quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8702: Notas de leitura (268): A Guerra de África 1961 - 1964 - IV Volume, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Acaba aqui a digressão pelos 4 volumes desta reedição da obra coordenada por José Freire Antunes.
Continuo a pensar que devíamos assumir a iniciativa de empreendimento ao nível das nossas posses e de colaboração com uma equipa que pudesse trabalhar com uma comissão científica aprovada pelos editores do blogue, naturalmente circunscrita aos acontecimentos da Guiné e como estes foram projectados ou se projectaram na política de Lisboa. Nos últimos 15 anos a investigação deu passos decisivos, a visão de conjunto está muitíssimo menos desfocada, uma geração de jovens investigadores, como se tem visto, apresenta trabalhos surpreendentes sobre a Guiné, basta pensar em Julião Soares Sousa e António Tomás.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, por José Freire Antunes, 4.º volume

Beja Santos

Projecto ambicioso desenvolvido por um investigador de história contemporânea, Círculo de Leitores reeditou o empreendimento que deu à estampa em 1995, um acervo bastante representativo de testemunhos alusivos aos três teatros de operações, ainda hoje sem competidor na largueza de vistas e representatividade de opiniões: “A Guerra de África, 1961-1974”, por José Freire Antunes, Círculo de Leitores, 2011*.

Este quarto e último volume, à semelhança dos anteriores, inclui depoimentos de muitíssimo interesse no que toca à Guiné. Logo na abertura, o general Tomé Pinto, que combateu na Guiné entre 1964 e 1965 depõe sobre a sua experiência: “Fomos metidos num barco, entrámos no rio Cache, e fomos despejados em Binta, entre Farim e Bigene. Era o corredor que vinha do Senegal e que depois entrava no coração da guerrilha, que era o Oio, onde a tropa que estava em Bigene não avançava e a tropa que estava em Farim também não avançava. Eu vim pelo rio e deixaram-me no meio. As distâncias na Guiné eram diferentes das de Angola: em Angola 100 ou 200 quilómetros não eram nada; na Guiné, da minha zona para Farim era só 16 quilómetros, mas se eu conseguisse circular em toda ela já não era mau. Os indivíduos do PAIGC chamavam-me o “capitão do quadrado”. Como sou um apaixonado pela nossa história e pelos nossos feitos, usei a táctica do quadrado. Pensei que para sobreviver no meio daquilo tudo era o melhor. Tive casos em que eles atacavam por trás ou pelo lado, mas encontravam sempre resistência. Gastámos muito mais botas e muito mais calças a atravessar o mato porque não íamos nas estradas, mas fugíamos das minas e éramos nós que comandávamos o local onde estávamos. Só queria trazer os meus soldados vivos”. Tomé Pinto descreve as relações afectuosas que estabeleceu com os seus subordinados, os códigos de linguagem, a sua participação mesmo em pequenas patrulhas, porque sem o exemplo nada feito. Recorda Mamadu, um dos irmãos do régulo do Oio, ele seguia sempre a seu lado nas operações, a seu lado morreu como um bravo. É um depoimento singular, não há ali uma réstia de bazófia: “Eu tinha na minha Companhia à volta de 30 analfabetos. E fizeram a 4ª classe. Lembro-me que um dos soldados mostrou-me uma carta que alguém escrevera pelos pais dele, que não acreditavam que a carta que ele mandara fosse escrita por ele. Quando os soldados vinham das patrulhas, tinham sempre qualquer coisa a fazer. Primeiro aprenderam a ler, os que não sabiam, e criámos um aldeamento”. Tira partido da provação, vê-se que é um proactivo por excelência: “Na Guiné fui ferido em combate, com uma granada de morteiro que rebentou por cima da árvore, debaixo da qual eu estava. E vejo o alferes Santos a pôr a mão em cima daquilo, a querer parar o esguicho, com a mão toda suja de terra. Houve uma emboscada a seguir e meteram-me num jipe de onde eu ia dando ordens. Foi um momento excepcional do meu pessoal.

Hélio Felgas testemunha sobre as duas comissões na Guiné, o recurso são missivas que dirigiu Marcelo Caetano, em 1963 e 1969. Tem especial importância o que ele diz a propósito do Leste, em 1969. Falando da região Xime-Bambadinca, ele observa: “É o cordão umbilical de todo o Leste. É só pelo estreito rio Xaianga (Geba) que se faz todo o reabastecimento do Leste e se processam todas as evacuações. Se eles afundam um barco entre Xime e Bambadinca e conseguem cortar a estrada Xime-Bambadinca colocam-nos numa situação desesperada. Nesta região de Bambadinca o inimigo tem talvez mais de 500 combatentes (e nós cerca de 300). As populações fulas começam a fugir no Leste e apesar de todo o pulso que tenho nelas são capazes de me fugirem aqui na região de Bambadinca-Bafatá. Tenho tomado as medidas que posso, dispressando as poucas tropas que disponho, de modo a dar às populações e aos pelotões de milícia alguma sensação de segurança. Mas contra centenas de bandoleiros excelentemente armados, que podem fazer estes pequenos efectivos? Morrer, é claro (…) Sinceramente desejo que não se repita na Guiné o caso de Goa”.

Carlos Antunes e Isabel do Carmo, fundadores do PRP-BR, dão-nos a saber que tinham agentes em Bissau: “Pouco antes do 25 de Abril tínhamos aberto uma outra frente de batalha: acções no próprio teatro de guerra. Foi assim que sabotámos o quartel-general das tropas portuguesas em Bissau. Depois de Amílcar Cabral ser assassinado sucedeu-lhe Aristides Pereira que declarou que ou o governo de Marcello Caetano aceitava negociar a independência da Guiné ou o PAIGC considerava-se no direito de vir fazer acções a Portugal. Nós, que estávamos seriamente empenhados nesse combate, ficámos ofendidos por não termos sido informados previamente. Decidimos chamar um camarada, oficial miliciano dentro do quartel-general de Bissau. Ensinámo-lo a fazer uma bomba e ele partiu com vários queijos da serra que não eram mais do que a casca do queijo da serra que levava dentro plástico de densidade semelhante. Levou os detonadores noutro sítio, em maços de cigarros, e levou pilhas. O foi assim que ele fez saltar o quartel-general de Bissau sem matar ninguém. Houve dois generais feridos. O PAIGC fez um comunicado onde disse que tinha destruído o quartel-general. Horas depois nós dissemos em Lisboa que tínhamos sido nós a destruir o quartel. Eram contradições do movimento anticolonial”.

O nosso confrade Miguel Pessoa conta detalhadamente como em 25 de Março de 1973 um míssil Strella abateu o Fiat que ele conduzia, acontecimentos largamente descritos no blogue.

Temos por fim as polémicas declarações de Rui Patrício, o último ministro dos Negócios Estrangeiros de Caetano: “Fui defensor das negociações secretas com o PAIGC, que decorreram em Londres, já em 1974, na fase final. A ideia de negociar com o PAIGC partiu da Embaixada inglesa em Lisboa, que fez a ligação com eles. Eu nunca fui partidário de que a derrota militar seria o melhor. Quando se está com o canhão e a espingarda diante de nós, chama-se a isso estado de necessidade. É evidente que queria a negociação. Depois procuraríamos explicar os princípios, procuraríamos dizer que a Guiné vivia numa situação diferente. Qualquer explicação era possível porque qualquer coisa era melhor do que a derrota militar. O que foi proposto foi: “Vamo-nos sentar com o PAIGC, vamos negociar”. Era uma negociação para discutir o futuro político da Guiné, para ouvir o que é que eles queriam: o que o PAIGC tinha a dizer e o que eles queriam fazer. Nós dissemos que, como condição, tinha de ser assim. Não sabíamos como é que se iria desenrolar”.

Resta esclarecer que esta prática da história oral, a recolha de depoimentos sem tratamento, sem qualquer tipo de articulação, deixando ao livre alvedrio do leitor as conclusões, entrou em desuso, não obstante se reconhecer possuir os seus próprios méritos. Muitos dos documentos transcritos pela equipa de José Freire Antunes aparecem truncados, designadamente a correspondência enviada por Spínola a Caetano. Ora a correspondência é uma das situações comunicacionais que tem que atender, na investigação histórica, às relações entre o espaço e o tempo, tem que ser alvo de um tratamento documentado. A história oral em bruto é manifestamente ineficaz, são peças fragmentadas desprovidas de uma visão de conjunto.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964 - III Volume, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8691: Notas de leitura (267): O Fazedor de Utopias, Uma biografia de Amílcar Cabral, por António Tomás (3) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Anónimo disse...

Alguns depoimentos de algumas personalidades,muitos deles nem estiveram na Guiné,mas que falam sobre ela,dizem cada disparate que enfim...
Grave é ler depoimentos de alguns, que nunca saíram de Bissau,mas que falam do alto da sua autoridade "QG", e dizem completas barbaridades...A quem nós estávamos entregues!!!
Dos depoimentos apenas se aproveitam aqueles que foram operacionais, e que relatam as suas experiências pessoais.

C.Martins

Anónimo disse...

PS
Para que não haja dúvidas..
O meu comentário anterior é baseado na leitura desta obra.
Tenho os quatro volumes.

C.Martins

Anónimo disse...

_____ O LADO MENOR _____
Detalhe - a declaração dos ex-dirigentes do PRP, aqui reproduzida, mostra a simpatia com que se revive o apoio aos dirigentes do PAIGC, : 'Eram contradições do movimento anticolonial'.
Correcção - não eram contradicções, eram aldrabices. Comuns, de gente comum...banal, desprovida de sólida estrutura ideológica. Nharros, na melhor acepção e oportunistas; ouvem um rebentamento em Bissau e aproveitam para propaganda menor...
E andamos nós aqui a ler disto pra quê?
_____ O OUTRO LADO _____
... e se alguem topasse o rapaz dos queijos e lh'enfiasse um tiro na tola, tinha protecção jurídico militar?


Não se olha a meios para alcançar fins mas... a guerra era aceite como 'total' só para um lado, só vista do lado maior ou do menor?

Então, em que ficamos?

Pra já e sem reflectir, já se torna cansativo ver aqui escarrapachado o nome dos campeões do outro lado e a 'estória' das suas acções e 'intenções', mesmo quando o tema-intento aparece mascarado, como neste post.
Parecem-me contradicções anacrónicas do movimento anticolonial.



SNogueira

Torcato Mendonca disse...

Caro Mário
Breve.
Ainda bem que trazes esta maneira de tratar a história. Não concordas certamente. Conheceste o então Coronel H.Felgas, conheceste o Leste, sabes as asneiras cometidas. Não estiveste no abandono do Boé ou na Lança Afiada, mas sabes. Por ultimo esse "atentado"...tem um nome se perpetrado por portugueses-Traição.A mim repugna-me falar disso.Detesto.
São maneiras aligeiradas de tratar assuntos importantes. Aceitamos e,só lendo conseguimos analizar.
Um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Ao "rapazito cobardola dos queijos" se tivesse sido apanhado,teria como destino um julgamento e uns anitos na prisão.
Se fosse do lado do IN,seria um tiro na "mona".
Isto era o que nos diferenciava.

C.Martins

Unknown disse...

Porque não posso adquirir tudo que é livro sobre a guerra colonial, os posts do Beja Santos têm p/ mim uma importância grande, porque, me permite conhecêr opiniões de diferentes autores, em diferentes periodos pós guerra. Recolher, comparar e complementar com outras informações, sobre a guerra colonial e seu desenvolvimento. Implicações politico-militares etç.
Portanto, concordando ou não com o conteuodo dos posts de Beja Santos, eles são sempre para mim de utilidade com maior ou menor relevancia.

O que já não acontece com os comentários aos mesmos posts de B. Santos, SALVO HONROSAS EXCEPÇÕES.
Não concluo nem apreendo nada de nada com os mesmos.
Fazem-me lembrar tiros de salva. Só fazem barulho e algum fumo.
Porque a munição real, produz efeitos. Perfura, mata, queima,etç.

Ou seja, os comentários claramente, não contra argumentam, não esclarecem, não contra provam e outros nãos.
Desempenham perfeitamente o papel de tiros de salva.
Assim é de todo e definitivamente impossivel chegar a algum ponto racional de compreenção ou opinião.

Ps. As maiúsculas, são a sublinhar e não a gritar.

Um abraço p/ todos e para cada um
Carlos Filipe
ex- CCS BCAÇ3872 Galomaro71.

Anónimo disse...

Caro Filipe,
Ainda bem: estamos de acordo. Os comentários a Beja Santos são tiros de salva!!!! É mesmo assim que deve ser, pois ninguém aqui se quer magoar nem magoar os outros. Estamos num local tranquilo em que deve reinar a tolerância. Queremos é tiros de salva; nunca de bala real.

Uma só pergunta: o militar (oficial miliciano) dos queijos não praticou um acto de traição? Não seria julgado, preso e libertado como preso político depois do 25 de Abril de 1974? Não foi isto que aconteceu ao tal capitão de Cavalaria que entrou pelo Senegal dentro, matou uns quantos militares senegaleses, foi julgado, preso e logo libertado a seguir ao 25 de Abril de 1974?
Um abraço,
Carlos Cordeiro