1. Quarto episódio da série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), Bom ou mau tempo na bolanha.
Um certo dia, ao cair da tarde, pouco depois do comboio das
quatro e meia, o T
ó d’Agar, que é como se chama neste texto, de
regresso a casa pela estrada principal que levava à vila,
depara com um casal que se via aflito para mudar a roda de um
carro, cujo pneu tinha furado. Falavam uma linguagem diferente, como
se via nos filmes de cowboys. O Tó d’Agar, solicito e vendo o
casal em apuros, imediatamente se prontifica a ajudar. Em poucos
minutos troca a roda do carro, de seguida, explica:
- A vila é próxima, fica ao sul, lá podem reparar o furo do
pneu, naquela casa ali, vive o senhor Jaime barbeiro, boa
pessoa, eu vou lá com vocês e podem lavar as mãos e beber água.
O casal, era nem mais nem menos, um diplomata americano,
duma cidade do norte de Portugal. Falavam e compreendiam
português, pelo menos ele, e na despedida, esse diplomata, muito
simpático, deu-lhe um cartão de visita, dizendo-lhe:
- Agradeço imenso a sua ajuda, e estou ao dispor para o
ajudar no que for preciso.
À noite, já depois de passar o comboio das dez e meia, no
quarto antes de dormir, o To d’Agar conta o sucedido à
Margarida. Ambos concordam que era uma boa oportunidade de
tentarem emigrar, sair do
regime que não mais
suportavam, irem para
outro país, onde pudessem
dar um futuro aos filhos,
onde os pobres fossem
tratados com mais
dignidade, onde não
houvesse uma desigualdade
tão grande de tratamento
entre ricos e pobres,
onde se pudesse
sobreviver sem encontrar
todos os dias pessoas soberbas a olharem, com receio de que não
vá algum pobre comer o pão que essas mesmas pessoas soberbas e
invejosas, mas com algum dinheiro deixado por alguém, não ganho
com o suor do rosto, todos os dias deitam no caixote do lixo.
A ideia ficou a amadurecer no pensamento de ambos, não nessa
semana, que havia rega do milho e outros afazeres, mas na
seguinte, o Tó d’Agar, não de comboio como gostava, mas na
camioneta da carreira, vai a essa cidade no norte, falar a esse
diplomata.
Expressa-lhe a vontade de ir como emigrante para os Estados
Unidos, a maneira não sabe, mas quer ir desesperadamente,
conta-lhe a vontade que tinha de querer ter acesso a trabalho e
tratamento com alguma dignidade, explica-lhe a perseguição que
sofria, não só pelas polícia do estado, como pelas pessoas com
alguma influência no lugar onde vivia. O diplomata escuta-o,
pede-lhe todas as informações dele e da Margarida e finalmente
diz:
- Como sabes, não sabemos nada a teu respeito, vou informar-me,
entretanto, arranja estas certidões, estes documentos,
passaporte, caderneta militar e um documento que prove a tua
profissão de gráfico. Traz esses documentos e vem ver-me de
novo.
O Tó d’Agar veio
desanimado, o único
documento que arranjaria
com facilidade era a
comprovação de que era
gráfico.
Há bastante tempo que
descontava para o
sindicato, ele mesmo
tinha uma carteira do
sindicato com a sua
fotografia, se fosse ao sindicato na cidade, logo lhe passariam
um documento comprovando que era gráfico, disso estava certo. Com alguma dificuldade também arranjaria as certidões, agora
passaporte e caderneta militar era
impossível, o passaporte era
proibido dá-lo aos pobres porque podiam
fugir. Muitos seus amigos tentaram
ir ao governo civil tirar
passaporte e eram corridos pelas
escadas abaixo, com a intimidação de
que iam avisar a Polícia do Estado
e isso o To d’Agar não queria, pois
já estava farto de interrogatórios.

O sistema era assim. Não queriam
que a mão de obra, ou seja, os
humildes trabalhadores, faltasse às
empresas dos senhores importantes,
em outras palavras, não autorizavam
que os pobres deixassem de
sustentar os ricos com o seu suor. Alguns, como não conseguiam
passaporte, pagavam rios de dinheiro a “passadores” e iam “a
salto”, como se dizia, para França e Espanha, muitos morriam nos
Pirenéus, abandonados pelos “passadores” e como os companheiros
combatentes e não só, talvez ainda se lembrem que o então Cifra
era um razoável militar, mas um fraco, mesmo fraco guerreiro.
A caderneta militar, ainda quando se
chamava Cifra, e quando entregou os trapos, que
eram os restos da farda do ultramar e que teve
que pagar vinte e sete escudos e cinquenta
centavos, na unidade militar perto de Lisboa, o
sargento na despedida, com cara de comandante,
diz-lhe:
- Com a especialidade que tiveste na
tropa, não podes sair de Portugal durante pelo
menos cinco anos.
O Tó d’Agar lembrava-se dessa conversa de despedida.
Já em casa, falando com a Margarida, combinaram: Temos de
fazer um pedido a alguém importante, com influência na tropa e
no governo civil, alguém que esteja metido no sistema e que
queira ajudar-nos, alguém que nos ajude sem exigir quatro vezes
mais em troca, como era normal
nestes casos, em que as pessoas que
pediam favores a alguns senhores
com poder, ficavam devedores para o
resto da vida, podiam pagar, pagar,
que nunca liquidavam a dívida. De
contrário, vamos viver aqui o resto
da vida, não sairemos da “cepa
torta” e da miséria a que nos
sujeitam.
Já lá iam mais de quatro
anos e ainda não tinha recebido a
caderneta militar, o sargento com
cara de comandante, tinha toda a
razão.
O Setúbal, sportinguista ferrenho, vinha todos os anos ao
norte com a família ver o Sporting jogar com o Porto, ficavam
em casa do Tó d’Agar, correspondiam-se por carta pelo menos duas
vezes ao ano. O Tó d’Agar escreve-lhe um postal, pedindo-lhe se
descobria lá por Lisboa, se o nosso comandante ainda era vivo e
onde estava colocado. A resposta demorou uma semana e tal, era
comandante de uma certa polícia na capital. O To d’Agar, desta
vez vai no comboio das seis e meia até à cidade, tomando de
seguida o comboio da linha do norte que o levaria à capital, vai
à fala com o comandante, ficam pasmados a olhar um para o outro
e abraçam-se. O comandante, pergunta-lhe:
- Então oh Cifra, em que problema, em que conflito, te
meteste agora, para me vires ver? Não me vais dizer que é por
causa das fotografias?
Riram, os dois.
O To d’Agar, explica-lhe toda a
situação. Quer um passaporte para
ele e para a Margarida e a
caderneta militar, quer ir com a
mulher para os Estados Unidos.
O
comandante olha muito sério para
ele e diz-lhe:
- Só se as melhores fotografias
forem só para o meu arquivo.
Riram, de novo.
Ficaram à conversa uns minutos e o comandante faz uns
tantos telefonemas.
Entretanto, para ajudar a passar o tempo, beberam dois copos
de Vat-69, servidos pelo comandante. O telefone toca, o
comandante atende, fala com voz de comandante durante uns
minutos e desliga. Vira-se para o To d’Agar, e diz com cara de
satisfação:
- Tens cá uma sorte, és um felizardo. Podes ir levantar a tua caderneta
militar ao quartel da cidade, a partir da
semana que vem, pois vai ser enviada para lá por estes dias. Quanto aos
passaportes, diriges-te pela manhã ao governo civil, falas com
este personagem dizendo que vais da minha parte, pois já está
avisado e vais trazê-los no mesmo dia. Combinado, oh Cifra, e
mais uma coisa, não vás para os Estados Unidos, vender
fotografias da guerra.
Estas últimas palavras, foram ditas com ar de alegria.
Abraçaram-se, e despediram-se.
Tudo aconteceu, como o comandante disse: “Tens cá uma sorte,
és um felizardo”.
Algumas semanas depois o Tó d’Agar tinha
passaporte para ele e para a Margarida, assim como a caderneta
militar nas mãos. Foi de novo falar com o
bondoso diplomata, que entretanto já tinha todas as informações
a respeito do Tó d’Agar e da Margarida. Ambos eram pessoas
honestas e trabalhadoras, embora o diplomata, e o Tó d’Agar
nunca soube porquê, a esse respeito lhe fizesse jurar que não se
ia meter no futuro em assuntos de política, o que o To d’Agar
erguendo a mão direita aberta, jurou. Entregou-lhe os
documentos que tinham sido pedidos, incluindo uma comprovação do
sindicato em conforme era gráfico. O diplomata, analisou-os e
tirou fotocópias, apontou vários números, por fim explicou:
- Está tudo em ordem, o
processo vai decorrer e no
futuro vamos necessitar de
mais documentos, mas serão
simples e não vai haver
qualquer complicação,
praticamente vai ser
aprovada a tua ida como
emigrante para os Estados
Unidos, precisavam lá de
pessoas novas, honestas e
trabalhadoras, toma lá este
livro, que contém a história do país para onde vais emigrar,
tem algumas palavras que tens que aprender, aprende, pois quero
começar a falar contigo no idioma que lá falamos.
No ano seguinte nasceu um filho de ambos, um grande rapaz,
sendo a Margarida, assistida durante toda a sua gravidez por um
médico jovem, amigo de infância
do Tó d’Agar, acabado de sair
da Universidade. Filho de família
modesta que compreendia a
situação das pessoas com menos
recursos, que eram os pobres e
com ideias muito parecidas com
as que o Tó d’Agar tinha nessa
altura da sua vida, pois também
teve complicações com a polícia
do estado durante o seu tempo
de estudante.
A ordem da
embaixada, com autorização de
visto e restantes papeis de
embarque, vem no final desse
mesmo ano.
O To d’Agar, lembrou
mais uma vez o comandante:
“Tens cá uma sorte, és um felizardo”.
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Nota do editor:
Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11414: Bom ou mau tempo na bolanha (3): O Tótó e o vinho (Tony Borié)