sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10382: História de vida (36): Nha mininu Zé Manel - uma visita à escola do padrinho (Manuel Joaquim)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), enviada ao nosso Blogue no dia 7 de Setembro de 2012:

Meus caros editor e co-editores, meus queridos camaradas Luís, Carlos e Eduardo:
Aqui vai mais uma pequena "estória" sobre o meu Zé Manel*.
Encontrei uma carta dirigida à minha esposa onde faço referência a uma visita que ele fez à minha escola, uns seis meses depois de ter chegado a Portugal.
Foi na base desta referência que redigi este texto cuja publicação deixo inteiramente ao vosso critério.

Com um grande abraço do
Manuel Joaquim


Nha mininu Zé Manel – uma visita à escola do padrinho

Foto 1. Maio/1967: Nha mininu Zé Manel, acabado de chegar da Guiné, menino feliz no seu novo ambiente (casa de meus pais)

Quando regressei da Guiné (maio/1967) esperava voltar à docência numa outra escola que não aquela para onde voltei e onde era professor efectivo. Os resultados do concurso já tinham saído em março daquele ano e eu tinha ficado colocado numa escola da Amadora. Por qualquer razão ou “conveniência” do Ministério da Educação a publicação desses resultados no Diário do Governo foi sendo adiada, mês após mês (um ano!). Os transtornos causados aos professores vinculados aos resultados do concurso foram enormes. Não houve, nesse ano, mobilidade no quadro efetivo docente do ensino primário. Fui atingido em cheio.

Sabendo-me colocado na Amadora, aluguei casa perto, casei e … fiquei “em Aveiro sem sapatos”, tive de voltar ao meu antigo local de trabalho onde antes da tropa tinha trabalhado três meses, os imediatamente anteriores à minha incorporação militar: uma escola numa aldeia cheia de miúdos e à qual, no inverno, eu só tinha acesso aceitável se usasse os percursos pedestres pelo meio dos pinhais já que os outros eram lama e mais lama. Usava uma bicicleta e tornei-me prático em atravessar a floresta ziguezagueando, fazendo “slalom” por entre os pinheiros. Estava hospedado numa pensão (com alguma qualidade) na Guia, a cerca de 5km da escola e a meio caminho (25Km) entre Leiria e Figueira da Foz. E assim passei um ano: a esposa a trabalhar em Lisboa, o Zé Manel em casa de meus pais e eu na Guia, a pedalar 10 kms por dia para dar aulas. O que ganhava não chegava para pagar a pensão, a renda de casa no Rio de Mouro (Sintra) e as viagens. Não chegava mesmo!

Entretanto a esposa engravidou, aconteceu neste período toda a gestação da minha filha mais velha, nascida no início de junho de 1968, antes do fim do ano lectivo e assim, durante quase todo o ano, tirando as férias do Natal e da Páscoa, o ponto de encontro semanal foi, muitas vezes, a minha casa paterna, nos arredores de Pombal. Cabe aqui dizer que minha esposa não pagava as viagens de comboio, trabalhava na CP.

Situemo-nos no tempo (1967). Até me custa relembrar as miseráveis condições de vida que existiam em certos pontos do país. E não se diga que o povo não dava por isso, como já ouvi e vi escrito. Esta aldeia onde ensinei tinha, na altura, oito professores em duas escolas (tinha gente, muita!) mas nem sequer tinha uma estrada de acesso em macadame. Dos oito professores eu era o único do sexo masculino. As minhas colegas viviam na aldeia, em comunidade, nenhuma era da região, viviam longe das suas terras de origem, passavam a maior parte do tempo resignadas e enclausuradas naquele local.

Como disse atrás, trabalhei lá três meses antes de ir para a tropa. A construção de uma estrada era tema muito frequente nas conversas da população. Quando regressei, quatro anos depois, não estava tudo na mesma mas quase. Andavam máquinas desbravando o terreno e … com soldados dentro! Eram máquinas da Engenharia Mmilitar. Tinha eu saído há pouco tempo de Mansabá e agora entrava ali debaixo do mesmo ruído, na confusão dos mesmos trabalhos. Porquê os militares?- perguntei. Dizem-me que foi “cunha” de alguém “importante” já que, da Junta Autónoma das Estradas, nunca tinha havido resposta e que se não fossem eles a estrada nunca mais vinha.

Mas a construção da estrada ainda demorou. O sr. inverno transformou quase tudo outra vez em lama e a coisa tornou-se difícil. Concluindo: pouca coisa tinha mudado nos acessos e, assim, lá tive de continuar pedalando pelo meio dos pinhais tal como há quatro anos antes. Juro que fiquei um especialista de “pinheiral slalom”! Ora bem, certo dia, numa pontual conversa com os alunos sobre a terra e a guerra de onde tinha saído, falei-lhes de um menino da Guiné, menino como eles, que eu tinha trazido. A curiosidade foi muita, a guerra não lhes era estranha. Havia gente da aldeia na tropa e na guerra, alguns já regressados como eu, outros prestes a partir. Prometi-lhes que, qualquer dia, levaria o menino comigo para a escola para passar um tempo connosco. Entrou tudo em polvorosa, não sei se devido à curiosidade se ao receio da novidade.

Bem, a coisa aconteceu mesmo. Lá levei nha mininu, o meu Zé Manelito, para um dia de convívio com a malta da escola. Já não me recordo da maior parte do sucedido. Para dizer a verdade, tudo isto já se passou há tanto tempo e o assunto “Zé Manel” tornou-se tão normal na minha vida que estava praticamente esquecido. Lembrava-me da excitação da miudagem, de gente na rua na altura do recreio (está visto que para ver o pretito), da reacção de espanto de um ou outro na sala de aulas quando verificava que ele já “sabia” mais do que muitos deles, está claro que comparavam com os do 1º ano, da 1ª classe como então se dizia, (eu tinha uma turma com alunos dos 1º e 4º anos).

Foto 2. Agosto/1967: o menino à mesa, no dia do meu casamento, tendo à sua direita os meus irmãos e “respetivas”.

Foto 3. Agosto/1967: os mesmos referidos na foto anterior, agora com meu pai e minha mãe 

Porquê então, agora, esta lembrança? Obra do acaso. Tenho a sorte de ter em minha posse toda a correspondência dirigida à namorada que depois se tornou a minha “fairy queen” e minha esposa. Tive a sorte, e tenho, de continuar a viver com ela e a considerá-la, até hoje, a minha “fada madrinha”.

E assim, naquelas voltas que de vez em quando costumamos dar às nossas coisas, dei com uma carta a ela dirigida, com data de 24/10/1967, onde me refiro ao acontecimento. A sua leitura avivou-me as memórias e aqui transcrevo a parte da carta que ao assunto se refere:

Foto 4. Excerto do original da referida carta

O Zé Manelito cá passou umas horas. Sucesso! Preocupação! Os garotos do “fim do mundo”, mais incivilizados que os africanos do mato, sim, muito muito abaixo do nosso pretinho, iam-no comendo. Primeiro, miúdos e miúdas fugiram. Ai que ele mata-nos! Pois, pois ele é mau?, mais p’rá qui mais p’rá colá, foge que ele é preto, ele fala quemàgente? iih … aahh … olha o cabelo dele, o mêrmão diz que calquer preto capanhe mata-o logo; qué quel come? olha, ele chama pêssegàmaçã (é verdade, o diabo do miúdo começou a comer uma maçã e chamou-lhe pêssego, tal não devia ser a confusão que ele sentia).
Na sala a coisa foi serenando. Foi aluno como os outros, melhor que os outros. Ambientaram-se. Falei-lhes dele. Olhavam-no espantados. Mais tarde já jogou à bola. Já acamaradavam. Bem, tudo serenou. E hoje já me diziam que ele não era mau porque fazia tudo como eles, por que não o tinha levado outra vez ?, etc. etc. Na pensão foi bem recebido. Deram-lhe um quarto, muitos e muitos beijinhos, o miúdo é tão engraçadinho, que sorte que ele teve, Deus o abençoe … O costume. Foi na camioneta para Pombal. Um bocado aparvalhado com tudo o que lhe tinha acontecido. A madrinha esperava-o. Alegria estampada nos olhos. Dedicação ao máximo. Ah, grande Zé Manel, tens de ser alguém!

A madrinha que o esperava em Pombal era a minha mãe. Como já referi noutro “post” deste blogue o Zé Manel foi, costumava ela dizer, uma bela prenda que este seu filho lhe tinha trazido da Guiné. Viveram juntos, na minha aldeia natal (Casal Novo/Pombal), os três primeiros anos e meio de vida do menino em Portugal, vida que ela acompanhou com o carinho, não de uma madrinha mas de uma avó dedicada, com uma devoção e uma dedicação extremas. Separaram-se fisicamente durante uns anos com a sua ida para França mas o menino foi sempre para ela o “meu Zé Manel”, até à sua morte (em 2003).

Foto 5. Finais de fevereiro/1968 > meus pais e minha esposa (grávida de seis meses) ao sol de inverno, na minha casa paterna. Meus pais limpam um “Petromax”, a eletricidade só chegaria no final dos anos 70! O Zé Manel tinha então sete anos, feitos há pouco.

A propósito recordo que os padrinhos de baptismo do Zé Manel foram meu pai e minha esposa, eu e minha mãe somos assim “padrinho” e “madrinha”. Foi um menino muito querido naquela aldeia, hoje praticamente deserta. Escrevia ele, de Bissau, em 19/10/1981, quase quatro anos depois de ter regressado à Guiné: “ … Quando falam no nome de Casal Novo sinto uma coisa dentro do meu coração, recordar esta bela aldeia, as suas gentes, a amabilidade desta pequena povoação, enfim um paraíso para não esquecer nunca mais – ali nasceu e cresceu (sic) a infância de um pretinho chamado José Manuel Sarrico Cunté - obrigado Casal Novo, obrigado madrinha Piedade, padrinho Zé Bispo, ti Jquina e ti Manel, ti Santieira e ti Rainho, mas não perdi a esperança de um dia poder voltar a essa belíssima aldeia … não perdi a esperança.”

E, dois anos depois, em 29/09/1983: “ … Falando daquela terra, as saudades são imensas, lembro-me das belíssimas férias, a ajudar a madrinha no corte do milho, na apanha da azeitona indo por aqueles cerrados abaixo, encostas e ladeiras, aquele amor que os vizinhos tinham por mim, enfim lembro-me sempre do Casal Novo e da sua gente, daqui um grande abraço para eles todos, ( … ), digam-lhes que ainda estou vivo e não perdi a esperança de ir visitá-los, ( …).”

As pessoas referenciadas já todas faleceram mas as suas esperanças concretizaram-se. Voltou à aldeia a tempo de os ver, vivos, e de com eles partilhar as suas memórias de uma infância muito feliz, ali passada.

O menino é hoje um homem com 51 anos, um pouco da sua história está publicada neste blogue. É um “habitué” dos convívios da CCaç 1419 onde talvez seja mais comum chamarem-lhe Sarrico, afinal o nome por que ficou conhecido entre os militares da Companhia. Junto duas fotos referentes a dois desses convívios, já com alguns anos mas não muitos, não sei precisar a data.. Uma é de Alferrarede e outra de Sta. Marta de Portuzelo.


Fotos 6 e 7 > O Zé Manel nos convívios da CCaç.1419, em Alferrarede, Abrantes e em baixo em Sta. Marta de Portuzelo, Viana do Castelo
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)

12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8305: Parabéns a você (262): José Manuel (...), ou Adilan, o meu menino da Guiné, fez 50 anos em Janeiro deste ano (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7395: História de vida (35): Viagem para o desconhecido (Agostinho Gaspar, ex-1º Cabo Mec Auto Rodas, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612, Mansoa, 1972/74)

Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/69)











Guiné > CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69) > o ex-fur mil at inf, com a especialidade de minas e armadilhas, Manuel Seródio... Fotos do seu álbum. Sem legendas.


A CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 18/10/1967 e regressou a 21/8/1969. Passou sucessivamente por Bula, Bissau, Empada, Buba, Bissau, Quinhamel. Comandante: Cap Inf Marcelo Heitor Moreira. O BCAÇ 1932 esteve sediado em Bissau, Farim e Bigene (Comandante: ten cor inf Narsélio Fernandes Matias)

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados. 



1. Mensagem do Manuel Serôdio, com data de 30 de agosto, e pedido de apresentação na Tabanca Grande [, foto atual à direita]:

Eis a minha ficha militar:

(i) Manuel de Almeida Andrade Serodio, natural de Oliveira de Azeméis, ex-Furriel Miliciano, classe de 1966, n° 95998/65;

(ii) Recenseado com o n°53 em 1964, e incorporado em 16/05/1966, tendo passado à disponibilidade em 29/09/1969.

(iii) Em 16/05/1966 dei entrada no RI 5 em Caldas da Rainha para iniciar a recruta;

(iv) A 21/08/1966 entrei no CISMI em Tavira para começar o segundo ciclo do curso de Sargentos Milicianos na especialidade de Atirador de Infantaria;

(v) Promovido a primeiro Cabo Miliciano em 28/11/1967 e colocado de seguida no RI 6;

(vi) Nomeado para servir na Província da Guiné, fui destacado para Tancos afim de tirar a especialidade de minas e armadilhas;

(vii) Para de seguida ser colocado no RI 15 em Tomar, fazendo parte do Batalhão 1932, Companhia 1787;

(viii) Enviado a seguir para Santa Margarida no final do gozo da licença, fui para Lisboa no dia 28/10/1967, de onde embarquei no mesmo dia no Uíge com destino à Guiné;

(ix) Onde cheguei a 2/11/1967;

(x) Regressei à Metrópole a 23/08/1969 no final da comissão.

2. CCAÇ 1787 / BCAÇ 1932 > Louvor

À Companhia de Caçadores 1787, porque durante a sua comissão na Província da Guiné demonstrou excelente capacidade operacional, elevado espírito de sacrifício e profundo sentido de missão.

Designada logo após o seu desembarque como Unidade de reserva do Comando Chefe, começou logo a desenvolver intensa actividade de campanha, na qual se revelou uma Unidade coesa, agressiva e dinâmica, qualidades que ficaram bem patenteadas nas primeiras operações levadas a efeito.

A perseverança e eficiente actividade operacional continuou depois de ter assumido um Sector onde assegurou a defesa aos trabalhos de construção de estradas e proceder a numerosas escoltas. 

No aspecto psico-social, a acção da Companhia de Caçadores 1787 em nada desmereceu da sua conduta em combate, como demonstra a adesão quase total das populações da sua área às nossas tropas. Adesão esta motivada pelos numerosos melhoramentos sócio-económicos, como construção de casas, assistência sanitária, escolar e reparação das estradas.

Deste modo, a Companhia de Caçadores 1787 contribuiu em elevado grau para a luta contra o terrorismo, facto que leva a realçar os seus serviços e a conceder-lhe este público louvor.

21/08/1969
OS nº N° 35 do CTIG, despacho do EXm° Comandante Militar, em 18/08/1969

3. Há dias, a 7 do orrente, o nosso coeditor Carlos Vinhal mandou-lhe a seguinte mensagem (que ainda aguarda resposta)
:

Caro camarada Serôdio

Quando dizes que tens falado da história da tua Companhia, no Blogue, julgo que o terás feito através de comentários. Confirma se é verdade.

Não temos nenhum registo teu na tertúlia, e curiosamente, nem da tua Unidade. Para que fiques com o teu trabalho acessível, terás que nos enviar os teus textos e fotos, para nós publicarmos em poste. Serão criados marcadores, para facilitar a pesquisa, da tua Companhia e de ti próprio.

Sugiro que me mandes uma foto do teu tempo de Guiné e outra actual, de preferência tipo passe, em formato JPG, Docx ou PDf e nos indiques o teu posto, especialidade, data de ida e regresso, locais por onde andaste, e o que achares por bem dizer para que te possamos conhecer minimamente. Farei a tua apresentação formal à tertúlia, da qual ficarás a fazer parte.

Seguidamente poderás começar a mandar material para publicar. Acho conveniente que comeces tudo de novo, ou seja falar da tua companhia e de ti, eventualmente, desde o início da comissão. Se achares que tens muito material para publicar, poderemos inclusive criar uma série para ti ou para a CCAÇ 1787. Tu resolverás como achares melhor.

Para terminar sugiro que envies a tua correspondência sempre para dois dos três endereço possíveis, sempre para o luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos editores, eu ou o Eduardo. Se tiveres alguma dúvida que queiras ver esclarecida, não te acanhes e pergunta. Estamos aqui para ajudar.

Sem mais por agora, deixo-te um abraço e votos de boa saúde.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal

4. Na realidade, o Manuel Serôdio já é "nosso amigo" do Facebook... Segundo informação da sua página no Facebook, o nosso novo grâ-tabanqueiro nasceu em 21 de outubro de 1944, e estudou na escola industrial e comercial de Oliveira de Azeméis. Pelos diálogos que tem mantido (em português e em francês) e pelo seu endereço email, vive ou viveu em França. Disponibilizou algumas fotos suas, do tempo de Guiné, na nossa página do Facebook, Tabanca Grande, Luís Graça, Guiné.

Em meu nome e dos demais editores deste blogue, fica já formalmente apresentado o Manuel Serôdiio, grã-tabanqueiro nº 578. Aguardemos que nos mande informações adicionais (local onde vive, legendas das fotos, etc.), além de uma ou mais histórias do seu tempo de comissão de serviço no TO da Guiné. Mais fotos também serão bem vindas: com legenda (data, local, etc.).

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10364: Tabanca Grande (359): José Fialho, alentejano de Portimão, ex-1º cabo radiotelegrafista (CCAÇ 4641, Mansoa e Ilondé, 1963/74)

Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 7 de Setembro de 2012:

Meus amigos,
Acabei de ler, o livro "Les Héros de la Guinée-Bissau: la fin d'une légende" de Lourenço da Silva, da qual fiz a recensão, em duas partes, de que anexo a primeira.

Nem sempre se tem acesso a obras publicadas em francês e sobre personagens conhecidos, como é o caso de "Nino" Vieira. Todavia, muitas vezes quando se tenta criar um mito pode-se gerar o efeito contrário.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


Nino Vieira – o mito (1/2)

Por Francisco Henriques da Silva

Pouco, muito pouco ou quase nada se tem publicado em França sobre a Guiné-Bissau. Recentemente veio a lume um livro intitulado “Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende”, do bissau-guineense Lourenço da Silva, publicado na Collection Points de Vue, edições L’Harmattan, Paris, 2012.

Esta editora, cujo nome deriva dos ventos alíseos de Leste, o chamado harmatão, oriundo do Sahel, que sopra de Dezembro a Fevereiro e que afecta toda a África Ocidental, dedica-se à publicação de obras sobre o continente negro, em especial sobre a África de expressão francófona, com aberturas ocasionais, como é o caso, às áfricas lusófona e anglófona.

“Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende” trata-se de uma obra que emerge num imenso deserto editorial e cuja relevância advém de um duplo circunstancialismo, por um lado, o centrar-se sobre aquele país africano, designadamente, sobre os acontecimentos históricos contemporâneos quase totalmente desconhecidos do público leitor a que se destina e, por outro, constituir uma referência isolada senão única – porque a bem dizer não existem outras - para o potencial auditório de expressão francesa.

Acresce que Lourenço da Silva era um dos assessores principais do falecido Presidente “Nino” Vieira, tendo sido designado como coordenador geral da Célula de Promoção Económica e de Inovação Tecnológica, colocando a ênfase nas Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação e na modernização dos serviços da Presidência da República. Presidia também à RENAJ, uma rede local de organizações juvenis. Apesar de jovem (trinta e poucos anos), era um insider e por conseguinte dispunha de acesso privilegiado ao “chefe”, ao círculo próximo dos seus colaboradores e apoiantes mais proeminentes e, mais do que isso, foi testemunha de acontecimentos importantes. Foi, pois, com natural curiosidade que se empreendeu a leitura do livro, à procura de factos, de relatos, de explicações, de pistas que nos permitam compreender a Guiné-Bissau actual. Todavia, ao folhearmos as suas 236 páginas a decepção é incomensurável. As naturais curiosidade e expectativa que a sua leitura desperta esvaem-se com as primeiras páginas e ao longo do texto raramente se reanimam, excepto, aqui e além, com algumas revelações quiçá menos familiares, mas de interesse limitado. Por outro lado, o autor, que se expressa num francês fluente e sem falhas, provavelmente fruto da sua educação em Dakar, confecciona toda uma história de ouvir-dizer, não enquadra bem os acontecimentos que ele próprio viveu, não analisa as respectivas causas, nem tão-pouco pondera as suas consequências. Além disso, expressa, amiúde, opiniões primárias e mal estruturadas.

O mais grave, porém, não está nesta abordagem pouco rigorosa e medíocre do autor, mas no desmedido e ridículo panegírico da primeira à última página consagrado à figura de “Nino” Vieira, donde o próprio sub-título da obra: La fin d’une légende - o fim de uma lenda. Aqui, Lourenço da Silva não poupa adjectivos, nem epítetos, Nino Vieira invariavelmente referenciado como o “Chefe” (assim mesmo na grafia portuguesa) ou o “general”, é simultaneamente uma reencarnação mista de Rambo, do Superhomem, do Batman, de Kim Il-sung, de Che” Guevara, com um toque de alguns mártires da igreja católica (inter alia, Joana de Arc ou S. Sebastião). Há de facto um pouco de tudo como na farmácia: o guerrilheiro mítico que tudo fez, mesmo o que humanamente não lhe era possível fazer; o super-herói das histórias em quadradinhos; o amantíssimo chefe e querido líder; o revolucionário romântico e o mártir que morreu na fé, sempre, por el bién de la causa. Enfim...

Para quase toda a história recente da Guiné-Bissau, desde os acontecimentos mais remotos do tempo da luta de libertação ao período actual, Lourenço da Silva assenta, no essencial, no testemunho do coronel João Monteiro, um dos apoiantes indefectíveis de “Nino” Vieira que foi seu chefe da Segurança e um dos mais conhecidos torcionários do regime ninista, muito embora sejam também referidos vários personagens do inner circle de Kabi na Fantchamna, como João Cardoso, Baciro Dabó e Cipriano Cassamá, entre outros. Esta “história” na terceira pessoa consiste num projecto arriscado, totalmente desprovido de rigor e que nos induz em erros grosseiros.

Quanto aos assassinatos do CEMGFA, Tagmé na Waye, e do Chefe de Estado, João Bernardo Vieira, em 1 e 2 de Março de 2009, respectivamente, Lourenço da Silva afasta a tese do ajuste de contas entre os dois homens e as respectivas facções, ou seja a tese mais difundida e comummente aceite como sendo a provida de maior credibilidade para a explicação dos eventos, para enveredar, por uma via sui generis: Tratar-se-ia, antes do mais, de um vago ajuste de contas generalizado contra Vieira e a Nação guineense, para, em seguida, elaborar uma alegação redonda, todavia claramente perceptível e demencial, atribuindo a Portugal um suposto envolvimento nos acontecimentos (!). Por outras palavras e em resumo, Lisboa seria a grande culpada. Questão arrumada! Qualquer das asserções carece, como é óbvio, da mais elementar fundamentação, mas isso parece não importar ao autor.

Atente-se no que escreve: ... rien ne nous empêchera de croire qu’il s’agissait bien d’une série de règlements de comptes avec Nino Vieira et la Nation Bissau-guinéenene (trad. - ...nada nos impedirá de crer que se tratava bem duma série de ajustes de contas com Nino Vieira e a nação bissau-guineense - p. 146).

Esta teoria do conluio, completa-se, pois, com a inclusão de Portugal. Depois de referenciar as reacções de Mário Soares ao assassinato do Chefe de Estado, menciona o “ajuste de uma conta muito antiga”, que teria que ver com os ressaibos do ex-colonizador. É preciso lermos com atenção o texto para nos consciencializarmos bem de todo este delírio. Assim, Nino Vieira avait peut-être trop péché devant le père colonisateur, en lui tenant tête pendant onze années. Puis son pouvoir dans les années 80 fut encore marqué par l’entrée de la francophonie en force. Sur une terre que les portugais avaient découverte au XVe. siècle, avant d’en obtenir le droit de possession en tant que colonisateurs à la Conférence de Berlin au XIXe. siècle. Le débat sera certainement très long pour évoquer tous les jeux obscurs des anciennes puissances coloniales pour maintenir leur puissance et influence en Afrique, même si cela devra leur coûter quelques attaques dans des presses locales sans visibilité (trad. – “Nino Vieira talvez tenha pecado demais diante do pai colonizador ao fazer-lhe frente durante onze anos. Depois o seu poder nos anos 80 foi ainda marcado pela entrada em força da francofonia. Numa terra que os portugueses descobriram no século XV antes de obterem o direito de posse efectiva na Conferência de Berlim no século XIX. O debate será seguramente muito longo para evocar os jogos obscuros das antigas potencias coloniais para manter o seu poder e influência em África, mesmo se isso lhes custar alguns ataques nas imprensas locais sem visibilidade” – p. 147)

De registar que esta tese é defendida, entre outros, pelo mentor de Lourenço da Silva, o famigerado coronel João Monteiro, já referido, atribuindo também responsabilidades ao Primeiro-ministro de então, Carlos Domingos Júnior (Cfr. http://ditaduradoconsenso.blogspot.com/2011/06/coronel-joao-monteirocapitulo-ii-guerra.html).

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10374: Notas de leitura (401): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (2) (José Brás)

Guiné 63/74 - P10379: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (9): associações de militares e ex-militares, procuram-se (Valdemar Reis, doutorando em Ciência Política pela NOVA)








Lista (simplificada) das 123 associações militares, inventariadas pelo investigador Valdemar Reis. (Clicar nas imagens para ampliar)


1. Mensagem de Valdemar Reis, com data de 5 de julho pp.:

Exmº Sr.
Dr. Luís Graça

Tomo a liberdade de o incomodar com a seguinte questão:

Encontro-me a frequentar o curso de doutoramento em Ciência Política, na FSCH  [Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa] (Aluno nº3949 ) e necessito de recolher um conjunto de dados sobre as associações de militares e ex-militares, a fim de as poder caracterizar sob vários pontos de vista, nomeadamente o institucional.

Da recolha já efectuada através da Net, consegui obter alguns elementos muito úteis para os meus objectivos. No entanto, há um conjunto significativo de associações, sobre as quais não consigo qualquer informação.

Pergunto-lhe se me podia ajudar a identificar a situação dessas mesmas associações. Caso esteja de acordo, enviar-lhe-ia a lista, bem como as variáveis que pretendo trabalhar.

Agradeço a atenção dispensada e reitero  o pedido de desculpa pela maçada.
Valdemar Reis


2. Resposta de L.G.,com data de 13 de julho:

Valdemar: Posso fazer a um apelo ás centenas, milhares, de ex-combatentes que nos leem... Mande a lista... Saudações académicas. LG


3. Resposta do doutorando Valdemar Reis, em 16 de julho:

Boa tarde, Dr. Luís Graça

Obrigado pela sua resposta. Junto envio o mapa das associações militares que já consegui recensear, que inclui alguma informação recolhida na Net.

De acordo com a informação disponível, distribuí as associações por três níveis: a) formal; b) semi-formal e c) informal.

No primeiro caso incluem-se as associações legalmente constituídas: CAE [, código de atividade económica]; estatutos publicados; órgãos dirigentes eleitos e publicitação das decisões (actas).

No segundo caso incluem-se aquelas de que apenas se conhece o CAE. Por fim, no terceiro caso, incluem-se aquelas de que não se dispõe de nenhuma destas informações.

Nesta altura não disponho do ano de fundação de um número significativo de associações que, em princípio, se encontrarão no nível c), dificuldade que não consigo ultrapassar com o recurso apenas à Net.
Agradeço a atenção dispensada e retribuo as saudações académicas.

Valdemar Reis

4. Pedido aos leitores do blogue, incluindo todos os membros (registados) da Tabanca Grande (n=577):

Amigos e camaradas: 

É possível dar uma ajuda a este investigador português, Valdemar Reis,  doutorando em Ciência Política pela minha universidade, a NOVA, respondendo a algumas das nas suas necessidades de informação ?

Indiquem por favor o nome de associações (de militares ou de ex-militares) de que façam parte (ou tenham feito parte) ou que conheçam,  ano de fundação, código de atividade económica (CAE: por ex., 94995), sede (concelho/distrito), data de publicação dos estatutos, contactos (nº telefone, email), página na WEB ou no Facebook, situação atual (com ou sem atividade ou sem atividade)... E outras informações que acharem úteis.

Contacto do Valdemar Reis: clicar aqui. Podem também enviar-nos cópia do mail para a caixa de correio do nosso blogue. Ou deixar as vossas informações na caixa de comentários. Os ex-combatentes são homens (e algumas mulheres, as enfermeiras paraquedistas) que valorizam e apoiam a investigação feita pelos nossos jovens sobre a instituição militar, os combatentes e ex-combatentes, as guerras do séc. XX, a nossa história recente, a nossa presença em África e no resto do mundo... Para que Portugal não morra, pelo menos,  de amnésia! (LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10318: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (8): Porto de Bissau: ponte-cais... (Luís Calafate, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos três das suas histórias e memórias. Segue-se a terceira:



HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (27)

“O Engrácia”

António Engrácia dos Reis era (faleceu de doença prolongada em 20 de Janeiro de 2000 – quase não virava o século) um “alentejano puro” – assentar-lhe-ia muito bem o qualificativo “chaparro”; respondia sempre à chamada; na hora pré-determinada… ele estava no local certo! Comparecia sempre onde era necessário; ninguém o via fora do lugar onde deveria encontrar-se ou comparecer em cada momento. Era um cumpridor nato… sem nunca dar nas vistas; nunca conheci ninguém que, sendo cumpridor, desse menos nas vistas do que ele.

Natural da zona de Beja – Mombeja, era a sua aldeia natal – era o que poderia dizer-se analfabeto “de pai e mãe”; não conhecia uma letra do tamanho do convento de Mafra, porque não enxergaria uma letra tão pequena.

Nas aulas regimentais que fizemos funcionar em Binta, nos intervalos da Guerra, e/ou quando ela fechava para descanso dos intervenientes, aprendeu a ler qualquer “coisinha”, a escrever o seu nome… e pouco mais. Dadas as circunstâncias, não podemos dizer que fosse um mau aluno.

Estatura abaixo da média, suficientemente resistente, ultrapassou todos os obstáculos da instrução, bem como os que lhe foram surgindo durante os dois anos de Guiné. Mesmo no mato, ninguém se apercebia que ele estava lá, mas nunca faltou ao cumprimento do dever; não escolhia lugares mas estava sempre no sitio certo. Não deu azo a louvores… mas também não houve motivo para reprimendas.

Na maioria dos casos, eu escolhi os nomes pelos quais os soldados deveriam ser tratados. Neste caso decidi que ele seria “Engrácia”, porque já havia um Reis e raramente aconselhei o primeiro nome… a não ser que fosse significativo. Alguns pensaram que o “Engrácia” seria alcunha, mas a breve trecho, aperceberam-se da verdade.

Depois da tropa casou-se com uma mulher da sua aldeia… para não fugir à regra. Embora proprietário de uns pedaços de terra - num deles havia uma nascente de óptima água, coisa rara na doirada planície alentejana – abandonou o seu Alentejo natal e rumou a Lisboa. A esposa arranjou emprego como porteira de um prédio da Rua de Entrecampos; o Engrácia conseguiu colocação na Central de Cervejas onde trabalhou… até à pré-reforma.

Quando o General Tomé Pinto comandava a GNR, deslocou-se a Valença para inaugurar um quartel daquela força para-militar. O Ex-furriel R. Figueiredo ofereceu um lauto almoço a toda a comitiva; entre as sobremesas havia um bolo imponente com o emblema da CCaç 675; ninguém estragou aquela obra “quase” de arte. O Figueiredo sugeriu, ao General, que trouxesse aquela guloseima para saborear com a rapaziada de Lisboa. O General telefonou-me “ordenando” – a sua vontade, é para nós mais que uma ordem – que convocasse uns tantos companheiros para um almoço no quartel do Carmo, no Domingo seguinte; o tal bolo seria saboreado à sobremesa.

Telefonei ao Engrácia solicitando que me acompanhasse até ao Cacém e seus limites a fim de convocar alguns companheiros que por ali moravam.

Serviço feito, almoçámos em minha casa. Enquanto bebíamos um copo, aguardando o almoço, o Engrácia perguntou-me, com um sorriso débil nos lábios:
- Oh meu alferes! Lembra-se daquele pontapé que me deu quando estávamos em Guidage? Tentei recordar-me… e respondi:
- Sinceramente não me lembro de te ter dado um pontapé! Sei que dei pontapés e bofetadas a outros soldados… não me recordo do teu caso. O Engrácia logo comentou, honestamente:
- Foi bem dado!... Mas foi bem merecido!
- Assim sendo, fico contente! Se me acusasses de ter sido injusto… aí sim! Eu ficaria aborrecido comigo; considero lamentável e recriminável o facto de um chefe ser deliberadamente injusto. Sabes que os castigos à ordem, além do castigo em si, tinham no futuro consequências graves para os visados, e podiam produzir efeitos durante toda a vida.

O Engrácia, enquanto viveu em Lisboa, era frequentador assíduo das nossas reuniões anuais. Logo que atingiu a “pré-reforma”, partiu para a sua Mombeja natal. Antes de partir, comunicou-me que queria ter uma conversa comigo. Transmitiu-me que ia tratar doutra “reforma” no Alentejo. Comprou uma certa quantidade de ovelhas que ele considerava a sua nova “pensão vitalícia”.

Dois ou três anos mais tarde, convidou-me a visitá-lo na sua santa terrinha, pois tinha lá uma lembrança para mim. Combinámos o dia e num belo domingo compareci em sua casa; ele andava no campo, apascentando o rebanho. Fui ao seu encontro. Fiquei surpreendido, boquiaberto! À sua volta eu só via ovelhas; tinha ali mais de 600 cabeças; para mim era um rebanho infindável.

Quando ele considerou oportuno, ordenou a um “rafeiro”, um pequeno vira-lata que por ali vagueava:
- Bandarra! (era o nome do cão) mete as ovelhas lá dentro!

O “canito” (era mesmo pequeno mas reguila) começou a correr e a ladrar à volta das ovelhas e, em poucos minutos, o gado estava todo dentro de um desmesurado redil – uma vedação em rede com cerca de 4 metros de altura. Surpreendeu-me a maneira como aquele animalejo começou logo a trabalhar e o modo e rapidez como as ovelhas obedeceram. A caminho de casa, passámos noutra propriedade onde havia a tal enorme nascente de água; ali se formava um pequeno regato. Numa poça estava mergulhado um pesado enxadão. Eu perguntei:
- Que faz aquela enxada ali metida na água?
- De manhã, antes de o sol nascer, comecei a cavar aquele pedaço de terra; quando a ferramenta ficou “em brasa”, meti-a na água para arrefecer e, enquanto isso, fui tratar das ovelhas.

O Engrácia também tinha a sua graça.

Ali havia várias edificações, todas térreas, onde ele guardava as ovelhas na época da chuva. Havia também mais de uma dúzia de árvores de fruto variadas. O verde exuberante daquela zona contrastava fortemente com o pardacento da charneca ali à volta.

O Bandarra não largava o dono; era a sua sombra! Comia de tudo o que o Engrácia comesse: maçãs, laranjas ou nêsperas; bebia água, vinho e cerveja. Era engraçado aquele bichinho!

Lá em casa, a esposa tratava do almoço; não recordo o que comi, mas jamais esquecerei os maravilhosos queijos e os deliciosos enchidos e saboreei em grande, antes do almoço. Conversámos longamente! Pouco antes da despedida, o Engrácia entregou-me a prenda prometida: um borrego com cerca de 12 kg, de bela carne, já esfolado e pronto a confeccionar; só faltava cortar e temperar a gosto.

Meio ano mais tarde, a esposa informou-me que ele estava gravemente doente: tinha um tumor maligno na cabeça. Visitei-o três vezes, sempre com outros companheiros da CCaç 675. Da última vez já não almoçou connosco. A esposa disse que ele tinha dores horríveis!

Mais uns dias… e fomos ao seu funeral!

Voltei a Mombeja há cerca de um ano para colocar uma singela lápide da CCaç 675 sobre a laje da sua sepultura.
Que a terra lhe seja leve…
Ele merece!

Julho de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10359: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (26): A reserva de quarto

Guiné 63/74 - P10377: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (39): Poemas da juventude (II): Também eu gritei......



Kichinev, Moldávia, ex-URSS > Dezembro de 1985 > O Cherno Baldé (n. 1959 ou 1960) (à esquerda) e um outro bolseiro. peruano, de nome Aníbal... De 1986 a 1989 estudou em Kiev, na Ucrânia...

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10349: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (38): Poemas da juventude (I): Nasci aqui...

Guiné 63/74 - P10376: Agenda Cultural (213): Festival Todos 2012: Do Intendente ao Poço dos Negros... Viajar pelo mundo sem sair de Lisboa: de 14 a 23 de setembro)






Uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa para promover Lisboa como cidade intercultural: Festival Todos 2012 (de 14 a 23 de setembro): Música, fotografia, circo, dança, teatro, gastronomia, arte urbana


1. Começa amanhã e prossegue até 23 de setembro a  4ª edição do festival TODOS - Caminhada de Culturas… Em Lisboa, viajando sem sair de Lisboa… Como sempre no Intendente (14, 15 e 16 de setembro) (principais locais: Largo do Intendente, Rua do Benformoso, Arquivo Municipal na Rua da Palma, Grupo Desportivo da Mouraria),  mas também, e pela primeira vez, entre a Rua de S. Bento, a Rua dos Poiais de S. Bento e a Rua Cruz dos Poiais (22 a 23 de setembro), no eixo do Poço dos Negros.

O objetivo é reafirmar e promover Lisboa como capital intercultural.

Nas edições anteriores, este evento teve uma média anual de 20 mil participantes…  Este ano podemos contar com espetáculos e outras iniciativas que nos trazem as cores, os sons, os sabores, as imagens e os artistas e as gentes que habitam aquela parte do território da cidade e que vieram, definitiva ou temporariamente, morar com os alfacinhas, e que são provenientes das mais desvairadas partes do mundo ( Índia, China, Paquistão, Bangladesh, Ucrânia, Brasil, Cabo-Verde, Guiné Bissau, etc.)

O programa inclui uma oferta diversificada de espetáculos, workshops em lojas, praças e ruas do bairro da Mouraria, desenvolvidos em colaboração com os seus habitantes. Artistas de teatro, dança, música, novo circo, contemporâneos, convivem com projetos comunitários e artistas da world music ou das danças tradicionais do mundo.

 Haverá workshops de gastronomia do mundo, exposições de fotografia, a Rua TODOS (no eixo das ruas de São Bento / Poiais de São Bento) e múltiplos espetáculos em lojas e casas do bairro.

Aqui fica um repto e um  convite aos nossos leitores, nomeadamente os que residem em Lisboa e na área metropolitana de Lisboa,  descobrirem ou revisitarem com tempo e vagar ruas, bairros, restaurantes, mesquitas, lojas exóticas de uma parte da cidade que muitos  lisboetas ignoram….

Tudo isto pode e deve ser feito a pé ou utilizando o já mundialmete famoso elétrico nº 28 no seu percurso entre o Martim Moniz e o Poço dos Negros,,,

Da Guiné-Bissau, destaque para:

(i) Cozinmha da Guiné-Bissau, com Nina Codé

22 de setembro, sábado,  das 13h00 às 15h00
Centro InterculturaCidade
Travessa do Convento de Jesus, 16A

Caldo de Chabéu (fruta, óelo de palma, beringelas, tomates, cebolas, alhos, quiabos e galinha)

(ii) Djumbai Djaz

22 de setembro, sábado,  23h00 / 24h00

Formação incontornável na história da música guineense em Portugal, onde se cruzasm as matrizes tradicionais e comtemporâneas  com o som afromandinga e a canção urbana de José Carlos Schwarz

(LG)

Descarregar o programaTodos 2012 aqui.

2. Destaque > Sinopse > Programa 2012 (texto da organização, reproduzido com a devia vénia)

A quarta edição do Festival Todos apresenta-se de novo sob o signo da interculturalidade em Lisboa, mas desta vez com uma novidade de alargamento territorial. Depois de ter dedicado três edições exclusivamente ao bairro que une a Mouraria ao Martim Moniz e ao Intendente, desta vez, abalança-se a estender a sua programação a uma outra zona de Lisboa: S. Bento e o Poço dos Negros.

A História da chegada de comunidades africanas àquele bairro é antiquíssima. Hoje, este bairro caracteriza-se por ter uma população cosmopolita, que convive nas ruas apertadas e íngremes. Indianos e paquistaneses, brasileiros e africanos, estudantes de todas as nacionalidades vindos através do programa Erasmus, trazem a este bairro que também mantém as suas tradições portuguesas, na arquitectura, nas antiguidades e velharias, nos cafés, barbeiros, e os seus residentes, uma atmosfera que cruza ventos do oriente com os do ocidente, num lugar que dá vontade de conhecer melhor.

A programação prolonga-se pela primeira vez, por dois fins-de-semana. O público é convidado a vir e a voltar, para seguir uma rota de espectáculos de grande público e de intimidade, de experiências gastronómicas que desta vez alcançam Timor, Xangai, Cabo Verde, o Alentejo, a cozinha europeia, São Tomé e Príncipe, Guiné, Nepal e Goa. Um baile oriental, para dançar com residentes asiáticos que vivem na Mouraria. Haverá peças de pequeno formato de Teatro, Dança e muita música em lojas e restaurantes para as crianças acompanhadas de adultos. Uma orquestra de pequenos músicos acenderá as emoções de uma bailarina na rua...

Os espectáculos nesta edição foram especialmente escolhidos a pensar na história já percorrida deste Todos. Será que um festival tem uma personalidade que nasce e amadurece? Será que um festival tem um corpo com braços que se estendem para além de si? Será que o Todos será cada vez mais de Todos?

Na Mouraria ecoará na noite de abertura, o som da Orquestra Todos que, ao lado de elementos da Orquestra di Piazza Vittorio, fará o maior concerto de todos os Todos.

O Circo MANDINGUE que chega da Guiné Conacri traz-nos a força incrível da África Negra que se mostra nas danças contorcionistas e acrobáticas desta trupe impressionante de bailarinos.

Haverá um conjunto de propostas para que pessoas do bairro, pessoas de toda a Lisboa e públicos, possam “meter as suas mãos na massa” do festival. ARRAIAL, será um exemplo: Um espectáculo de dança e música ao vivo da Companhia Circolando, traz à Mouraria o universo das festas do norte de Portugal, que contará para além da participação de oito bailarinos e a banda Dead Combo, com cinquenta residentes de ambos os bairros, pessoas e crianças oriundas de todos os cantos do mundo.

A companhia francesa Kumulus irá abrir o segundo fim de semana do Todos num parque de estacionamento, na Rua D. Luís I, em Santos, com um espectáculo que fala do desabamento do valor humano, das cidades do lixo e da vida invisível de uma polis aparentemente desmoronada. Um espectáculo pungente e dotado de uma actualidade desarmante.

O Todos está aí, para viver a cidade por dentro. É no interior deste festival, agora com braços, que a respiração do mundo que vive em Lisboa, se sente melhor. Não hesite, venha e traga todos consigo.
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10373: Agenda Cultural (212): “Do Tejo ao Rovuma” (sessão de lançamento e apresentação), 28 de Setembro, Biblioteca Municipal - Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)

Guiné 63/74 - P10375: Recortes de imprensa (58): Até os mortos são roubados!... Desaparece lápide em bronze com os nomes dos 13 combatentes de Monção mortos na guerra colonial (Carlos Pinheiro)


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro, com data de 11 do corrente, e com o seguinte recorte de imprensa:


Roubaram monumento de bronze com mais de metro e meio
Memorial em Monção homenageava os 13 militares do concelho que morreram na Guerra do Ultramar


Por: tvi24 / CM | 11- 9- 2012 18: 40


A Câmara de Monção participou à GNR o furto de uma lápide em bronze, inaugurada em 2008 como homenagem aos militares do concelho que morreram na Guerra do Ultramar, que custou cerca de 5.000 euros. [Imagem a seguir, à direita, cortesia do blogue Memórias...]

Esta lápide, dividida em duas placas de bronze de vários quilos, continha os nomes dos militares que perderam a vida naquela guerra e tinha sido instalada a 25 de maio de 2008 na praça Deu-la-Deu, o principal espaço da vila.

Segundo a GNR, contactada pela Lusa, o furto terá acontecido na madrugada de 4 de setembro e o caso 

participado àquela força, pela autarquia de Monção, três dias depois.


A lápide, com mais de 1,60 metros de altura e uma espessura de cinco centímetros, apresentava os nomes dos 13 soldados de Monção que morreram em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau durante a Guerra do Ultramar e resultou de uma iniciativa conjunta entre a Câmara e a delegação local da Liga dos Combatentes.

O custo, suportado pela autarquia, ultrapassou os 5.000 euros, mas o presidente da Câmara de Monção, José Emílio Moreira, já garantiu que este memorial será agora substituído por uma placa de granito.

«A ver se alguém não pega na placa e se não a leva para fazer um muro ou algo do género», lamentou José Emílio Moreira.

O autarca admite que a praça onde estava instalado o monumento, apesar de ser a mais central da vila, durante a noite «praticamente não tem ninguém», o que terá contribuído para o furto.

«Sofremos do problema de falta de pessoas e, por isso, à noite, não anda por lá ninguém, mas quem fez isto preparou muito bem, porque não era possível chegar ao local e carregar a lápide facilmente. Por esta altura, já estará derretida, mas nem um quinto dos 5.000 euros que gastamos nela vão buscar», lamentou o autarca.

Segundo a GNR, estão em curso investigações ao furto, tendo o caso sido participado ao Tribunal de Monção.


Fonte: Portal tvi24 (com a devida vénia...)


2. Comentário do editor:

Sinais dos tempos ?!... Apetecia-me dizer, correndo o risco de entrar pela atualidade política adentro (o que me está vedado): até os mortos são roubados!... Infamante!... Daqui vai um abraço solidário para a CM de Monção e para a delegação local da Liga dos Combatentes... Este tipo de vandalismo tem de ser severamente reprimido. Mas, para já, temos de encontrar soluções, em cada concelho, para proteger os monumentos aos nossos mortos e prevenir futuros roubos e atos de vandalismo!... Por exemplo, substituir o cobre e o bronze por materiais mais correntes mas não menos nobres como granito, como vai ser feito pela CM de Monção... O cobre tornou.se um minério semiprecioso e as máfias globais chegam rapidamente até nós por autoestrada!... LG
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10347: Recortes de imprensa (57): Gazeta de Notícias, da Guiné-Bissau - Divisão de Educação Cívica das FA Recupera Estúdio da Rádio Libertação (Patrício Ribeiro)

Guiné 63/74 - P10374: Notas de leitura (401): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (2) (José Brás)

1. Segunda e última parte da apreciação do livro "À Viagem de Tangomau", a última obra do nosso camarada Mário Beja Santos, feita pelo outro nosso camarada José Brás, ele próprio um autor muito importante na bibliografia da Guerra do Ultramar (ou Colonial). 


ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO  (2)

"A VIAGEM DO TANGOMAU" - uma obra prima

Por José Brás

Deixando para trás comentários velhos e por provado que o pormenor levado a tal extremo, não é exagero mas virtude em Tangomau, volto à minha confirmando que tal Tangomau podia ser ou podia não ser eu, de facto, malgrado outra coisa ter dito no início desta conversa que aqui vim ter convosco sobre o livro do Mário, lembram-se, - a minha grande perplexidade perante este livro e perante as suas personagens, o sobretudo o Tangomau, vem da descoberta de um homem que, com alguns pontos de toque comigo próprio, visto assim, é um ser diametralmente diferente de mim, este leitor que agora escreve sobre o que leu e que, obviamente, vivendo por esta via o que viveu por outras e reais, o autor, se modifica também um pouco e ganha opinião, provavelmente diferente da que teria antes da leitura -.
Tangomau, aquele que morre ausente ou desterrado da pátria, não podia ser eu tal como fui na Guiné, não um Alferes atirador e Comandante de um Pelotão de Caçadores Nativos e de um outro de Milícias, numa zona de tudo desprovida menos de acção de combate, de sangue e de dor, sofridos ou infligidos, mas um Furriel de Transmissões de uma Companhia de Caçadores num outro lugar também vazio de referências e de conforto e também agitado pelo combate, pelas mortes e pela dor. Não podia porque foi diferente a abordagem que fiz à guerra, daquela que fez Tangomau.

Na obrigação de comandar muita gente e de cumprir a missão junto ao Geba, salvando o que fosse possível dos sinais de civilização que transportava e das vidas dos seus comandados sem faltar nem um dia ao cumprimento das obrigações que lhe atribuíram, Tangomau tem que mergulhar até ao fundo naquela transformação humana que detectamos na leitura do livro, tornando-se num homem diferente do que fora e até do que imaginara ser, tornando-se num N’Bakê, disponível para matar e morrer e também para abraçar os seus homens e com eles chorar o choro balanta, mandinga ou fula, regressando a Lisboa, aparentemente o mesmo que partira, mas na realidade outro.

Eu, aceitando a guerra porque recusava a fuga, embarquei como civil e tanto quanto pude vivi na Guiné como civil, rejeitando a vida local, sem farda por fora nem por dentro da pele que me cobria, e um claro sentimento de admiração pelos que lutavam, alegadamente pela liberdade do seu povo.
Com isto terei voltado o mesmo que partiu? Creio bem que não e ninguém poderia ter voltado o mesmo que partira para tal missão. Voltei outro, seguramente, porque combati, porque disparei, porque fiz emboscadas e embosquei a gente que admirava, vi os seus mortos e estropiados, as suas culturas e casas destruídas, e, pior, vi os meus próprios mortos e neles morri também um pouco para continuar vivo mas outro inevitável, diferente do que partira e também diferente do Tangomau na volta.
E sei que, mesmo eu, se tivesse tido uma experiência diferente na Guiné, seria ainda outro no regresso, igualmente diferente do que partira, mas diferente também do que regressou de facto.

Por exemplo!
Na recruta nas Caldas eu era sem dúvida o melhor instruendo dos sessenta do meu duplo pelotão, tanto no aspecto físico, como nos testes escritos. Toda a gente o sabia e toda a gente pensava que eu iria ser enviado para Mafra para graduação em Aspirante. Vinha de muito exercício físico, quer da vida de aldeia nas vinhas de Alenquer, quer no remo de competição no Tejo de Vila Franca, na corrida, na prática do boxe, na actividade taurina de forcado a quem “calhavam” sempre os toiros duros e grandes.
Fizera o Liceu a pulso, os dois primeiros ciclos, cada um num ano, e frequentava a alínea F do 3.º ciclo quando me enfiaram no quartel. Vinha com provas e o Comandante do Pelotão sempre me transmitiu a ideia de grande consideração. Porém, próximo do fim da recruta, o Cabo Miliciano que secundava o Alferes na condução da instrução, confidenciou-me que este hesitava muito porque tinha dois outros instruendos, professores da escola primária como os pais do Alferes que ele tinha de proteger.
Resultado! Não fui para Mafra onde seria atirador e fui para Transmissões. No dia em que o Alferes, excelente pessoa, digo, juntou o pelotão para comentar o futuro de cada um dos seus instruendos, desabafou que a única surpresa dele era eu que ia para Transmissões, podendo dar um grande Comando.
Disso recebeu o troco de um enorme grupo de instruendos que lhe fizeram notar que a culpa era dele, Alferes por não me ter enviado para Mafra.
Na altura fiquei chocado com a repetição na tropa dos mesmos tiques sociais do civil e porque o pré seria bem mais baixo, o que fazia toda a diferença para quem vivia apertado. Mais tarde pensei que afinal o homem me havia feito um favor pela diferença dos riscos, coisa que em Aldeia Formosa e em Medjo não se notava, uma vez que fazia todas as colunas a Buba e a Gadamael Porto e ainda ia algumas vezes às operações voluntariamente e apenas pela sede de adrenalina, pela curiosidade sobre as situações de combate, por solidariedade com amigos estoirados e mesmo por uma ou outra loucura.

Este trecho que aqui vem, aparentemente a despropósito, não tem apenas o objectivo de teorizar sobre as diferenças entre cada qual e comprovar o que disse atrás, mas mesmo de navegar na busca de diferenças que podem ocorrer mesmo com um só cidadão na possibilidade de pressupostos e vivências diferentes.
Que poderia ter-me acontecido, se em vez de Furriel de Transmissões me tivesse calhado ser Alferes atirador, muito provavelmente tropa especial, atirado para um sítio qualquer a comandar pelotões de Caçadores Nativos e intervindo em combate com as responsabilidades das missões e das vidas dos subordinados?
Hoje resta-me a lástima de reconhecer que me entreguei pouco àquela gente, a conhecer os seus costumes e culturas, a entender-lhes as aspirações e objectivos, as suas verdades e mentiras, a todos e cada um deles, e de não ter sido seu um amigo engajado. Trajando à civil a maior parte do tempo, recusando convívio com tropa profissional, perdido no afã da recusa, vivi apenas na ânsia de voltar à terra de onde saíra e de esquecer que aquele tempo tinha existido, coisa que, como se vê, não aconteceu a Tangomau.
O relatório...


Agora, a ficção!

A ficção que não pode desligar-se do clima que o relatório definiu, em lugares, em tempos e em modos. Em modos das gentes, já se vê, porque as gentes, e neste caso, principalmente o Tangomau, são o único e verdadeiro motivo de qualquer escrito, seja ele relatório, seja ele romance, partes, aliás, diferentes mas intrinsecamente ligadas à realidade real, num caso relato directo e sem arredondamentos psicológicos ou condicionantes possíveis mas não efectivas, e o outro, especulando, desenhando hipóteses outras e caracteres morais e intelectuais que podem explicar a realidade. E não se tenha o Relatório que atrás vem referido por mim na relação do que li, como peça menor na armadura do que aqui se pretende dizer da Ficção. Nenhum personagem de ficção, muito ou pouco realista, mesmo que muito romântica, terá grandes hipóteses de amar ou de odiar, de escrever ou de guerrear, de cavar terra de vinha ou de sonhar, se respirar outro ar que não seja nesta mistura de setenta e um por cento de ozono, vinte e um por cento de oxigénio e de um por cento de gases raros.
O Tangomau vai despejado de um ambiente citadino, só por acaso muito culto, dessa cultura que se tem como imagem, construída no S. Carlos, no Teatro Nacional, nos museus e galerias, nas tertúlias, nas grandes leituras, na missa da Sé ou da Basílica da Estrela, também com um fino pó de progresso que estas vidas podem ter, com podem ter o seu preciso contrário, e cai na floresta sub-tropical da Guiné a comandar soldados negros que haviam ficado de um lado da contenda como poderiam ter ficado na outra, obrigado, portanto, a instruí-los no combate contra os seus irmãos de sangue ou de vizinhança; obrigado a defender-lhes a vida; obrigado a sofrer-lhes as dores e sofrimentos e a partilhar o nada que tinham para viver ao tempo, nesses simulacros de acampamento, a calcorrear quilómetros de lama e de trilhos, a sofrer os mesmos mosquitos e a mesma febre palúdica; aprendendo com eles a raiva do combate, a ansiedade da espera, o regresso exausto da operação na felicidade dissimulada sob a pele, na certeza que se volta vivo e inteiro, por fora, ao menos. Dois anos desta partilha maltesa, desta quase certeza de uma bala perdida, um fornilho armado, uma noite sem jantar, uma fé que vacila.

E que faz um branco, militar, oficial subalterno nesta tropa fandanga, neste simulacro de vida, neste patriotismo de dúvida e com inimigo que se odeia e que se ama como só ama quem odeia e só odeia quem ama, sobretudo se Pátria aqui é uma abstracção diluída no calor abafado e no capim apodrecido de uma bolanha de mais sangue que arroz?
Transforma-se em ficção. Busca-se nos outros que tem em si e que não conhecia, nem em Lisboa nem em Mafra, nem em Ponta Delgada.
Tenta encontrar-se nos Sancó e nos Fodé, apurar os sentidos no cheiro de enxofre que lhes sobra das partes dos corpos com sua carne em falta.
Ficciona-se obrigatoriamente nesse tempo de transição de branco quase doutor nas calçadas de Lisboa, para esse M’Baké, soldado negro combatendo no lado errado da terra de ninguém na lalas do Cuor, e de novo branco no regresso do Uíge, aos baldões de uma vida nova para refazer no puto, sentindo a falta desses eus que deixou nas matas e nas mãos de seus soldados, tendo que reinventar-se, não a partir do que havia deixado mas do que restou do combate, sempre com um pé cá e outro lá, no eco das balas disparadas, das alegrias e das tristezas que lá deixou como bagagem a mais que sempre nos pesa nas mãos e na alma na ilusão de se possa recuperar.

E é dessa ilusão de recuperação que o herói (todo o herói) vive nas esquinas circunstanciais do tempo e do modo. Uma ilusão que dói e que une todos os que daqui partiram jovens e regressaram velhos, julgando-se todos os dias na possibilidade de regressar aos cheiros, aos trilhos, aos medos e à camaradagem.
O Tangomau regressa ao passado, antevendo a festa do reencontro e a euforia dos lugares e das memórias.
Mas nem os lugares são os mesmos nem as árvores escondem já inimigos.
As vidas mudaram, ainda que não para melhor ou para maior esperança. Tangomau espreme o limão do convívio e da festa até ao âmago, na generosidade e na imagem dessa gente acossada. Dentro de si o abraço vai até ao último fôlego, até às pontas dos dedos que resistem teimosos ao despegar, sentindo já a melancolia da separação que ainda não se deu, a saudade que lhe irá doer nos dias, nas semanas e nos meses seguintes, como se aquela terra e aquela gente lhe corresse nas artérias entre a boca e as células e se escoasse pelas veia abertas na hora da partida.
Só agora, na última viagem, se completa o herói, acabando o filme e o espectador saindo da sala na imaginação ainda do mistério depois do “the end”.

Aparentemente, as vidas que viveu entre Teilhard de Chardin e conversas com Ruy Cinatti, as viagens de lambreta de Mafra e Lisboa, o romance e “a primeira vez” com a prostituta Maria Luísa em S. Miguel, as patrulhas, as emboscadas, os golpes de mão, as flagelações, um casamento de malucos em Bissau entre duas operações de guerra, a psiquiatria simulada, estão fechadas.
Vendo bem, nem existiram nunca. Nem Finete nem Mato de Cão, nem Missirá nem Bambadinca, nem floresta de galeria, nem bolanhas de arroz, nem colónia, nem mandigas, nem balantas, nem guerra colonial.
Portanto, é falso o Alferes Lopes Ferreira, em Mafra dando instrução de ordem unida, de armamento, de batidas em linha ou em coluna, de guerra subversiva, de tática; São criação pura o Furriel Saiegh, o cozinheiro doutor Quebá Sissé, Infali Soncó avô de Malan, Mamadú Balde passeando na Feira Popular de braço decepado, a conversa com o padre Lâncana Sancó acompanhada de fatias de pão quente, talhadas de marmelada e chá de erva cidreira.
O Tangomau não podia ter passado dois anos da sua existência dormindo em tarimbas improvisadas em moranças de colmo, e quartéis/tabanca, entre dois ou três furriéis brancos, soldados negros e suas mulheres/criança, criançada da barriga empinada, armas prontas para o fogo, galinhas e porcos e cabras, porque o Tangomau nunca existiu, nem o PAIGC, nem a guerra, nem o regime que a forçou. Ninguém iria lembrar-se de se por a ler Simenon, Sartre, Steinbeck, Florbela, J. D. Salinger, Mickey Spillane, Camus, nos breves intervalos da instrução sobre granadas, sobre metralhadoras, sobe a eliminação de sentinelas a faca de mato, em Mafra. Ninguém se poria a ouvir Montverdi, ou Bach, ou Mahaler, ou Shostackovich, entre duas patrulhas nas margens do Geba.

Só uma imaginação muito livre poderá entender que balas tracejantes em ataque do PAIGC destrua parte de Missirá, morança a morança ardendo em labaredas altas, alimentos, livros, roupas civis de militares e fardas militares de civis em andanças de guerra, discos de música clássica, tudo ardendo inexoravelmente pelo meio dos tiros de lá e de cá, rebentamentos de morteirada, gritos de gente, deixando cada qual com a roupa do corpo, apenas, alguns em cueca velha e sem mais nada que os cubra além da santidade da situação, até que socorro de fora se arrime no fim do fogachal e reponha trastes, paparoca e algum ânimo.
Tangomau é uma abstracção.
“Tamgomau é um ser que quando chega a adulto passa a viver entre a civilização dos brancos e os mistérios mais profundos das culturas nativas, numa avenida ou rua qualquer da tal civilização dos brancos, sente cheiros tropicais, deslumbra-se com o arvoredo da floresta de galeria, não teme a cobra verde nem a surucucu, é capaz de ficar pasmado diante do poilão sagrado, está sempre a pedir papaia e água fresca da fonte…”

Tangomau é um tempo limite entre dois espaços geográficos e culturais separados por milhares de quilómetros de água de mar, por séculos de ocupação e de resistências, de muitos sinais do sangue que homens feitos inimigos colheram uns nos outros, deixando como marcas nos seus corações até que o oxigénio dos tempos purificou e tornando possível o abraço.

Tangomau, há quem chame a Beja Santos, hoje e aqui deste lado ainda vivo de uma guerra apodrecendo, como haviam chamado antes, outros e no outro lado da mesma guerra, N’Baké, alfero, irmão.

A partir deste livro, as cartas dos jogos que ainda se batem no pano incolor da memória imperial, ganham novas qualidades e enchem-se de trunfos em todos os naipes.

Espantoso Relatório sobre a praxis de uma guerra cheia de contradições que se iniciava nos quartéis do rectângulo entre coronéis de proeminentes barrigas mentais e jovens licenciados saídos da Universidade e da vida já com luzes mais evidentes sobre o homem e sobre o mundo; entre os velhos Manuais de Instrução Militar e uma realidade histórica que os negava; entre eucaliptais e caminhos velhos de um País esgotado onde se disparavam Mausers e se aprendia a escolher a zona de morte, e a floresta de galeria da Guiné.

Ficção habilmente montada sobre uma realidade que a ultrapassaria, não fora a mão cuidadosa do autor que a constrói num jogo de faz de conta que foi o que realmente foi, e nos retrata, a cada um que palmilhou matas e tarrafos; que contou todos os dias até ao seu regresso; que se julgou inteiro na volta e só depois se apercebeu das costelas que ficaram a faltar-lhe porque, não sabe porquê nem como, as deixou nas cartas militares do seu turismo de fogo na Guiné, e naquele gente negra que com ele ou contra ele se bateram de armas na mão em nome de um travão da história.

José Brás
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Notas de CV:

José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo (Guiné) entre 1966 e 1968

Mário Beja Santos foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca (Guiné) entre 1968 e 1970

 A não perder, a leitura da primeira parte deste texto no poste de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10369: Notas de leitura (400): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (José Brás)

Guiné 63/74 - P10373: Agenda Cultural (212): “Do Tejo ao Rovuma” (sessão de lançamento e apresentação), 28 de Setembro, Biblioteca Municipal - Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)


“Do Tejo ao Rovuma” (sessão de lançamento e apresentação), 28 de Setembro, Biblioteca Municipal - Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)


Companheiros e camaradas,

Agradecia (se for possível) a publicação desta informação no vosso blogue.
Os meus agradecimentos
Carlos Vardasca

“Do Tejo ao Rovuma”

(sessão de lançamento e apresentação)

Dia 28 de Setembro (Sexta-feira) pelas 21,00 horas
Na Biblioteca Municipal
Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)

São as novidades em: 


"Do Tejo ao Rovuma" conta a história (em fotos e outros documentos) de cerca de cento e trinta homens pertencentes à Companhia de Caçadores 3309, que partiram da cidade de Chaves rumo ao norte de Moçambique, aquartelados nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia, onde conviveram com a brutalidade da guerra para onde foram enviados "sem jeito nem prosa". Onde viram os seus afectos violentados por verem tombar em combate companheiros seus com quem partilharam as saudades da distância, mas também pela revolta contida por terem sido arrancados do aconchego familiar e obrigados a participar num conflito "que não sentiam como seu". 

É de facto (na sua devida dimensão) um documento histórico a preservar, pois nele está gravada "Uma breve pausa num tempo daquelas vidas".
Gostaria de poder contar com a vossa presença.

O autor
Carlos Vardasca

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Notas de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: