sexta-feira, 27 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13335: Notas de leitura (605): "O Retorno dos “Gans”, de Fernando Perdigão (2): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Tudo leva a crer que a base histórica forjada por Fernando Perdigão para o ressurgimento dos Gans não passe de uma trama bem magicada. Dá uma oportunidade única para conhecer as práticas rituais da comunicação com os mortos, seus oficiantes, desempenho de curandeiros, sacerdotes e sacerdotisas e a invocação dos irãs. E também abre espaço para pressentir as aspirações de uma classe burguesa que procura afanosamente uma saída para o desenvolvimento, empreender com algum respeito pela tradição.
Uma leitura que traz ganhos culturais, indubitavelmente.

Um abraço do
Mário


O Retorno dos “Gans” (2): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné

Beja Santos

A morte e as exéquias de Procópio Fidalgo são o pretexto para uma viagem aos mistérios e aos tabus associados ao culto dos mortos na Guiné-Bissau no romance de estreia de Fernando Perdigão «O Retorno dos ‘Gans’», Edições Colibri, 2013, ao que sabemos é a primeira obra da literatura luso-guineense que se debruça com tal profundidade sobre os santuários das cerimónias tradicionais, sacerdotes, curandeiros, peregrinações aos locais de culto, irãs, cerimónias de toca-choro, esteiras de choro, amuletos, comunicação com o espírito dos falecidos. O outro pretexto, porventura uma aventura ficcional, são os Gans, em que, segundo o autor, os familiares dos antigos escravos passaram a viver independentes e fora das cercas das feitorias e das empresas dos antigos colonos, isto nos arrabaldes de Cacheu, Bolama, Farim, Geba, bem como Bissau, instituindo uma nova ordem social e económica. Pesquisei sobre os Gans e nada se encontrou, nenhuma literatura de referência consultada aborda tal problemática. O autor estabelece o enredo em torno de famílias de estatuto pequeno-burguês, dando-lhe uma permanente tensão entre a modernidade e a tradição, a família Fidalgo vai delapidando o seu património em todos os cerimoniais de choro e nas sucessivas receções dos muitos convidados, sabemos como a Guiné tem famílias extensíssimas. Nascem amores, confirmam-se casamentos, um psicólogo interpreta sonhos e um sociólogo disserta sobre os Gans.

O autor recorre ao expediente de jornadas universitárias para discorrer sobre o passado. Aqui e acolá, dá a sua alfinetada sobre a situação política: a lenta evolução do país à mercê das profecias; um funcionalismo público que tem emprego mas não tem trabalho, uma classe política arranjista… O sociólogo, de nome Fundungo, disserta sobre os Gans que teriam aparecido no período pós-descobrimentos, mais concretamente no período de instalação das feitorias. Os Gans teriam sido desmantelados até meados do século XX, eram um edifício educativo tradicional do país, os seus patriarcas constituíam uma espécie de assembleia restrita. Saúde-se o autor por esta nota de exótico que irá apimentar o livro até ao fim. Porque toda a obra está embrenhada de imaginário religioso à revelia do que prevêem os códigos cristão e islâmico. Por exemplo, a cerimónia do “cabaz”, o casamento tradicional guineense, materializado num objeto envolto de uma toalha branca e que é posto no meio da sala, simboliza o termo de compromisso entre duas pessoas e descreve-se com detalhe o longo cerimonial da chegada dos noivos na presença dos parentes, abre-se o cabaz de onde se retira um envelope branco e outros objetos, foi assim que “casaram” Ernesto e Kilda. Ficamos a saber que neste cerimonial há em sequência o pedido da mão da noiva, a abertura do cabaz e o casamento oficial. Este Ernesto era irmão do defunto Procópio, será ele que irá revitalizar Gan Fidalgo. E entretanto prosseguem cerimónias em memória do falecido Procópio, copos de água, missas, elogios…

Esperança, a filha de Procópio que casara com Gilberto, um angolano, e viveu em Lisboa, decidem refazer a sua vida em Bissau, ela trabalhar nas Linhas Aéreas Lusófonas, Gilberto tem outros planos, quer fazer uma agência funerária moderna. Depois das cerimónias religiosas do Dia de Todos os Santos, chegou o momento para o cerimonial do irã e dá-se a seguinte explicação: “Naqueles tempos, quando os brancos cá chegaram, isto era tudo mato cerrado, cheio de poilões e calabaceiras habitados pelos irãs. Mas havia caminhos muito antigos que os filhos da terra, habitantes das tabancas, percorriam, como itinerários sagrados, em direção aos santuários. Os portugueses em conluio com certos irãs, apoderaram-se do território e derrubaram muitas dessas árvores sagradas e até ficaram com alguns irãs para eles. Os nossos antepassados transferiram outros irãs para outros sítios…”. E presenciamos um cerimonial de irã, no quintal do “Caminho do Irã”.

Fernando Perdição não perde oportunidade para ventilar algumas das questões ditas fraturantes da sociedade guineense como a mutilação genital feminina. O toca-choro é também alvo de minúcia descritiva, é convocado para proteger a nova casa-grande de eventuais entradas dos espíritos maus. Faz-se o chamamento dos defuntos, instrumentos repicam, como o bombolom, segue a ladainha das mensagens, invocam-se os nomes dos entes queridos dignos de lembrança e choro, explica-se a indumentária com que todos se apresentam na cerimónia, segue-se a matança dos animais, uma boa parte de cada animal havia de ficar na casa de acolhimento da cerimónia. No contexto da tensão entre a tradição e o moderno, estes reagem e tecem críticas: as crianças não devem compadecer a cerimónias destas, pois a violência da carnificina do abate de animais pode provocar traumatismos graves, devia-se arranjar uma maneira simbólica de derrabar um bocadinho de sangue, não se devia consentir neste atentado à moral e à saúde pública já que o sangue e as fezes que se extraem das tripas acabam por apodrecer ao relento e favorecer doenças.

Começaram as obras de preservação de Gan Fidalgo, entretanto o seu herdeiro direto, Ernesto, vai remexer nos papéis do falecido Procópio que deixara imensos escritos, descobre que este era completamente hostil a este culto desordenado dos mortos e deixara, entre outras, a seguinte observação: “Faz-se o culto da personalidade aos vivos em troca do dinheiro, e o culto aos mortos, só pode ser, entre outras velhacarias, para que as almas nos ajudem a garantir um lugar no outro mundo, lugar esse que, se calhar, nem o merecemos”.

A saga encaminha-se para o fim, aparece a árvore genealógica dos Fidalgos, tudo começara em finais do século XVIII com Adelaida Fidaldo, filha de pai português e mãe Pepel, esta escrava guineense. Gan Fidalgo, vem a descobrir-se já tem cerca de 170 anos. Gilberto já pôs de pé a Agência Funerária Pés-Juntos, de colaboração com o Ernesto, que deixou o seu lugar no Ministério da Agricultura. Alguém critica-o: “Onde é que foram buscar essa ideia estapafúrdia de criar uma empresa para tratar de mortos, a ponto de te levar a abandonar o Ministério para ficares sem trabalho?”. Ao que Ernesto responde: “Aqui na Guiné as pessoas pensam que trabalho a sério é só quando se trabalha para o Estado. A nossa agência privada é também trabalho sério, tão sério que eu vou ter que tirar um curso para poder ser administrador da agência”. Ernesto pôs uma nova cobertura de zinco na Casa-Grande, do Gan Fidalgo, uma nova escadaria de acesso à varanda frontal, uma nova pintura, mandou colocar um letreiro em madeira esculpida “Gan Fidalgo”. E disse para si próprio: “Os Gans são os pilares da cultura guineense”. No dia da inauguração profere um vibrante discurso sobre a história dos Gans.

Fica-se com a ideia de que Fernando Perdigão pretende abrir uma via para que os guineenses alcancem um novo paradigma, inovando e assimilando a tradição livre de adulterações e obscurantismos. Depois da luta de libertação chegou o momento de tomar consciência de uma nova mudança. Há que restituir importância aos Gans, fazer deles a base de uma sociedade mais organizada e sem violência. Os Gans contribuirão para que cada guineense possa criar riqueza na sua própria terra, os Gans serão também renovação cultural, prepararão a sociedade para criar riqueza e equidade.

Utopia ou não, há uma mensagem de espírito de renovação, mesmo supondo que os Gans são ficção pura. E para o leitor não iniciado esta cosmogonia da dimensão cultural dos mortos é uma perfeita revelação.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13322: Notas de leitura (604): "O Retorno dos “Gans”, de Fernando Perdigão (1): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Cherno Balde disse...

Caro amigo Mario,

O tema tratado eh serio e mereceria muitos estudos para desvendar o misterio dos Gans que, longe de desaparecer, ainda continua a ser uma realidade social e politica bem presente na Guine-Bissau. De 1980 a 1998 muitos governos foram criados e recriados a sombra dos gans em Bissau.

Felicito o Fernando Perdigao pela importante obra.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde