1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Novembro de 2018:
Queridos amigos,
Fomos formatados de que aquelas ondas terroristas que avassalavam as províncias ultramarinas tinham a sua sede no exterior, eram uma pura e simples aplicação de agências do Mal, aquele nacionalismo não tinha quaisquer raízes. Daí a vantagem em esticarmos o ecrã e apreciar os eventos históricos que atravessaram o continente africano no limiar da II Guerra Mundial e cujas consequências estão hoje sobejamente estudadas. Sabia-se, em 1947 que a independência daqueles 500 milhões de súbditos britânicos, nas longínquas Índias, não ficariam por ali. Nasceu o conceito de Terceiro Mundo e as Nações Unidas acolhiam, ano após ano, mais países independentes que viam o colonialismo como um fenómeno a extirpar. Conhecer essa história ajuda a iluminar o que veio a acontecer nas colónias portuguesas.
Um abraço do
Mário
O continente africano no limiar da II Guerra Mundial e depois (1)
Beja Santos
A obra de Marianne Cornevin foi no seu tempo uma iniciativa singular, pela quantidade de informação oferecida sobre a situação política no continente africano antes da II Guerra Mundial, as operações militares que aqui decorreram, as repercussões económicas que o conflito acarretou, os acontecimentos imediatos a que não faltou o grande impulso da independência da Índia e da África inglesa, a marcha para a independência desde a década de 1950 até junho de 1977, dia da independência de Djibuti. Trata-se de uma informação rigorosa que contextualiza o que de primordial ocorreu e que veio justificar a onda descolonizadora: “História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias”, por Marianne Cornevin, I Volume, Edições Sociais, 1979.
Havia apenas dois países independentes em África, em 1939: a Libéria, ainda sob a dominação da Firestone, por causa das plantações de borracha, e o Egito, a gozar desde 1922 de uma independência bastante teórica. A União Sul Africana era desde 1923 uma colónia autónoma gerida por colonos britânicos. Quanto ao mais, havia governadores ao serviço das potências coloniais: França, Grã-Bretanha, Portugal, Itália, Bélgica e Espanha. Ninguém pensa em descolonizar, e a única coisa que as potências coloniais temem são as reivindicações coloniais de Hitler. No entanto, há já um discurso oficial britânico que se equipara à autodeterminação. Os focos de nacionalismo, ao tempo, são ténues mas exprimem-se na Etiópia, em Marrocos, em Madagáscar e na Tunísia. Ao Sul do Sara, é tudo mais difícil, são países arbitrariamente divididos, correspondem a conjuntos de povos nunca àquilo a que se chamam Nações. Neste espaço, a expressão nacionalista é essencialmente a denúncia do racismo. A autora esclarece as reivindicações na Etiópia e em Madagáscar, confere uma especial importância ao ensino religioso devido à irradiação das missões protestantes e distingue o ensino na África negra britânica e francesa. Cabe aqui uma palavra à negritude e ao caso específico do Senegal, pois a lei da cidadania de março de 1916 concedia aos nativos das comunas em pleno exercício do Senegal e aos seus descendentes o direito à cidadania francesa sem que fossem obrigados a conhecer a língua e não precisavam de renunciar ao estatuto muçulmano. Na África negra francesa existiam entre as duas guerras quatro categorias de africanos: os súbditos, submetidos ao regime do indigenato, cerca de 90% da população; os isentos do indigenato e os comerciantes e os cidadãos originários das comunas em pleno exercício do Senegal (eram 78 mil em 1936, na altura em que o Senegal contava com 1,8 milhões de habitantes). A África Ocidental britânica dispunha de uma classificação um tanto análoga, só os súbditos britânicos tinham o direito de entrar na Grã-Bretanha sem uma autorização especial do Governo britânico. A autora recorda que o I Congresso Pan-Africano foi organizado por Du Bois em 1919, em Paris, as autoridades assim procuravam recompensar o recrutamento de 63 mil soldados na campanha de 1918. Seguir-se-ão outros congressos em Paris, Londres e Bruxelas.
A autora destaca a importância na África mediterrânica do Islão e o pan-arabismo. Quem fala árabe tem um sentido de unidade e um meio de comunicação, a língua árabe parece fazer oposição ao poder colonial. Os marroquinos e os argelinos apercebiam-se perfeitamente de que a língua constituía um fator da maior importância de coesão e de resistência dos colonizados perante o colonizador. A língua e a religião geraram um sentimento em Marrocos, na Argélia, na Tunísia, na Líbia e no Egito.
E chegamos ao conflito mundial. Como observa a autora, do ponto de vista dos beligerantes, a guerra de África compreende duas fases principais. A primeira, a defesa do Canal de Suez, inicia-se em agosto-setembro de 1940 com o ataque italiano à Somália britânica e ao Egito; e termina a 2 de novembro de 1942 com a vitória britânica de El Alamein sobre as forças germano-italianas. A segunda fase, a conquista de uma base mediterrânica para reconquistar a Europa meridional dominada pelos alemães, inicia-se a 8 de novembro de 1942 com o desembarque anglo-americano em Marrocos e na Argélia e termina a 12 de maio de 1943 com a capitulação das forças germano-italianas na Tunísia. Claro está que este teatro africano extravasava para outros pontos, estendia-se a um próximo Oriente fervilhante, caso do Iraque, da Síria e do Líbano. Deu azo, por exemplo, a que os Governos sírio e libanês mostrassem que a questão do mandato estava ultrapassada e assim participaram na Conferência da Liga dos Estados Árabes. As ideias viajam e o sentimento de libertação do jugo colonial alastrou por todo o Norte de África e no próximo Oriente. É hoje dado assente que a Carta do Atlântico, de 14 de agosto de 1941, subscrita por Roosevelt e Churchill marca o reconhecimento do direito à autodeterminação, que vai constar da Carta das Nações Unidas. Logo em 1943 o Departamento do Estado Norte-Americano redige uma Declaração das Nações Unidas sobre a Independência Nacional: “Todas as Nações que possuam um domínio colonial deverão cooperar com os povos dessa região para os tornar aptos a receber o estatuto de independência nacional”.
Depois de passar em revista o anticolonialismo da União Soviética, o procedimento adotado pela França Livre perante África, a autora analisa as repercussões económicas, sociais e políticas da guerra em África: o Congo prosperou com as vendas colossais de cobre, cobalto, estanho, zinco e minério de urânio para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos; na África Ocidental britânica recrutaram-se 176 mil homens e o esforço de guerra foi considerável para as oleaginosas, o cacau, a borracha, a madeira, o manganês, a bauxite e o estanho. Esta análise estende-se à África Oriental britânica, à África do Sul, à África Equatorial francesa, aos Camarões e ao Togo, a Madagáscar, ao Sudão anglo-egípcio e como foram emergindo os desejos da independência por todo o Norte de África. O esforço de guerra implicou uma assinalável mobilidade da sociedade africana, o acesso dos africanos a postos até então estritamente reservados aos brancos. E os soldados africanos que tinham combatido regressam modificados. Ainda decorria a guerra e já o pan-africanismo era alvo de congressos e políticos como Kenyatta, Padmore, Nkrumah, entre outros, apelavam às independências. A atmosfera é propícia, logo em 1946 há graves motins em cidades indianas, no ano seguinte a Índia, o Paquistão, a Birmânia e Ceilão ficam independentes. E temos agora um vasto itinerário que vai da independência da Índia até à Conferência de Bandung (1947-1955), inicia-se uma nova fase da África contemporânea.
(Continua)
Kwame Nkrumah.
Jomo Kenyatta.
Habib Bourguiba.
____________Nota do editor
Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)
4 comentários:
Uma maravilha o que veio a seguir!... depois de escorraçados, extripados os nojentos colonialistas.
Abraço,
António Graça de Abreu
Ora viva, Mário. O que aconteceu para entrares aqui, hoje, pela "porta dos fundos" (ou do "cavalo"...) do nosso blogue ? A gente não está habituada a ver-te misturado com o "povo"... Mas é bom e podes complementar ou ajudar a melhorar o teu pensamento, expresso no poste. E um bom comentário pode dar direito a um novo poste.
Um alfabravo. Luis
"...Nações Unidas acolhiam, ano após ano, mais países independentes..."
Bem tramados ficaram os países que precisavam do acolhimento das Nações Unidas.
O primeiro país que vi ao vivo a precisar das Nações Unidas foi o vizinho de Angola, o antigo Congo Belga em 1960, eu Cabo milº junto a Matadi.
Como a guerra de muitos anos interna começou um minuto após o rei belga arrear a bandeira belga, as Nações Unidas acorreram com "turistas" suecos, militares marroquinos e militares indianos.
Azar dos países africanos que precisem de militares da ONU, sejam de que nacionalidade forem.
Beja Santos sempre em dia.
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