado com as proporções dantescas da tragédia que fui ver "in loco, de propósíto a Alenquer, com um amigo da Lourinhã, que tinha carro (coisa rara naquele tempo)...
Máquinas de uma fábrica têxtil, que deviam pesar toneladas, iam arrastadas pelas águas do rio Alenquer... Mas o essencial da tragédia já tinha acontecido. O que mais ainda me indignou, paea além do cinismo das autoridades, ao longo dos dias seguintes foi saber pela imprensa (estrangeira) e pela rede da oposição democrática ao regime, que os mortos já iam em centenas e não havia palavra de consolo e de esperança para todas aquelas famílias...Uma das páginas mais negras do Estado Novo. LG
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