segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13841: Notas de leitura (647): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Ainda hoje é operacional a máxima de Ortega e Gasset “Eu sou eu e a minha circunstância”. A nossa circunstância na guerra de África foi aquele tempo, aquele local, aquela missão.

Chamou-me a atenção este livro de António Garcia Barreto, que fez comissão em Moçambique. O seu romance assenta numa sólida arquitetura, num domínio soberbo da linguagem, numa manipulação bem doseada entre bares, sexo pago e a tempestade na vizinhança da guerrilha. Um romance que é um bom termo de comparação com a nossa guerra na Guiné: no universo de Garcia Barreto há milhares de quilómetros, há colunas de reabastecimento intermináveis e a atmosfera do Índico.

Para ler, para saborear boa literatura, e poder comparar.

Um abraço do
Mário


Triângulo de guerra: Um livro soberbo, injustamente esquecido (1)

Beja Santos

“A guerra é o vértice de uma geometria especial, em que os outros dois são a bebidas e as mulheres do acaso, envolvendo-nos como uma tempestade da qual não sabemos como vamos escapar, obrigando-nos a ir de um vértice para outro, ora de encontro à dureza dos dias no confronto com a guerrilha, ora à procura do apaziguamento momentâneo e fogaz que nos faz esquecer a ansiedade e o medo que muitas vezes se veste de um despreendimento insensato perante o perigo, de um desprezo pelo que nos possa vir a acontecer”.

“Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988, é uma obra de um autor com créditos firmados tanto na literatura infanto-juvenil, ensaio e ficção, é uma narrativa muitíssimo bem urdida de alguém que faz uma comissão militar numa região portuária, aparentemente vital (Nacala?), tempo missão reabastecer quartéis no território da guerrilha.

Por uso e costume, confino-me à literatura da guerra da Guiné, abro-me exceção quando leio relatos poderosos e primorosos que não devemos ignorar. O escritor António Garcia Barreto traça perfis admiráveis (direi inultrapassáveis), trata o tédio com cor, forma, razão e desrazão, é capaz de descrições de cortar o fôlego como aquela em que apresenta a localidade onde tem a sua faina ao serviço dos reabastecimentos: 

  “Já lá vão longos meses, tantos que lhes perdi o conto na voragem dos dias sem sono, desde que aportei a este enclave de casario baixo de adobe e pedra de entre o qual sobressai um ou outro casarão de matriz colonial e desponta a velha igreja caiada de novo, onde cheira ao incenso que o padre missionário queimou na última cerimónia litúrgica. Batidos pela água do mar verde-azulado há restos da antiga fortaleza guardiã de impérios da pimenta, defendida por meia dúzia de canhões adormecidos, conservados numa grossa capa de ferrugem e verdete, postados entre as ameias como velhos à janela, desconsolados da vida, sonhando glórias passadas”.

Há um tenente tarimbeiro, que ele designa por Cabeça de Tuba, pertence, por inerência àqueles recortes militares dignos da galeria da estilística: 

“A estética do seu porte e a eficácia do seu gesto assumiam o valor de um arcabuz na guerra moderna. Conseguiu os galões após vinte anos de tarimba a comer feijão com massa, a remoer desditas e a decorar o código de disciplina militar. Foram anos difíceis, é de crer, marcando passo ao som de clarins roufenhos tocados por músicos de coreto distraídos da função e recebendo ordens sobranceiras de superiores atacados por crises de bílis que sonhavam com campanhas napoleónicas. Pavoneava os galões com o orgulho tosco de quem chegou no fim da jornada e recebeu um prémio de consolação. Mas isso era o menos, o pior é que era mau ou fazia por sê-lo. Os negros fugiam dele como da encarnação de um espírito maligno, não se atrevendo a enfrentar aquele buldózer de carne e músculos que, se fosse preciso, levantava a mão da pandeireta e estatelava-a na face amedrontada do tarefeiro. Com a tropa era mais brando, mas o sorriso escasseava e os soldados evitavam-no, escapando aos seus temperos cíclicos que se manifestavam como borrascas tropicais”.

Há sexo automático, desanuviador, há as operações de carga e descarga, apresentam-se os colaboradores deste oficial de reabastecimento: 

“O gordo que ali vai transportando o corpo com a elegância de um pato-marreco, é o Colaço, mas os camaradas tratam-no por Rapa-Malgas, cognome nascido no refeitório da recruta quando o viram comer com gula maior, sem ligar à qualidade nem à substância. O outro que o acompanha chama-se Rodolfo, é citadino de bairro limítrofe, com muita astucia no trato e um tanto gozão. Podia ainda falar-vos de um outro elemento que com aqueles faz um trio que irão conhecer melhor. Chama-se Belarmino, mas como é prematuramente calvo, todos o referenciam por Venerável Careca”

Temos autor mordaz, perscrutante, fazendo águas-fortes destes seus colaboradores: o Rapa-Malgas tem uma figura grotesca, um quase hipopótamo, o pessoal às vezes abusa do álcool, há cenas pancadaria, é depois necessário negociar com a polícia militar.

É um autor que sabe arrancar com mestria qualquer capítulo, não nos deixa capitular a atenção: 

“É domingo e cheira a pó. Pássaros compõem no arame farpado uma coreografia de pequenos saltos, pios e bateres de asas, indiferentes aos espigões de arame. Ao longe, por um trilho inclinado, vem a lavadeira trazer-me a roupa lavada e engomada com um esmero de ferro a carvão, de que há inelidíveis sinais: vejam-se estas pequeninas marcas de fagulhas rebeldes que pousaram na minha camisa”

Sabe-se que estamos num espaço amplíssimo, Moçambique, daí a naturalidade com que o autor escreve: 

“Recebo notícias de fortes ataques a 200 quilómetros desta cidadezinha costeira onde reparto as angústias por dias incertos”

De vez em quando, ele integra colunas de reabastecimento e vai relatando as experiências, especifica a carga de tensão, nunca deixando de conferir lucidez à vida que leva nessa retaguarda, mesmo a aturar o Cabeça de Tuba, o pandemónio da logística. África espanta-o, deixa-o pequeno perante uma natureza que se debate entre o colossal e o medonho: 

“Uma trovoada esparsa nasceu por detrás do morro a norte da cidade a avançou sobre a baía numa medonha alegoria de clarões e raios caldeado de chumbo e ocre, logo seguida por uma bátega de água intensa e pesada que tudo lavou e alagou nos breves minutos da sua passagem. Sob os telheiros de chapa ondulada ficou a ressoar, no silêncio da manhã uma música de cristais de chuva. Assusta-me e fascina-me esta grandeza tão própria de África. As distâncias não contemporizam com desejos de apressadas viagens, são longas rotas de milhares de quilómetros que se medem pela paciência em percorrê-las ao sabor do imprevisto. São extensos os principais rios e lagos, a dar com o tamanho do continente, como são grandes e descarnados os imbondeiros, esqueletos desiludidos no meio da chana”.

E a morte entra em cena, o alferes vai perder dois soldados que morreram e outro que desapareceu quando o posto avançado de reabastecimento onde estavam deslocados sofreu um ataque inesperado, era a primeira vez que tal acontecia a um apoio logístico, quem sobrou estava em estado de choque, vagabundeava por ali sem tino nem destino. A narrativa começa a ensopar-se pela exaustão, torna-se mole, escrevem-se aerogramas com fingimentos, há que disfarçar que tudo parece correr bem dentro daquele triângulo em que o autor apascenta o tédio. O Cabeça de Tuba é omnipresente, vociferante, inquisitorial, untuoso com os superiores e com os fornecedores, afinal ele é um senhor todo-poderoso no reino dos comes e bebes. E há um restaurante, um oásis entre os bares do cais, algo importante, o Galo Dourado com receitas portuguesas, a começar pela caldeirada à pescador. A guerra corre, o tempo escorre.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

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