sexta-feira, 24 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8469: Notas de leitura (250): A Guerra de África 1961 - 1974, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2011:

Queridos amigos,
Não sou devoto da história oral mas também não denigro os seus méritos: um conjunto de protagonistas presta declarações ou passa a escrito o que viu, o que experimentou, como comenta a evolução da guerra. José Freire Antunes teve a rara felicidade, em meados da década de 90, de fazer convergir para este objectivo testemunhos indispensáveis como Carlos Fabião, Alpoim Calvão no seu melhor e Marcelino da Mata (como é sabido, este controverso oficial raramente presta declarações públicas). Obviamente que recomendo a sua leitura, pela galeria de testemunhos de gente experimentada e de diferentes quadrantes políticos.

Um abraço do
Mário


A guerra de África, segundo volume, por José Freire Antunes (2)

Beja Santos

Carlos Fabião foi indiscutivelmente um dos oficiais do quadro permanente que melhor conheceu a Guiné, aqui viveu um total de 12 anos, antes e depois da luta armada. O seu depoimento em “A Guerra de África”, segundo volume, por José Freire Antunes, Círculo de Leitores, 2011, começa exactamente pela referência aos acontecimentos do Pidjiquiti, deu-se o incidente estava ele no aeroporto. A seguir a estes acontecimentos fez uma comissão em Angola e volta à Guiné entre 1965 a 1967 como comandante de uma companhia de intervenção. Neste tempo criou o Comando Geral das Milícias, tal como ele explica: “Organizei as milícias dentro do conceito de ligar as tropas às próprias terras de onde eram naturais. Havia, por exemplo, uma tabanca que era necessário defender, e eu criava uma unidade com os homens dessa tabanca (…) Chegámos a ter 9000 homens na Guiné. Estávamos organizados em companhias e pelotões. A cada companhia correspondia um regulado. A ideia era de que os régulos mandassem nas suas áreas. Eu ia a essas áreas, entrava em contacto com o régulo e criava uma companhia que tinha o nome do regulado a que correspondia”. Reflectindo sobre esse período, não é complacente: “De 1965 a 1967, a situação na Guiné tornou-se bastante má. Tínhamos perdido o controlo de uma série de áreas, havia sítios onde praticamente já não entrávamos. Já havia muita gente nossa na Guiné mas havia áreas, como o Morés, o Sara Sarauol, o Boé, Quitafine, Cantanhez, onde estávamos mal (…) O PAIGC estava melhor armados do que nós. Eles utilizavam o RPG e nós não tínhamos nenhuma arma com as características do RPG (…) O comandante-chefe Arnaldo Schulz, estava diminuído pela doença. Foi um homem que descentralizou muito, mas aquilo não dava para descentralizar. Estava a correr mal, para não dizer muito mal, em todos os aspectos (…) Spínola chegou à Guiné e correu com muitos incompetentes”. Mais adiante, levanta o véu sobre a compra de armas: “Os russos prestavam auxílio ao PAIGC mas também o mesmo em relação a nós, se quiséssemos. Vendiam armas a quem lhes pagasse. O circuito era feito à boca dos aviões. As armas russas eram vendidas através da Norte Importadora, do Zoio, e destinavam-se formalmente à polícia do Uruguai mas eram descarregadas em Lisboa. Comprei também armas à França. Vejo que toda a gente que andou metida nisto está rica, e eu não”. Confessa que apoiou as teorias de Spínola e que considera que a sua eleição em 1972 como presidente da República teria mudado o curso dos acontecimentos. Di-lo abertamente: “A solução que Spínola tinha conseguido na altura seria extraordinária e o futuro mostrou que ele estava cheio de razão. Podíamos ter resolvido a questão em 1972 e não a resolvemos porque Caetano disse claramente a Spínola que aceitava um desastre militar mas nunca uma cedência política”.

Passa-se por alto os testemunhos de Carlos Azeredo e o desempenho de Cecília Supico Pinto à frente do Movimento Nacional Feminino, a segunda está profusamente documentada, nada há de novo neste depoimento constante neste segundo volume. Do maior interesse tem o testemunho de Alpoim Calvão, seguramente o mais detalhado e coeso que dele se conhece, tanto o que revela sobre a operação Mar Verde como a operação Dragão Marinho e Plano Carpa, manobras urdidas para desorientar e envenenar a opinião pública afecta ao PAIGC.

O depoimento de Luís Cabral anda muito próximo do que escreveu em “Crónica da Libertação”. Mas é curiosa a sua reflexão no final do testemunho: “A nossa luta foi sempre avançando. A retaguarda é que criou os elementos fracos. Queriam viver em Conacri, onde tínhamos armazéns cheios. Como lá havia carência de tudo, começavam a desviar coisas para o mercado negro. Para arranjar mulheres e arranjar casas. Foi essa retaguarda que forjou toda a conspiração contra o partido e contra o Amílcar (…) Tínhamos já um grupo de militantes que estavam a ser treinados para pilotos na União Soviética. Foram para lá ainda em vida do Amílcar. Era para pilotar em aviões MiG. Seriam a base da Força Aérea da Guiné independente”.

Marcelino da Mata, um supermedalhado do Exército, detentor da Torre e Espada é o responsável pelo último testemunho deste segundo volume. Relata um sem número de façanhas e queixa-se amargamente: “Fomos traídos, abandonados. Eu estava no Regimento de Comandos da Amadora, em 1974, a comandar uma companhia, a 123, e obrigaram-me a pedir a nacionalidade portuguesa. Será que eu era mercenário aqui dentro? Um militar fardado, dentro de uma unidade a comandar uma companhia, a fazer todos os serviços que fossem precisos, e obrigarem-no a requerer a nacionalidade! Mas eu nunca renunciei a nacionalidade portuguesa (…) Quantos milhares de pessoas mataram na Guiné depois do 25 de Abril? Foram 7447 mortos, número que nunca houve durante a guerra. Na Guiné, quando a tropa ia para o mato, os pretos é que iam na frente a picar a estrada, quando rebentava uma mina morriam duas ou três pessoas, mas debaixo de fogo era raro alguém morrer. Eu vim para cá deitado numa maca. A Guiné tinha as companhias africanas, de comandos africanos, destacamentos de fuzileiros e milícias especiais. Eram vinte e tal companhias que seriam suficientes para assegurar o referendo. Mas a única preocupação que o Estado português teve na Guiné foi desarmar o Exército africano e entregá-lo ao PAIGC. Se o general Spínola continuasse mais dois anos na Guiné, o PAIGC entregava-se (…) O PAIGC só entrou dentro da cidade de Bissau depois das tropas dos comandos e fuzileiros serem desarmadas. Quem desarmou os comandos foi o Carlos Fabião. A 15ª companhia, em Mansoa, não aceitou o desarmamento. A maioria deles foi fuzilada”.

Recorde-se que este trabalho de José Freire Antunes é uma aplicação da história oral, que teve muita voga até aos anos 80, hoje está profundamente desacreditada. Assenta num conjunto de testemunhos, narrativas, provas documentais, etc. que, de acordo com um guião pré-estabelecido pelo coordenador, são apresentados em sequência, não se usa o contraditório e, em muitos casos, os protagonistas não são instados a apresentar provas factuais das suas declarações. Há que reconhecer, porém, que nunca se foi tão longe no levantamento de testemunhos como neste empreendimento de 1994 e 1995. Naturalmente que outros factos e outros testemunhos iluminaram o acervo documento alinhado por este autor, aos historiadores compete agora interpretar estas múltiplas peças do mosaico e continuar a investigar as inúmeras lacunas e discrepâncias.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8456: Notas de leitura (249): A Guerra de África 1961 - 1974, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Beja Santos,

Acho que Marcelino da Mata não foi "um supermedalhado do Exército", mas um dos mais condecorados militares portugueses de sempre.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Joaquim Mexia Alves disse...

De acordo com o Carlos Cordeiro!