1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2011:
Queridos amigos,
Este livro do António Tomás representa um outro olhar sobre a vida do PAIGC naquilo em que esta se confunde com a história de África, a partir de finais de 1950, o surto das independências e a construção do pensamento político de Cabral. Este pensamento, comprovadamente, foi um dos mais originais na acepção do sucesso da guerrilha a partir da fusão entre combatentes e populações civis apoiantes, do manejo estratégico da diplomacia a tal ponto que se criou um reconhecimento da República da Guiné-Bissau sem esta dispor do controlo físico de uma parte do território, tal a credibilidade que o PAIGC passou a granjear devido à sua luta armada e ao prestígio do líder fundador.
Um abraço do
Mário
O fazedor de utopias, uma biografia de Amílcar Cabral (3)
Beja Santos
Por diferentes razões e títulos, 1970 é um ano de viragem na lógica da guerra, ambos os contendores são forçados a refrescar a comunicação, a ver o “outro” com outras lentes. É esta a análise que nos sugere António Tomás em “O Fazedor de Utopias – Uma biografia de Amílcar Cabral” (Tinta da China, 2ª edição, 2008). Falha o diálogo e o aliciamento no chão manjaco, falham objectivos fulcrais na operação Mar Verde. Escreve o autor: “A invasão de Conacri foi a última punhalada no prestígio internacional de Portugal, ainda que a princípio não fosse claro o grau de envolvimento das suas forças armadas. Embora a rádio oficial de Conacri falasse nas forças de Spínola, acusando-as de ter inclusive usado a aviação, a suspeita de que Portugal estivera por detrás dos ataques só começaria a ganhar forma quando, a 27 de Novembro, Francisco Gomes Nanque, um soldado da Companhia de Comandos Africanos, deu ao mar da Libéria e foi recolhido pelo navio inglês Sotriats of Bali. Desembarcado em Monróvia, revelou que a sua companhia tinha participado no ataque a Conacri. Fragilizado pelo fracasso da operação Mar Verde e com o prestígio ferido, Spínola continuou a procurar uma saída airosa para a guerra da Guiné”. A 18 de Maio de 1972, Spínola reunir-se-á com Senghor e este propõe um cessar-fogo de modo a permitir a constituição de uma administração mista e a aprovação de um estatuto de autonomia para 10 anos. Caetano manda suspender as conversações. Spínola responde-lhe: “Não desejo esconder as minhas apreensões ao persentir que perdemos talvez a última hipótese do governador da Guiné dialogar com Amílcar Cabral em situação de manifesta superioridade”.
De igual modo, Cabral, consciente que o esforço puramente militar era insuficiente para decidir a guerra, lança uma ofensiva diplomática, volta às Nações Unidas, aceita fazer conferências nos EUA onde será severamente inquirido pelos senadores e congressistas, espalham-se comités de apoios em vários países da NATO e até o Conselho Mundial das Igrejas presta ajuda humanitária. Um breve encontro na Sala dos Paramentos, no Vaticano, com Paulo VI, irá desencadear troca azeda de argumentos entre o governo de Caetano e a Cúria Romana. Só em 1972 Amílcar Cabral viaja para 31 destinos diferentes, percorre a China, a Coreia do Norte e o Japão, a Suécia, é recebido pelo presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas e na União Soviética recebe a promessa do envio dos mísseis Strella e da preparação de pilotos para os aviões MIG. A missão da ONU, em Fevereiro de 1972, permitiu aos diferentes diplomatas que nela participaram a elaboração de um relatório que provocou um grande impacto nas instâncias internacionais. Desde 1971, a nível interno que se encetara a eleição da primeira Assembleia Nacional Popular das chamadas zonas libertadas. Era um processo que iria culminar com a declaração de independência. A PIDE, através dos seus informadores, tem conhecimento deste processo eleitoral e informa Lisboa.
É neste afã que tem lugar a organização de um complô que irá levar ao assassínio de Cabral. Este, que já revelara uma grande falta de ortodoxia quanto aos métodos de desenvolver a guerrilha, desvalorizou a sua própria vida. Dirá mesmo numa entrevista em Outubro de 1971: “Se eu morrer amanhã, nada mudará na evolução inelutável da luta do meu povo e na sua vitória”. Vários estudiosos, com uma manifesta falta de precisão, referem vários atentados. Por exemplo, Luís Cabral fala numa tentativa de assassínio em 1967, aqui António Tomás informa que um tribunal sentenciou à pena de morte por fuzilamento os dois acusados, Honório Sanches Vaz e Miguel Embaná. “Em 1969 fora encontrado no secretariado do partido um militante chamado Jonjon que trazia uma granada com a qual pretendia tirar a vida ao líder”. Sabe-se que a PIDE esteve envolvida em planos para matar Cabral, tudo sem sucesso.
Em Março de 1972, Cabral elaborou um documento denunciando que haveria uma tentativa em que criminosos portugueses estariam infiltrados no PAIGC para matar o dirigente principal e outros dirigentes. Lido à distância, pode ser tomado como um alerta para as manobras divisionistas a uma chamada de atenção para a desunião entre guineenses e cabo-verdianos. Sempre se acusou a PIDE e com base em confissões dos conspiradores, sabendo-se que estes foram barbaramente torturados e que no essencial revelaram haver um envolvimento só de guineenses. Todas as narrativas sobre o assassínio pecam por omissões. Há quem pretenda encontrar uma ligação inequívoca entre a libertação de militantes que estiveram no Tarrafal e um plano da PIDE. Porém, a grande maioria dos conspiradores declaradamente nunca foi contactada pela PIDE, caso de Inocêncio Cani, um dos autores materiais do assassínio. António Tomás deixa bem claro que todos os guineenses, mesmo os que não tomaram parte activa na conspiração sabiam mais ou menos o que se andava a tramar. Sékou Touré aproveitou-se do assassínio de Cabral para um espectacular ajuste de contas interno. De igual modo foram interrogados 465 militantes do PAIGC dos quais 51 foram acusados de estar ocorrente do complô. Ainda hoje não se sabe o número exacto de fuzilados.
A luta não produziu vários “Cabrais”, ao contrário do vaticinado. Veio a aperceber-se que se tinha entrado no repúdio da unidade. E daí a observação de António Tomás: “Amílcar Cabral fundara o PAIGC à sua imagem e semelhança. Daí a razão de a unidade fazer mais sentido para si, por ter nascido na Guiné de pais cabo-verdianos. Em todos os outros aspectos da vida do partido, a sua influência era determinante. Ele produziu toda a ideologia do partido e formou os homens que, no princípio da guerra anticolonial conduziram o processo de mobilização. Era o rosto da diplomacia, o porta-voz e praticamente a única pessoa autorizada a dar extensas entrevistas aos jornalistas estrangeiros. Todo este poder que Cabral detinha não parecia criar grandes conflitos dentro do PAIGC”. Mas com a morte de Cabral, o PAIGC perdeu a bússola, as convicções e a imagem internacional. Nunca mais teve um pensador, nem na Guiné nem em Cabo Verde. Possuía um talento consumado para as medidas de antecipação: foi ele que previu pra o desfecho da situação colonial uma vitória política e diplomática, o que não passava necessariamente por esmagar o exército inimigo. Não assistiu às consequências da independência nem à desintegração a que o regime de Lisboa foi sujeito pelo rolo compressor dos acontecimentos de 1973 para 1974. Inclusivamente, não se apercebeu que a guerra iria mudar de rumo, a partir do momento em que o PAIGC possuía armamento que lhes permitia praticar uma guerra um pouco convencional, ditando as regras da ofensiva.
O resto é por todos sabido, a partir do 25 de Abril perderam-se todas as possibilidades de continuar a guerra, há documentação segura que inúmeras guarnições e sobretudo os seus comandos se recusaram a combater. Enquanto o PAIGC usou da moderação em Cabo Verde, na Guiné avançou-se delirantemente na construção de um socialismo africano, sonhou-se com a aceleração industrial forçada e a mecanização, tudo em detrimento do desenvolvimento agrícola, a base da economia guineense. Os dois países afastaram-se, Cabral e a sua clique política, exasperados com os insucessos, redobraram as medidas centralizadoras. E assim se chegou ao golpe de Estado que afastou os cabo-verdianos da direcção política na Guiné. É esta a última viagem que António Tomás faz, percorre um país fantasmático onde a tutela militar é um mau presságio do futuro. Entrevista as irmãs de Cabral, duas mulheres tristes cheias de recordações, percebendo que Cabral já nada representa para as novas gerações, é um ícone, uma fotografia despojada de qualquer relação entre o presente e o futuro.
Leitura de muitíssimo interesse e que permite completar as teses de Julião Soares Sousa.
____________
Nota de CV:
Vd. postes anteriores de:
16 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8677: Notas de leitura (265): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (1) (Mário Beja Santos)
e
19 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8686: Notas de leitura (266): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário