1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2013:
Queridos amigos,
Outro mérito não tivesse este romance de estreia do jornalista guineense Fernando Perdição, sobressai como franca novidade em toda a literatura luso-guineense um dos temas mais controversos da Guiné de hoje – o ocultismo ligado ao culto dos mortos, um tabu que atravessa o islamismo, o cristianismo e o animismo.
Fernando Perdigão é hábil na construção da história, acrescentando-lhe uma situação que não anda longe da lenda, os Gans, escalpeliza o poder político com fina troça e dá-nos uma imagem de uma burguesia forçada a debater-se com conceitos arcaicos num mundo pobre onde a tecnologia do telemóvel recorda a todos que não se parou no tempo. E há até uma observação muito amarga daqueles primeiros anos da independência em que Bissau ofuscava os combatentes vitoriosos e se procedia a uma delapidação desenfreada do erário público a partir das mais altas instâncias do Estado.
Um abraço do
Mário
O Retorno dos “Gans” (1):
Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné
Beja Santos
O primeiro romance do jornalista guineense Fernando Perdigão intitula-se O Retorno dos “Gans” (Edições Colibri 2013). Trata-se de uma obra a vários títulos surpreendente. Sob o manto diáfano da ficção, a pretexto da morte de um antigo combatente do PAIGC, conhecido por o Senhor Ministro, ir-se-á fazer uma longa e sinuosa digressão sobre mistérios e tabus, a dimensão obscura do culto dos mortos em que os animistas, os cristãos e os muçulmanos possuem tantas similitudes, discretamente escondidas. Acresce que o romance decorre em torno de um embate entre o moderno e a tradição, como se uma burguesia buscasse pergaminhos à volta das propriedades dos escravos libertos, os Gans, onde se impuseram apelidos, todos eles europeus, e onde nasceu uma linhagem que se volatizara com as guerras de pacificação, com a presença portuguesa, os Gans tornaram-se uma recordação do passado.
Fernando Perdigão tem um fino espírito crítico, com luva branca e bonomia vai desancando aqui e acolá nessa burguesia pesporrente e na classe política, traz para a ribalta profissionais que a sociedade africana mal considera, caso dos psicólogos e sociólogos. Procópio Fidalgo, aquele estranhíssimo combatente que várias vezes esteve para ser ministro, depois de um quadro depressivo, apagou-se definitivamente. Ernesto, o seu irmão, toma as rédeas das solenes exéquias. Há uma filha a viver em Portugal, não pode viajar imediatamente, o corpo vai ficar no gelo, um despesão. A imensa família e os amigos deslocam-se a casa de Nha Belânte, a viúva, que a todos recebe banhada em lágrimas. Iniciam-se as cerimónias da tradição, a presidência da república deu ordens para comprar um caixão, virá a bandeira para cobrir o féretro, no Baixo-Bandim a população está em ebulição. Procópio, antes da luta armada, tirara o secundário, era um homem cheio de interesses, tinha gabinete de trabalho em casa, uma máquina de datilografar Olivetti, uma estante de cinco prateleiras cheia de livros e versos. A Rádio Nacional abriu o noticiário com o falecimento do Senhor Ministro com umas pinceladas vagas e escusas da sua biografia. Ernesto vivia à sombra do mano, arranjou emprego no Ministério da Agricultura onde se apresentava como o irmão do Senhor Ministro. A Casa-Grande fervilha de agitação, iluminada por dentro e por fora, há cadeiras de plástico à volta, todas ocupadas. O despesão está em marcha. Agora os noticiários já são mais esclarecedores: Procópio fora militante da primeira hora do PAIGC, logo após a independência fora escolhido para desempenhar as funções de coordenador principal dos Armazéns do Povo. Houvera depois umas turbulências, como o 14 de Novembro, e Procópio tornara-se persona non grata. Reagiu e dedicou-se à agricultura na Ponta Fidalgo. E o autor aproveita para falar dos Gans: “Era uma importante estrutura familiar guineense nascida, presume-se, no século XVIII e disseminada, um século depois, por todo o território nacional, sobretudo nos principais centros urbanos de Cacheu, Bolama, Bissau, Geba, Farim. Após um longo tempo de florescimento, os Gans viriam a desaparecer a partir de meados do século XX”.
O cerimonial do choro é encetado pelas carpideiras, a sua lamentação chorosa corta o silêncio e tranquilidade da noite. A viúva também se lamuria, e alguém observa que o trabalho das carpideiras já não é o que era: “Antigamente, as carpideiras eram contratadas para irem dar um espetáculo a tempo inteiro, agora não, as novas carpideiras choram durante dois minutos e logo a seguir está a senhora lá na cozinha, e põem-se a conversar, é uma pouca-vergonha”. Chega entretanto uma grande profissional, a Tchorona, é capaz de chorar uma noite inteira e de pôr toda a gente a chorar. A assistência comenta que as cadeiras já não vêm só da vizinhança, vêm duma casa de aluguer, já existe a indústria da festa do choro. Na Casa-Grande, numa mesa, estava uma espécie de altar dedicado ao falecido, nele tinham posto um grande quadro com o retrato de corpo inteiro de Procópio Fidalgo, ornado de um enorme terço religioso de mais de meio metro de diâmetro, em dois castiçais de vidro ardiam permanentemente velas, esta encenação era primordial na esteira de choro. Como observa o autor, o aspeto católico desta mesa na sala contrastava com outro cenário, uma espécie de altar ao lado da cabeceira da cama do morto, ali estava uma pequena tigela de barro dentro da qual se via um pequeno chifre de cabra-de-mato encastoado com tecido e linha encarnados, com uma pedra granítica no meio, ensopados de sangue coagulado e aguardente. É nesta atmosfera que os familiares falavam com o espírito do falecido, que se acreditava estar presente no local. “Cada dia, um ou mais elementos da família mandava cozinhar uma comida, da qual colocava um bocado num pires, juntamente com um copo com água, outro com vinho, e uma garrafinha de grogue, tudo servido para o espírito do defunto. A comida restante dividia-se por todos os familiares presentes”.
Chega a família de Portugal, na Casa-Grande já temos o corpo do Sô Ministro todo vestido de um fato e gravata pretos, a família vem tomar parte ativa no amortalhar do finado. O padre católico chegou e rezou uma missa de corpo presente e deu com aquela cena do amortalhamento, era mais de duas dezenas de “panos de pente”, belíssimas obras de arte trabalhadas à mão.
Chegam numerosos carros e pessoas a pé, vêm todos com intensão de acompanhar o enterro, o padre já terminou a missa de corpo presente. Uma hora depois regressam do enterro. Há gente a discutir se o Estado deverá ou não intervir para a contenção de tais excessos. Gilberto, marido de Esperança, filha de Procópio, é um angolano com ideias prudentes, é a favor da educação cívica, nada de repressão, a repressão não resolve uma atitude cultural. No dia seguinte ao enterro, Nha Belânte foi cozinhar o prato que o marido mais apreciava: o “brindje de galinha pé-de-dentro acompanhado com mandioca frita, baguiche e canja pilada com cebola e malagueta”. É um grande cerimonial em que a viúva atirou alguns grãos de arroz para o chão e convidou todos a comer do mesmo cabaz grande e dirigir algumas palavras às almas. No entretanto, encetam-se enredos amorosos, a mesa do copo de água está sempre farta, há reminiscências do passado, nesse passado a igreja já protestava contra estes cerimoniais considerados obscurantistas, muito apropriados para gente selvagem, à volta da Casa-Grande consome-se todos os dias umas boas litradas grogue, o grupo musical “Estrela do Baixo Bandim” também marca presença, há dois ramos familiares que reivindicam a propriedade da esteira de choro: a Mancanha, que se dizia progenitora da avó materna de Procópio, e a Pepel, que reivindicava tanto da avó materna como do avô paterno do falecido. Esperança intervém, propõe que a esteira fique na Casa-Grande e sempre que for preciso as duas partes serão convidadas a vir participar. Os ânimos acalmam-se. O dinheiro esgota-se, as visitas não param e a comida tem que estar sempre em cima da mesa. E vamos voltar a ouvir falar nos Gans, vai haver declarações de amor e muita crítica sociopolítica.
(Continua)
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Notado editor
Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13313: Notas de leitura (603): "Prisão de África", o terror na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde, por Jean-Paul Alata (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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