sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13857: Notas de leitura (648): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2014:

Queridos amigos,
“Triângulo de Guerra” tem toda a legitimidade para merecer a nossa atenção. Todos aqueles três palcos da guerra de África tinham pontos afins e a sua especificidade. Moçambique tinha os milhares de quilómetros, as zonas de retinta paz e os vespeiros bem referenciados.
António Garcia Barreto não diz que faz a guerra, não se macaqueia em herói, não entoa exemplaridades, o que torna todo este seu relato num acontecimento literário genuíno e que mais uma vez nos leva a perguntar como é que é possível que belos romances permaneçam ignorados.

 Um abraço do
Mário


Triângulo de guerra: Um livro soberbo, injustamente esquecido (2)

Beja Santos

António Garcia Barreto tem ganho notoriedade na escrita pelas suas incursões na literatura infanto-juvenil, na ficção e no ensaio. Este seu romance “Triângulo de Guerra”, Edição de Maria Simão, 1988, não aparece mencionado no que mais significativamente se escreveu na literatura de guerra de Moçambique. O que não me surpreende, se pensarmos que nenhum crítico se pronunciou, no que toca à Guiné, sobre o esplêndido “Estranha Noiva de Guerra”, de Armor Pires Mota, não vi até hoje uma palavra de apreço e de admiração pelo fabuloso diário do soldado Inácio Maria Góis. Os críticos agarram-se a vários ícones, as edições discretas parecem condenadas a ficar à margem, ao esquecimento perpétuo.

Em “Triângulo de Guerra” não há equívocos sobre a matéria autobiográfica, o alferes, algures num porto, responde pelo reabastecimento, leva vitualhas até aos confins do território. Descreve ambientes, superiores e colaboradores. Aqui e acolá, há reencontros, como aquele que ocorreu com Carlos, companheiro da infância e da juventude, falaram das aulas de admissão ao liceu, de filmes e livros, do acontecimento que foi tirarem a fotografia com a farda número um. Nesse ponto fundamental para a logística da guerra, há uma crescente atmosfera de tédio, nervos em franja, chegam aerogramas a noticiar a morte de ente queridos, mas a rotina é inexorável. Uma tragédia pode deslizar para uma comédia ou para o grotesco. O tenente denominado Cabeça de Tuba, um desgraçado moral, a maldade personificada, recusa férias a um soldado a quem lhe morreu a mãe, o Rapa-Malgas. Este vingou-se, na primeira oportunidade: “Com o Rapa-Malgas enfarpelado num casaco branco, a servir no bar da unidade as bebidas do convívio, o tenente pediu que lhe fossem buscar um uísque com muito gelo, tinha uma secura astral. Colaço achou que era altura de agradecer toda a boa vontade do Cabeça de Tuba para consigo. Enxotou o ordenança dizendo-lhe que ele próprio levaria a bebida. Num espaço de segundos foi à retrete e urinou para dentro de um garrafa de cerveja, voltou ao bar e adicionou um dedal de mijo a uma boa dose de uísque, mais duas pedras de gelo, já está! Foi levar ao tenente essa bebida preparada por um barman imaginativo e sem escrúpulos e o oficial bebeu-a de um trago, estranhando, porém, o sabor amoniacal. É Old Par, velhíssimo, meu tenente, um lote acabado de chegar! Apressou-se Colaço a responde, tão sério que lhe doíam os malares com a força que fazia para não estrebuchar a rir. O Cabeço de Tuba elevou o copo no ar, à altura dos olhos, intrigado, procurando na memória gustativa o verdadeiro sabor de um uísque velho. Como não chegasse a qualquer conclusão, encolheu os ombros e disse: Traz-me outro, mas com mais gelo, é muito forte. E Colaço saiu do gabinete transportando o corpo arredondado e balofo, irmãos gémeo do leão-marinho a viver fora do seu ecossistema, e foi preparar outro uísque que saiu igualzinho ao primeiro: um mijuísque”.

Há gatos-pingados de ocasião que jogam às cartas em cima das urnas, há festanças que levam a engates, nosso alferes foi capturado pela mulher do médico veterinário, andava esfaimada de sexo, fez dele um garanhão. E porque se vive na vizinhança da guerra, o nosso alferes põe-se à frente de uma coluna para ir abastecer uma unidade, no regresso estoirou uma tragédia. Nessa viagem de retorno foram surpreendidos por bátegas de água violentas que reduziam a picada a um caudal de lama. “Quando a chuva se esgotou e parecia que a terra ressequida sorvia aqueles caudais, recomeçou o trajeto até ao aquartelamento. Assim se percorreram cinquenta quilómetros. Aqui e acolá interrompia-se a marcha, seguia-se com prudência para não quebrar os eixos dos rodados, os carros não queriam deixar de estar próximos uns dos outros. O carro que seguia à frente na coluna foi tragado, num segundo, pela boca camuflada de uma cova abissal, enfiando-se pela terra dentro que nem brinquedo de criança, matando nessa voragem inaudita o condutor e o cabo-contador-de-anedotas que seguia a seu lado com um furriel e nos alegrara a existência desfiando o seu chorrilho de histórias curtas. No rescaldo desta armadilha montada pelos guerrilheiros ficaram feridos outros soldados. A desolação era geral e contagiante”.

Como vive o essencial da guerra à distância, o narrador dá-se ao direito de ter rebates de alma: “O que me angustia não é tanto sentir o tempo escoar-se com a lentidão basculante das caravelas a navegar no mar liso e sem vento, mas constatar que a guerra se refugia na mata, um pouco como os duendes nas casas assombradas, e aí concretiza as suas aflitivas travessuras, belisca-nos o corpo até à morte mais horrível, amedronta, dilacera, envelhece, rasteira-nos ao mais leve descuido. As pessoas vivem um quotidiano quase feliz, sobre o qual paira, veladamente, uma ameaça por esclarecer”. E na cidadezinha também se vive a psicose do inimigo, anda-se à caça dos passadores de informações. A certa altura a desconfiança caiu num soldado negro, de nome Manhiça, a quem o furriel apelidara de Gulliver Negro, homem de temperamento cordato. Vendo-se perseguido, apertado numa rede que parecia não entender, afastou-se dos outros, tornou-se num homem acossado. E reagiu, o autor dá-nos um episódio eloquente: “Num desses dias, precisou de ir à cidade, vestiu-se à pressa, a camisa do avesso e os submarinos dos sapatos de encomenda, iguaizinhos aos do palhaço do pobre de qualquer circo, desabotoados, meteu-se num jipe de supetão para agarrar a boleia, tentando encaixar as pernas longas dentro da viatura, ante o olhar gozão do condutor que não deixou de exprimir o seu gozo: Corta as pernas, pá, vais ver que depois é canja! O Gulliver Negro desta vez não achou graça, colocou a manápula de garrote em cima do ombro do motorista e começou a apertá-lo, os dedos espetavam-se na carne como arpões, quase trilhando os ossos: Ripete lá os brincadeira, disse o Gulliver, senhor de si, mas o soldado não teve força para retorquir”. Mas o ressentimento continuou: “À falta de qualquer prova concreta, o Gulliver Negro foi transferido de unidade e a sua falta deixou um vazio na caserna, entre os camaradas, conforme deu a entender o Rapa-Malgas. A tropa já se havia habituada ao gigante indefeso, ao seu ressonar diabólico que não andava longe do rugir de uma cratera vulcânica em atividade, abalando os frágeis alicerces da caserna. A verdade é que os ataques às colunas prosseguiram mesmo despois do afastamento do Gulliver Negro. Não seria de estranhar, porém, a existência de informadores dos guerrilheiros entre os elementos que compunham o corpo de guias negros. A guerra também passava por aí”.

Há sempre surpresas na cidadezinha, Elisa, a lavadeira de alferes, e sua amásia na conjuntura da comissão, é presa como informadora, nosso alferes entra em pânico, chegou o Natal e o Cabeça de Tuba anda feliz, faz a peregrinação dos armazéns para se abastecer e levar o bem-estar às famílias dos oficiais da unidade. O Rapa-Malgas irá morrer nos confins do mato, vai chegar um soldado conhecido por Miss Katy, travesti de profissão, traz na sua bagagem um vestido vermelho-vivo, Miss Katy foi apedrada no charco, vai acabar tudo à bordoada, Miss Katy ou o soldado Alberto, recebeu guia de marcha, arrumou o baú da arte e foi representar para outro público.

E finda a comissão, o eco da guerra chega trazido pelos que demandavam a cidade. “Os homens, na caserna, despejavam a tensão nervosa sobre os armários, esmurrando-os, pontapeando-os, destruindo-os aos poucos. O alferes que me veio substituir recordou-me a minha figura, dois anos atrás, como se eu me olhasse frente a um espelho. Acabei por concluir que nada aprendi em todo este tempo perdido, exceto a solidariedade no infortúnio das vidas apanhadas na malha de um conflito cada vez mais difícil de justificar nas razões que o mantinham”.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13841: Notas de leitura (647): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

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