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terça-feira, 18 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


7 - A ALIMENTAÇÃO

A cozinha “nova”
Refeitório do 3.º Pelotão
Gazela servida no dia Páscoa de 1969

A alimentação para 160 homens, pela qual eu era responsável, era má. Lá diz o ditado que sem ovos não se pode fazer omeletes, nem transformar pedras em pão. Não podia transformar o chouriço enlatado num bom bife. Todos os géneros alimentares vinham da Manutenção Militar de Bissau. Não havia população civil a quem, eventualmente, pudesse comprar o que quer que fosse. As populações mais próximas estavam em Tite a 20 Km, mas a estrada estava inoperacional tendo sido abandonada. Havia ainda, também a 20 Km, o destacamento de S. João que ficava defronte a Bolama, mas separado pelo largo rio. No inicio da comissão ainda cheguei a comprar galináceos e porcos, quando lá fomos buscar o primeiro reabastecimento, mas foi sol de pouca dura, porque o CIM em Bolama comprava tudo. Para além disso a estrada Nova Sintra a S. João estava normalmente minada e era por ela que as colunas de reabastecimento eram feitas. Lembro que por duas vezes nesta estrada foram acionadas minas que provocaram a morte a quatro camaradas e vários feridos, pelo que fazer uma coluna para ir às compras estava fora de questão.

Durante um mês, em vinte e sete dias eram fornecidas refeições à base de enlatados: chouriço, sardinha e atum de conserva, dobrada liofilizada, que era intragável, e eventualmente fiambre. As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.

Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos, (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade. Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas. Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.

Era difícil gerir esta situação. Alguns soldados não a compreendiam e pressionavam o comando, mas nunca houve qualquer tentativa de levantamento de rancho. Em dada altura foi feita uma reunião entre os alferes, sargentos e furriéis para debater a questão. Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta. Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício. Chegado ao quartel e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne. Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos inviabilizaram novas façanhas.
Furriéis e a caça ao javali
O magarefe Feio a desmanchar javali
Pescadores com os sacos às costas

A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido) foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.

Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas. Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha. Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”. O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.

Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.

Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.

Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.

No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.

Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu. Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento. O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.

O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.

O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.

Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.

Aquando da tomada de posse e comando por parte do capitão Loureiro, foi verificada no depósito de géneros uma anomalia. Numa caixa de latas de leite condensado faltavam vinte. Eu não percebia a razão da falta, pois estava convicto que estava tudo correto. Indaguei e conclui que o André, também conhecido pelo metro e oito, fiel do armazém de géneros, de vez em quando retirava uma lata para alimentar a “sarita” uma pequena macaca, que era a nossa mascote. Era cuidada e tratada pelo Lomba que faleceu no dia 17/11/69, uma das vítimas do rebentamento duma mina anti carro. A sarita sentiu a falta do tratador e talvez por isso andava triste, não saltava e passados dias morreu.

Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas. Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos, ao que o capitão retorquiu, solicito envio urgente de Teixeira Pinto.

Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase. 

Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”. Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto. Colocada a questão ao capitão e ao 1.º Sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.

Fiz a transferência do depósito ao vaguemestre “periquito”, que as “comeu de cebolada” mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º Sargento deles não era burro e como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca. Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão. 

Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado. Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p... da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar.
Ração combate n.º 20
Algum do conteúdo
Ementa n.º 1

(continua)
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Nota do editor

Post anterior da série de 11 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26573: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (2): Partida para Nova Sintra - Chegada a Nova Sintra - Em Nova Sintra

Guiné 61/74 - P26594: As nossas geografias emocionais (49): Gadamael Porto, fotos do Pepito (1949-2012), de 2010 (era então diretor executivo da AD, Bissau), e do Carlos Afeitos, de 2011 (cooperante, 2008-12)



Foto nº 1 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > Antigas instalações do comando, centro de transmissões e residência de oficias


Foto nº 2 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > A antiga pista de aviação....


Foto nº 3  > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > O porto ou cais acostável, construído pelo exército português... (O rio que banhava Gadamael era um braço do Rio Cacine, náo tinha nome, mas havia quem, como o Daniel Matos, que  dizia era o Rio Sapo, afluente do Rio Cacine, ,mas que ficava mais a sul de Gadamael Porto).


Foto nº 4 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > A caminho do porto, situado no Rio Sapo, afluente  do  Rio Cacine...


Foto nº 5 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > Restos do abrigo do morteiro 81  

Foto nº 6 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010  > O que restava  da base do pau da bandeira...



Foto nº 6 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > Mari Dabó, antiga lavadeira do alferes Oliveira [talvez da CCAÇ  4152/73 ? ] que ficou em Gadamael depois da independência e que era de Moscavide


Fito nº 7 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outubro de 2010 > Mariama Mané, lavadeira do "major Manso" (... que só pode ser o maj cav Manuel Soares Monge, penúltimo cmdt do COP 5: entre jan 73 e ago 74, o COP 5 teve como cmdts o  maj art Alexandre Costa Coutinho e Lima; o ten-cor  pqdt  Sílvio Jorge Rendeiro de Araújo e Sá; o cap inf Manuel Ferreira da Silva; o maj cav Manuel Soares Monge; e o cap ten Heitor Prudêncio dos Santos Patrício; o COP 5 mudou de Guileje para Gadamael, depois da retirada de Guileje em 22 mai 73).
 


Foto nº 8 > Guiné-Bissau >  Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de outbro de 2010 > Arafá Turé, aluno do professor furriel Barros, do Porto, em 1971 (devia pertencer à CCAÇ 2796, na altura comandada pelo cap art Morais da Silva, que esteve em Gadamael, entre jan 1971 e fev 1972).

Fotos do álbum do Pepito (engº agrónomo, Carlos Schwarz da Silva, então diretor executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento) (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012). Na altura, em outubro de 2010, andava entusiasmado, ele e a população  local, com a ideia da criação do Núcleo Museológico de Gadamael, á semelhança do de Guileje. Este e outros foram projetos que ficaram por realizar, face à sua insperada morte, em Lisboa,  no início de 2012, aos 63 anos).

Fotos (e legendas):  © Pepito   (2010). Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]



Foto nº 9  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 > Vestígos da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68). A subunidade a que pertenceu o nosso grão-tabanqueiro Mário Gaspar (1943-2025). Mas também o  Joaquim Fernandes Alves, ex-fur mil, grão-tabanqueiro nº 625 (mora em V. N. Gaia).


Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 > Vestígos da CART 6252/72, "Os Indiferentes" (1972-74).

A CART 6252/72, com apenas meia dúzia de referências no blogue, não tem nenhum representante, registado. Há uma página do Facebook com o nome CART 6252/72 "Os Indiferentes", criada pelo Luís Francisco Gouveia, ex-fur mil trms: telem 964 153 392 | email: luisfsgouveia@gmail.com. Fica aqui o convite para ele se juntar à Tabanca Grande.





Foto nº 11 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Bunker a seguir à pista, no início do aquartelamento" 




Foto nº 12 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Bunker"...



Foto nº 13 _ Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Base do pau da bandeira" (vd. foto nº 6 do Pepito, 2010)


Foto nº 13 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Espaldão do obus"...  




Foto nº 14 e 14A > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Antiga enfermaria" (informação dada ao Carlos Afeitos pela população local).



Foto nº 15 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 >  "Sem legenda" (vd. foto  nº 1, do Pepito, 2010)




Foto nº 16 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 > Rio Sapo >  "Cais" (1)  (vd. foto nº  3, do Pepito, 2010)...



Foto nº 18 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 2011 > Rio Sapo >  "Cais" (2)  (vd. foto nº  3, do Pepito, 2010)

Fotos do álbum do  Carlos Afeitos, professor de matemática, cooperante na Guiné-Bissau, durante 4 anos (2008-2012), e nosso grã-tabanqueiro, com o nº 606.

Fotos (e legendas): © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Foto nº 19A e 18 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de Outbro de 2010 >"Antiga messe de oficiais e depois hospital",  legendou o Pepito... Descobrimos que este edifício abandonado, da época colonial,  ostentava duas informações intrigantes: na parte superior da parede lateral direita a sigla ou o acrónimo ASCO, com as letras ainda perfeitamente legíveis ; e na parte da frente o ano "1918"...   

Foto (e legenda):  © Pepito 2010). Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]




Foto nº 20 e 20A  > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 2410 (1968/69) > Messe e quarto de sargentos...  Foto do álbum de  Luís Guerreiro, ex-fur mil,  CART 2410 e Pel Caç Nat 65 (Guileje. Gadamael e Ganturé, 1968/70).

Neste edificio funcionou a filial da empresa ASCO - Aly Souleiman & Companhia...  A misteriosa sigla, A.S.C.O., já lá estava nessa época, e continuava  lá em 2010/2011. E nunca ninguém reparou nela nem na data da fachada (vd. fotos nº 14 e 19).

Foto (legenda): © Luís Guerreiro (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Bissau > 1956 > Um anúncio de um das casas comerciais mais importantes que existiam na Guiné em 1956. A empresa Aly Souleiman & Companhia (ASCO) dedicava-se à importação e exportação de produtos ultramarinos.  

Com sede em Bissau, tinha filiais em diversos pontos do território da Guiné, de norte a sul:  Bafatá, Farim, Mansoa, Pecixe, Bula, Sonaco, Mansabá, Contuboel, Bambadinca, Xime, Nova Lamego, Cacine, Campenae, Gadamael e  Catió,  "Aly Souleiman (apelido grafado à francesa...), e não "Ali Suleimane" (à portuguesa) era um próspero comerciante sírio-libanês.

O acrónimo da empresa era ASCO, tal como o seu endereço telegráfico... Algumas das mais importantes empresas estrangeiras, e nomeadamente as de origem francesas, com negócios no Senegal e na Guiné portuguesa, usavam acrónimos: NOSOCO, SCOA, CFAO... 

Ficou definitivamente explicado em  o mistério do acrónimo ASCO que aparece num edifício de Gadamael, que, no tempo da guerra, serviu de enfermaria. A data "1918" deve ser referente à sua construção.

Foto (e legenda): © Màrio Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacoca (1960) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Gadamael Porto, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Rio Cacine e fronteira com a Guiné-Conacri

Infografia: Blogue Luís Grºça & Camaradas da Guiné (2025)


1. Estas fotos servem para nos recordar que o tempo também cura... Gadamael Porto não precisa de apresentação aqui no blogue. É um dos topóminos trágicos da nossa guerra, um dos 3 três G: Guidaje, Guileje, Gadamael... (Estamos sempre a esquecer Gandembel,  a batalha mais longa daquela guerra, com mais de 3 centenas de ataques e flagelações, em menos de 9 meses, de abril de  69 a janeiro de 1969: o aquartelamento, construído de raiz, seria depois mandado retirar por Spínola, à semelhança de outros aquartelamentos e destacamentos como Madina do Boé, Béli, Cacoca, Sangonhá, Ponta do Inglês, etc.).

Decifrámos o enigma das fotos nº 14 e 19 a partir de uma anúncio comercial de 1956...Um dos muitos anúncios de casas comerciais que existiam então na Guiné (*).  

O acrónimo da empresa era ASCO, tal como o seu endereço telegráfico... Algumas das mais importantes empresas estrangeiras, e nomeadamente as de origem francesas, com negócios no Senegal e na Guiné portuguesa, usavam acrónimos oi siglas: NOSOCO, SCOA, CFAO... Ficou, definitivamente, explicado no início de 2015 o mistério do acrónimo ASCO que aparece no edifício de Gadamael, e sobre o qual já especulámos durante meses e meses,

Estas fotos fazem parte das nossas geografias emocionais (**). Mais de um dúzia unidades de quadrícula guarneceram Gadamael.  Impressionante e comovente é o facto de haver gente da população que ainda se lembrava, 40 anos depois, de camaradas nossos (!) (fotos nºs  6, 7 e 8):

  • Mari Dabó, antiga lavadeira do alferes Oliveira [talvez da CCAÇ  4152/73 ?] que ficou em Gadamael depois da independência e que era  de Moscavide;
  • Mariama Mané, lavadeira do "major Manso" (... que só pode ser o maj cav Manuel Soares Monge, penúltimo cmdt do COP 5);
  • Arafã Turé, aluno do professor do posto escolar militar, furriel Barros, do Porto, em 1971 (devia pertencer à CCAÇ 2796, na altura comandada pelo cap art Morais da Silva, nosso grão-tabanqueiro, que esteve em Gadamael, entre jan 1971 e fev 1972).

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Notas do editor LG: 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Poderia dizer que quanto à pesquisa de livros escritos por camaradas nossos, apelo insistentemente que me emprestem o que sai, não encontro praticamente nada nas livrarias, trata-se de edições de autor, não posso adivinhar como se distribuem tais obras. Podia resignar-me a dizer que a mais não sou obrigado, mas não me conformo, faço telefonemas a Beltrano e Sicrano, tenho sorte com o apoio que recebo da Biblioteca da Liga dos Combatentes, mas aproveito esta oportunidade para renovar o meu pedido de que me indiquem obras sobre a nossa guerra da Guiné publicadas pelos nossos camaradas, mantenho a intenção de deixar referência a tudo o que se publica, mas não tenho condições de adivinho. Quem me puder ajudar, não hesite.

Um abraço do
Mário



A Guiné de Clemente Fidalgo Florêncio, BCAÇ 600, 1963/1965, Bissau e Buba

Mário Beja Santos

Confesso ao leitor que me desunho para ter acesso a obras que falem da Guiné, relacionadas com a guerra e seus protagonistas. Tenho feito aqui sucessivos apelos para que me emprestem obras, a generalidade delas são edições de autor, não detetáveis nos escaparates das livrarias. 

A resposta é modestíssima. Tenho tido uma imensa ajuda da Biblioteca da Liga dos Combatentes, assim que o Dr. João Horta, o bibliotecário, me badala que chegou matéria-prima fresca marcho para o Bairro Alto, devolvo o que ele me emprestou e consulto o que lhe chegou. 

Desta vez a safra foi muito minguada, havia uma edição de autor, datada de fevereiro de 2023, obra produzida na Gráfica Central de Almeirim, intitulada "Guiné – Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio. 

Como não havia dados, no conteúdo da obra sobe o autor, liguei para o cartão que o camarada Clemente deixou na Liga, O Treino, café-cervejaria em Fazendas de Almeirim. Liguei e passaram ao camarada Florêncio. Expliquei ao que vinha, disse-me que pertencera à CCS/BCAÇ 600, desde outubro de 1963, fora colocado no Quartel-General, nas transmissões, os últimos meses passaram-se em Buba e assim nos despedimos.

É uma obra sóbria, diz quando chegou à Guiné, reporta um conjunto de dados históricos, dá ênfase aos acontecimentos que antecedem a eclosão da guerra, diz que manteve sempre interesse sobre o que se passava na Guiné, mesmo a partir da independência, a Guiné e a sua história são lembrança permanente. Intervém agora, não quer que aquela guerra seja esquecida, e dá-nos um poema que escreveu em Buba, em setembro de 1965, intitulado "Obrigado Guiné":

“Por tudo o que me deste/Pela liberdade que me deste/De te conhecer/De conhecer tuas gentes/E seus costumes e sentimentos/Obrigado Guiné/Por não me roubares a memória/E assim recordar/O dia em que parti/Ao teu encontro Guiné/Pelo mar imenso/Sete dias e noites navegando/Olhando o céu azul/Os peixes voadores voando/Os navios que se cruzavam/Levando-me a pensar/Para onde me levas ó mar/Sinto um enorme horror/Ó tempestade amansa/Não me leves a saudade e a esperança/Que belo conhecer/Tanto tipo de humanos/A beleza crioula das mulheres finais e airadas/Em batuques sem par/Maravilhosos, deslumbrantes/Com o ritmo infantil e envolvente/Com a sua linguagem terna e doce/Na quietude dos velhos/Engelhados e solenes/Na viveza dos rapazes negros e sadios/Na cadência do angustiado sofrer/Nas canções e danças africanas/Na imprevidência de viver o dia de hoje/Ao sabor fatalista/Do que há de vir a acontecer/Obrigado Guiné/Foi belo conhecer/As tuas bolanhas, os teus rios/As tuas matas/Escuras de tão alto capim/Sacudidas pelo vento/Que causa ruídos/Cala-te vento/Não me distraias/Deixa-me pensar/O que hei de fazer/Para um dia voltar/Já poucas horas me restam/Para outro caminho seguir/Já tenho vontade de voltar/Mesmo antes de partir/Se algo aqui sofri/Nunca te culpei… Não/O que eu quero é levar-te/Dentro do meu coração.”

Rememora acontecimentos posteriores à independência, algo misturados com recordações, mantém-se atento às transformações positivas, e recua até às suas lembranças, os pombos verdes de cor, as onças, os jagudis, a vida dura dos guineenses, a exuberância das festas, e deixa para o fim uma recordação futebolística:

“Em 1965, o Benfica de Bissau foi campeão de futebol da Guiné, e por isso, nós jogadores, tivemos direito a um jantar-convívio na sede do clube, alguns elementos usaram da palavra, discursaram durante o jantar. 

‘Recordo perfeitamente que o último a discursar, foi o nosso capitão de equipa, de seu nome Orlando Camará. Começou por agradecer ao clube o reconhecimento do trabalho de grupo, agradeceu depois a todos os colegas de equipa o bom trabalho, e voltando-se para mim disse:

 - E tu, Clemente, obrigado por tudo o que nos deste. Sei que brevemente vais partir para a tua terra, mas eu nunca mais me vou esquecer de ti. Sei que um dia, quando fores velhinho, te recordarás de tanto que correste e saltaste para ser campeão. Ficas no meu coração.’ 

Tal como previas, estou velhinho e mal posso andar, e recordo tudo isso como se tivesse sido ontem. Saudades imensas de ti e de tudo. Até breve, Clemente”.

E depois adiciona duzentos provérbios e conta uma história contada numa taberna para nos falar do fandango, do tocador de gaita de beiços, ou do harmónio ou concertina. É um livro compósito, como se vê, despede-se desejando-nos muita saúde, que Deus nos proteja da fome e do frio e tudo mais é vaidade em excesso. 

Aqui fica o essencial da sua mensagem, tanta saudade da Guiné como das memórias que nele permanecem daquele início da guerra, terá feito esta edição de autor porque elas ainda lhe mexem com o sangue. E nada mais há a dizer.

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Nota do editor

Último post da série de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25592: O melhor de ... Mário Gaspar (1943-2025) - Parte II: "Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia: – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe: – Sou o único culpado!"





Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Monumento aos Combatentes do Ultramar > Memorial dos Mortos do Ultramar > c. 2018 > O Mário Gaspar aponta os nomes dos seus camaradas António Lopes Costa, soldado, natural  de Vila Real,  e Victor José Correia Pestana, furriel, natural de Santarém, mortos em "acidente com arma de fogo", em 12 de outubro de 1967, perto de Ganturé, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri.


Fotos (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Mário Gaspar (Sintra, 1943 - Lisboa, 2025) teve, depois da "peluda", pelo menos duas grandes paixões (além de Alhandra da sua infância e adolescência): 

(i) a DIALAP- Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, onde foi lapidador, sindicalizado, e delegado sindical (ficou desempregado, em 31/5/1996, por extinção do posto de trabalho); 

e (ii) a Apoiar - Associação de Apoio Aos Ex-Combatentes Vítimas de Stress de Guerra, de que foi sócio fundador e dirigente. Temos que relembrar, proximamente, estas duas facetas do nosso "Zorba".

Tanto quanto a sua saúde o permitiu (era DFA - Deficiente das Forlas Armadas, com 40% de incapacidade, e nos últimos conheceu o calvário dos lares, clínicas e  hospitais, sofrendo de problemas do foro cardíaco), teve uma presença ativas nas redes sociais (em particular no nosso blogue e na sua por vezes atribulada página do Facebook: queixava-se que lhe cortavam inúmeros comentários). 

Tinha um humor instável e truculento; detestava que lhe chamassem Mário Gaspar ou Mário Vitorino. Era o Mário Vitorino Gaspar.  Sofreu muito em vida.

Recorde-se que o Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68),  era, como gostava de ser conhecido, "Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado"; e ainda "cofundador e dirigente da associação Apoiar"...

Tinha, além disso,  o curso de minas e armadilhas. E terá sido em Tancos e depois no teatro de operações no sul da Guiné que ele afinal iria descobrir o seu talento para o trabalho minucioso,paciente e... arriscado de lapidador de diamantes.

É autor do livro de memórias "Corredor da Morte" e da série, publicada no nosso blogue, "Recordações de um Zorba". Republicamos, dele, mais um poste, em que conta como é que a burocracia da tropa o matou (ou deu-o como morto) e relata  a tragédia da morte de três Zorbas, o Pestana, o Costa e o Gouveia. (*).



"Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:  – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe:  – Sou o único culpado!"    

por Mário Vitorino Gaspar (1943-2025)  (**)


Que interesse têm os portugueses de saberem que existiu uma Guerra Colonial? Já basta o “A
aquecimento global”, que nem sequer sabemos ao certo o que é, ainda para cúmulo essa guerra onde os nossos pais ou avôs combateram. Pois vou narrar-lhes aquilo que me sucedeu, talvez em agosto, no período das férias de 1969.

– Foi precisamente no dia 12 de o
utubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.

– Mas o que é isso do paludismo ou matacanha? Compreendia antes se fosse da saudade!

– Esquece!

Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o padre na igreja de São João de Brito disse:

– Estou a casar o morto vivo!

– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!

Sorri e tudo se sumiu como espuma!

Pois no dia que me desloco à sacristia para levantar a certidão de c-asamento, recordei aquele episódio rocambolesco na greja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra caderneta m-ilitar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias: data do casamento e mudança de residência.

Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos: 

 "Baixa de Serviço: – por falecimento a 12 de outubro de 1967!" ... Algumas páginas a seguir: "Morto a 12 de outubro".

Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel, e um padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.

Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…

Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.

Nas férias em agosto dirigi-me ao quartel mobilizador, o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na secretaria o major (julgo ser ainda major), o oficial que me colocara de sem erviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a família antes de embarcar para a Guiné.

Quando lhe dei para as mãos a caderneta logo me arrependi. Leu e disse:

– Que mal faz estar aqui dado como morto? -Ao senhor pouco ou nada importa!

Interrompi-o ao escrever na caderneta com uma bic azul e outra vermelha.

– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.

Tirei-lhe a caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.


Fotocópia da folha da caderneta militar, do Mário Gaspar, correspondente à página das "ocorrências extraordinárias", onde é de novo referida a sua morte...




Tratei-o mal, chamando a atenção àquilo que me fizera colocando-me no domingo anterior à partida de serviço:

– Sargento de Dia ao Regimento!

Ninguém aceitou fazer esse serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse serviço, inclusive eu pagava bem.

Passado algum tempo desloquei-me ao departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta, o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.

Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida ,
os três indivíduos riram. Entreguei a caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
-
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de outubro de 1967!

O sargento tirou os agrafos – eram os três sargentos – e referiu logo:

– Olhem, este camarada era nosso vizinho na Guiné!

Disse-me junto ao balcão:

– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.

Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:

– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.

Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na caderneta. Não compreendiam a razão do major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.


O jovem Mário Vitorino Gaspar






Ainda fui a programas de Rádio; dei entrevistas para jornais e fui a dois programas de televisão. Um deles, da Fátima Lopes.

Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o furriel miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém.  e o soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.

Quando gozei férias fui entregar à família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso. 

Como tivessem morrido num período em que eu não estava, fui verificando não me terem narrado tudo sobre ambas as mortes, por saberem sermos muito amigos. A razão de tal é termos cumprido grande parte do serviço militar juntos.

Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel me contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem com regresso pelo mesmo lado.

O alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajeto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário.

 Insistiu o alferes, eram ordens. O Costa disse ao furriel que o acompanhava, os dois avançaram. Pára o Pestana, olhando para os pés. Não podia escapar e lançou-se sobre a granada armadilhada que rebenta. O Costa fica encostado a uma árvore, parecia descansar, nem sequer tinha sinais de ter sido atingido, estava morto. O Pestana tinha braços e pernas seguros do restante corpo por linhas. No peito um buraco. Estava vivo. Ainda chegou vivo a Gadamael Porto e foi visto pelo médico do batalhão que se encontrava perto.

O Pestana pedia, e por favor, aos furriéis milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença de férias. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.

Todas as vezes que via o alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:

– Você matou o Pestana e o Costa!

Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com capitão miliciano de infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha [nosso antigo comandante] que me informou:

– O Gouveia suicidou-se na lha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!

Respondi-lhe:

– Sou o único culpado.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)


2. Comentário do editor LG:

Faço questão de repetir aqui o que disse em 2018, em comentário ao poste P19093 (**),  mesmo sabendo que o Mário, lá no além, já não me pode ler nem muito menos responder:

Mário, é bom voltar a "ver-te" aqui na Tabanca Grande. Já tinha estranhado o teu silêncio. Esta "macabra" efeméride, já a tinhas relatado há uns anos atrás... Mas agora percebe-se melhor a origem do erro: em 12 de outubro de 1967, morrem os teus dois camaradas, no acidente com a granada armadilhada. Um deles, o Victor Pestana, é furriel... Houve uma troca de identidades... Lamentável, mas aconteceu, e seguramente que não foi caso virgem...

Quanto ao eventual suicídio do Gouveia, seria "monstruoso" tu assumires a "culpa" desse ato, tantos anos depois... Tira-me isso da cabeça!... Um grande abraço, Luis.

2018 M10 12, Fri 14:36:09 GMT+1
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Ficha de unidade >  Companhia de Artilharia n.º 1659

Identificação: CArt 1659
Unidade Mob: RAC - Oeiras
Cmdt: Cap Mil Art Manuel Francisco Fernandes de Mansilha
Divisa: "Os Homens não Morrem" - "Zorba"
Partida: Embarque em 11jan67; desembarque em 17Jan67 | Regresso: Embarque em 300ut68

Síntese da Actividade Operacional

Em 19jan67, rendendo a CCaç 798, assumiu a responsabilidade do subsector de Gadamael, com um pelotão destacado em Ganturé, e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1861 e depois do BArt 1896 e ainda do BCaç 2834.

Em jul68, face à intensificação da actividade de patrulhamento de itinerários e emboscadas na linha de infiltração inimiga na região de Guileje, o destacamento de Ganturé foi reforçado, temporariamente, por outro pelotão da companhia.

Em 20out68, foi rendida no subsector de Gadamael pela CArt 2410 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa nº 81 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 448

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"


(**) Vd. poste d12 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P26591: Parabéns a você (2358): José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último post da série de 12 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26574: Parabéns a você (2357): Sargento Ajudante Ref da GNR Manuel Luís Rodrigues de Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

domingo, 16 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26590: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (57): O "15 de Março de 1961": quem ganhou, quem perdeu ? Quem ficou na pior, previsivelmente, foram mesmo duas ou três gerações de angolanos.


1. Mensagem do nosso camarada António Rosinha (foto à esquerda, em Pombal, 2007, por ocasião do II Encontro Nacional da Tabanca Grande; foi fur mil, ainda do tempo da farada "amarela", em Angola, 1961/62; t
opógrafo em Angola, para onde foi adolescente, africanista de alma e coração, regressou a Portugal em novembro de 1974, emigrou para o Brasil da ditadura militar (que vigorou de 1964 a 1985), e mais tarde para a Guiné-Bissau do partido único, onde trabalhou, de 1978 a 1993,  na empresa TECNIL, ao tempo do Luís Cabral e do 'Nino' Vieira, "camaradas", "heróis da liberdade da pátria",  que ele conheceu bem no poder; entrou para o nosso blogue,  em 29/11/2006, é um histórico da Tabanca Grande; é autor da série "Caderno de Notas de Um Mais Velho"; tem cerca de 150 referências no blogue).

Data - 16 mar 2925, 00:39 

Assunto - 15 de Março de 1961


Faz nesta data, 64 anos, aquele massacre do norte de Angola com que a UPA  (União dos Povos de Angola) tribalmente iniciou o chamado terrorismo, termo absolutamente correto, e que deu início à chamada guerra do Ultramar.

Hoje essa guerra tem muitos nomes.

A partir desta data o mundo ficou todo contra Portugal e contra Salazar, em particular.

Na ONU, essa coisa, hoje mais ou menos desrespeitada, votou contra Nós,  Portugal nas colónias africanas, entre todos os "amigos" de África, EUA e URSS, e abstiveram-se Inglaterra e França.

Estes dois já sentiam alguma vergonha, escondida, dos briosos golpistas que iam impondo nas suas ex-colónias,  e que iam protegendo à base de conselheiros mercenários.

Mas Portugal e Salazar tinham um grande amigo que disfarçadamente, sem a URSS se aperceber, mandou o seu embaixador oferecer os seus préstimos a Salazar e este agradeceu: «Ouvi-o atentamente e agradeço-lhe a sua visita. Muitos cumprimentos ao Presidente Kennedy. Muito boas tardes, senhor embaixador.» (Franco Nogueira)

Passados 13 anos a URSS levou a melhor, viu-se, pelo menos pareceu.

Quem ficou na pior, previsivelmente, foram mesmo duas ou três gerações de angolanos.

E a Europa ficou com inúmeros países vizinhos que criou, a pedir "explicações".

O Salazar não queria este fim para a Europa e para África.

Cumprimentos, Antº Rosinha.

PS - Mas a Europa já nessa altura, já não podia com uma gata pelo rabo!


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