
As minhas memórias de Gabu
Na cozinha da messe de sargentos, em Nova Lamego, num ataque de "fair play":
O “Sermão aos peixes” em tempo de guerra
Revejo, amiudadamente, imagens sobre a nossa comissão militar na Guiné que me provocam intensos calafrios. Não sendo este o caso, pois a pose para o clique que máquina fotográfica registou, visa o recordar de velhos camaradas que conviveram comigo por terras de Gabu. Vamos, pois, dissertar sobre um ataque noturno mas de… fair play.
A noite era de festa. Comemorava-se o nascimento de Jesus, ou seja, festejava-se a quadra natalícia de 1973. Lá fora o breu da noitada reclamava cuidado. No interior do arame farpado o pessoal convivia. Uns, não recusavam disfarçar o vício do tabaco; outros, riam pelas “traquinices” provocadas pela minha pose que mais parecia o reeditar do proclamado “Sermão de Santo António aos Peixes”. É óbvio que o desígnio que ficou célebre é da autoria do padre António Vieira que a 13 de junho de 1654, na sequência da encruzilhada de litígios entre colonos brasileiros e os Jesuítas, ordem a que Vieira pertencia, contestavam a escravidão dos povos indígenas. Numa observação ao acontecimento litúrgico, o sermão terá sido declarado em São Luís do Maranhão, Brasil.
A história diz-nos, também, que três dias depois, António Vieira embarcou para Lisboa onde debateu com o rei D. João IV leis que garantissem direitos básicos para os índios brasileiros protegerem as explorações dos colonos brancos. Esse objetivo visava, simultaneamente, a perda da mão-de-obra barata por parte dos colonos que exploravam impiedosamente os escravos.
O sermão constitui um surpreendente imaginário onde o padre António Vieira toma os peixes como símbolos de virtudes humanas que colidem em vícios de colonos então severamente censurados. Aliás, todo o sermão é uma alegoria, tendo em conta que os peixes são simplesmente uma metáfora dos homens.
A metáfora dos homens embebecidos por tamanha homilia não foi, em particular, a guerra com a qual convivemos. Não somos conhecedores de sermões aos peixes, nem enxergámos indícios de trabalho tipicamente escravo. Conhecemos, e essa foi a realidade, fazendas exploradas por feitores brancos, sabendo-se, historicamente, que a anulação da escravatura na Guiné teve lugar em finais do século XIX. Logo, escravos fomos nós de um regime totalitário que impunha regras de obrigatoriedade a jovens soldados.
Assim sendo, em meu entender, não houve ao longo da guerra pactos de reconciliação com o poder central instalado em Lisboa, nem metamorfoses que carecessem o erigir de novas leis do Estado Novo para protegerem os escravos inocentes atirados para as frentes de combate. Davam o seu corpo às balas e lá vinha a já gasta retórica que o audaz combatente morreu ao serviço da Pátria. Ponto final.
Nesta panóplia de combatentes nos campos da guerrilha, pormenorizo caras jovens de antigos camaradas que o tempo ousou imensuravelmente separar. Com a marcha da vida em rodagem moderada, embora o “contrarrelógio” visione sexagenários que se aproximam vertiginosamente para uma viragem de direção para um escalão superior, isto é, para categoria de septuagenários, eis-me, uma vez mais, ao encontro do precioso intento de rever companheiros que comigo partilharam inolvidáveis momentos.
Sei que a quase totalidade dos camaradas pertencentes ao BART 6523 que se fixou em Nova Lamego, Madina Madinga e Cabuca, são originários de terras nortenhas. Recordo que o Batalhão foi formado em Penafiel, não obstante de nunca por lá ter passado, uma vez que fiquei em Lamego a ministrar o 2º curso de 1973, precisamente ao 1º grupo de cadetes – Operações Especiais/Ranger -, seguindo-se a minha incorporação no respetivo corpo operacional na região de Gabu, um mês depois das nossas tropas por lá se terem instalarem.
Porém, a distância do tempo levou-me a citar o “sermão aos peixes” do padre António Vieira, embora ao de leve, dado que a narrativa tem como objetivo prioritário uma aproximação a esses célebres camaradas que foram meus fiéis companheiros enquanto da nossa estadia em chão fula.
Sabe-se que no Norte, presumivelmente ao invés da rapaziada do Sul, existe uma esmerada afeição pelos militares da guerra de África. As Tabancas de ex-combatentes que prestaram serviço na Guiné que por lá existem, são a prova reconhecida desse inequívoco querer. Os convívios predominam. Ainda bem que assim é. Bem-haja a vossa voluntariedade!
Fica este meu suposto “sermão aos peixes” em tempo de guerra, tendo em conta que esses outrora jovens, com caras joviais, são hoje gentes com rostos já rogados e vergados ao peso de uma idade que teima em não dar tréguas num trilho ultrapassado com alguma segurança. Aqui não há minas, nem tão-pouco fornilhos da desgraça. Vivamos a vida enquanto esta não derrapar para a fatídica emboscada final.
Camaradas, espero, e teria muito prazer, um dia reencontrar-vos! Ficam os sinais de esperança. Facultem-me, pelo menos, um grito de alerta. O Zé Saúde, que vós conhecestes vive, desde criança, na cidade de Beja.
A vida, não obstante ter-me sido madrasta, contínuo a usufruir da minha plena liberdade e pronto a desafiar quilómetros de estrada. Aqui não há AVC que me derrube, por enquanto.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
29 DE DEZEMBRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P18151: Memórias de Gabú (José Saúde) (68): 43 anos depois: lembrando os dolos em tempo de guerra. Três contos e novecentos que caíram numa emboscada. (José Saúde)