1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2012:
Queridos amigos,
Qualquer relance sobre a história da Guiné deve procurar averiguar alguns antecedentes pré-coloniais.
A partir da presença portuguesa contamos com trabalhos incontornáveis de Teixeira da Mota, René Pélissier, António Duarte Silva e coronel Fernando Policarpo no tocante ao período da luta da independência. Mas era indispensável fazer-se aqui uma referência à tese de doutoramento de Carlos Lopes, uma investigação que permite desvelar o Kaabú, os Mandingas do Oeste, os verdadeiros herdeiros do Império do Mali e que tiveram uma poderosa influência cultural no Sudão ocidental.
Como escreve Carlos Lopes, “Para o conhecimento das relações de poder existentes no passado longínquo da Guiné-Bissau, mas também da Gâmbia, de Casamance, do Senegal oriental e do Futa-Jalo guineense, é necessário interpretar as características dos Kaabunké, o alcance da sua civilização”.
Um abraço do
Mário
Kaabunké
(Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance)
Beja Santos
Kaabunké foi o título da tese de doutoramento de Carlos Lopes, um dos mais conceituados intelectuais guineenses, hoje funcionário das Nações Unidas. O trabalho foi editado pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, em 1999. Constitui essencialmente uma investigação sobre a história do Kaabú, uma estrutura política Mandinga (malinké) da Alta Costa da Guiné que sobreviveu a todas as tempestades da África medieval e unificou os povos dos “Rios da Guiné” durante seis séculos (portanto entre os séculos XIII e XIX). Para o roteiro que estou a preparar sobre a Guiné portuguesa e a Guiné-Bissau, faz todo o sentido abordar o Kaabú, na justa medida em que ele interfere com a colonização portuguesa e é o documento mais sólido sobre a Guiné pré-colonial.
Que versa o Kaabú? Estes Mandingas do oeste eram os verdadeiros herdeiros do Império do Mali e da época gloriosa de Sunjata Keita. O Kaabú foi um Estado unificador de todas as etnias da região e as suas diversas áreas de influência expandiram-se e abarcaram a cultura de todo o Sudão ocidental, conhecer o Kaabú é abrir uma porta no passado longínquo da Guiné-Bissau, da Gâmbia, do Casamansa, do Senegal oriental e do Futa-Jalo guineense e conhecer uma civilização singular que se desmoronou também por efeitos das ocupações ditadas pelas potências coloniais depois do Congresso de Berlim.
Carlos Lopes começa por nos apresentar os diversos agrupamentos humanos com que o colonialismo se confrontou. Salienta que a maior parte dos etnónimos é de origem portuguesa, nesta região, com uma influência notória do crioulo falado nos centros comerciais sobretudo no Casamansa e na Guiné portuguesa; alguns etnónimos nasceram da mistura de culturas que ocorreu na região e foram consideradas pelos portugueses como novas etnias anteriormente desconhecidas. Havia aqui 12 grupos linguísticos de que interessa reter 3: o Senegalo-guineense, o Mandé e o Peul. Num texto meramente divulgativo não tem sentido esmiuçar os subgrupos e subdivisões. A zona de expansão de kaabunké por excelência situou-se entre os rios Senegal e Pongo. E Carlos Lopes enuncia a localização dos povos envolvidos, ali aparecem os Diola, Flup, Baiote, Pajadinka, Bainuk, Kasanga, Kobiana, Brâme, Papel, Manjak, Mankañe, Balanta, Mansoanka, Beafare, Bijago, Nalú, Peul, Fula, Mandinka, entre outros.
O espaço geográfico onde se desenvolveu o Kaabú é um conjunto ecológico integrado, estão ali os rios Gâmbia,Casamance, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo. A grande facilidade de penetração no continente surpreendeu os navegadores europeus. A vegetação é de savana com ilhotas de floresta subtropical, como as que se encontram no Futa-Jalo. Região de rizicultura próspera e onde o ouro do Bambuk teve um papel de grande importância. Os rápidos existentes em alguns dos grandes rios, o Gâmbia e o Corubal, garantiam uma fronteira artificial que protegia as rotas kaabunké. O isolamento relativo desta região (bloqueada para lá do Futa-Jalo) em relação ao Mali pode explicar a necessidade sentida no interior deste espaço de uma maior relação entre as diferentes estruturas económicas e políticas. O Kaabú era uma aristocracia repartida por diversas províncias, que governava pelas riquezas provenientes dos tributos e do comércio.
Recorde-se que três impérios marcaram a Idade Média do Sudão ocidental: Ghana, Mali e Gao. O Mali está associado a Sunjata Keita, unificador dos Malinké. Este pequeno reino periférico vai utilizar o Islão para justificação ideológica de hegemonia. Quando, no século XVII, o Mali desaparece de cena, o Kaabú está no apogeu graças à sua riqueza comercial. Carlos Lopes carateriza o Kaabú nos séculos XIV e XV, época em que Farim Cabo é ainda uma província do Mali. Kansala era o centro do poder do Kaabú e aparece ligado à batalha que derrota o Kaabú em 1867, e esquematiza a estrutura social kaabunké com a sua divisão social correspondente a 4 grandes grupos (a aristocracia, os homens livres, os indivíduos de casta correspondentes as profissões liberais e as corporações e, por fim, os escravos e agrupamentos étnicos dominados. O sistema de produção Kaabunké tinha uma grande dimensão esclavagista e foi o comércio com os europeus que levou à alteração nos princípios e normas de relações com os escravos. Estamos em presença, escreve o autor, de um poder que governa com o apoio ou cumplicidade de categorias de escravos e homens livres e onde um sistema de consulta é alargado a várias categorias sociais.
Seguidamente, o autor disserta sobre os espaços sociais no Kaabú dos séculos XVI e XVII. Os Kaabunké puderam reforçar as suas estruturas devido à decadência do Mali cujo declínio começa logo no século XV. Transformara-se este Kaabú num espaço também guerreiro. Seja como for era a prosperidade comercial que o tornava respeitado e pode agora conferir-se a relação próxima com a Guiné portuguesa, como escreve Carlos Lopes: “Com a descoberta da região pelos europeus, sobretudo portugueses, o comércio transatlântico implicará uma redefinição dos circuitos comerciais. Até ao século XVII, esta zona vai ser reserva de caça dos portugueses. Existe uma espécie de monopólio nas relações comerciais com a Costa da Guiné. Em 1858, instala-se a feitoria de Cacheu – primeira prova de uma presença real. Toda esta região Kaabunké tem apenas os portugueses como interlocutores. Instalam-se nas ilhas de Cabo Verde e, particularmente, na vila de Ribeira Grande, por eles próprios fundada. É a partir desta placa giratória que processa o comércio dos Rios do Sul. Aos produtos que já eram objeto de comércio entre os próprios africanos, os portugueses descobriram que era possível acrescentar o comércio de escravos”. Mas a amplitude dos mercados definidos pelos Kaabunké envolve outras trocas, como o autor detalha.
Mudando de registo, Carlos Lopes observa o espaço cultural e linguístico, sente-se o peso da influência da malinkização em diferentes povos, como atesta a toponímia e a antroponímia, recorda-nos a tradição musical malinké e como esta música é hoje considerada como tendo estado na origem de toda a música da África ocidental. E escreve, a propósito a herança linguística: “A base vocabular africana do crioulo parece provir do malinké. Baltazar Lopes da Silva, considerado o grande especialista do crioulo de Cabo Verde afirma que a influência das línguas do grupo malinké foi predominante. Luigi Scantamburlo, especialista no crioulo da Guiné, afirma que o malinké está na origem da base estrutural do crioulo guineense. Aliás, Marcelino Marques de Barros, um estudioso de renome dos séculos XIX e XX, referiu que os povos mandingas e beafadas, entre outros, estiveram entre os primeiros que conheceram e crioulizaram a língua dos brancos numa época em que ninguém aprendia as línguas mas apenas o vocabulário".
Depois de discretear sobre o espaço religioso e a administração Kaabunké, Carlos Lopes refere o seu declínio e a arremetida dos Peul, que se saldou com o domínio Fula sobre os Mandinga na Guiné portuguesa. Carlos Lopes dá por demonstrado que o Kaabú deve ser visto como um elemento de referência para qualquer categorização histórica desta região “O Kaabú deixou uma pesada herança aos Estados da Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal. São os herdeiros da estrutura política instituída no fim do século XIX pelos portugueses e, do outro lado das fronteiras de 1886, pelos franceses e ingleses”.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10498: Notas de leitura (415): Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Olá Camarada
Estes livrecos são consequência das investigações possíveis em face da escassez de elementos historico-sociológicos sobre os povos da Guiné e áreas próximas. É bom que se divulguem pois, na sua maior parte, são "raros" por terem tido edições pequenas e terem sido pouco divulgados na altura do lançamento. Alguns deles compram-se ao kilo à beira da reciclagem. São livros como este que ajudam a compreender a realidade que encontrámos "naquele tempo" e, se calhar a realidade que lá se vive hoje.
Um Ab.
António J. P. Costa
"...a realidade que encontrámos "naquele tempo" e, se calhar a realidade que lá se vive hoje..."
Se calhar António J.P.Costa.
Mais a mistura dos pozinhaos das colonizações e consequentes independências, ficou pólvora.
Mas há outros nas vizinhanças ainda mais complicados que a Guiné-Bissau.
OK Camarada
A História não feita de compartimentos estanques. A História é todos os dias e as influências vêm de trás e prolongam-se pelo futuro. Além disso, as acções e reacções sucedem-se, sem parar e, talvez seja bom que assim seja...
Um Ab.
António Costa
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