sábado, 23 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14651: Manuscrito(s) (Luís Graça) (57): Quando o Niassa apitou três vezes... Foi há 46 anos, a 24/5/1969, ias tu a caminho de Bissau, com mais 1734 camaradas, incluindo o soldado condutor auto da PM Jerónimo de Sousa...


T/T Niassa > 24 de maio de 1969 > Uma imagem repetida até à exaustão ao longo da guerra colonial; o transporte de tropas era feito em cargueiros, mistos, adaptados... As condições a bordo eram inumanas ... Neste caso foram transportadas 13 companhias independentes. num total de 1735 homens. As praças eram acomodadas em beliche, nos porões, como animais. Com capacidade para 3 centenas de passageiros, além de cerca de 130 tripulantes, o T/T Niassa. a caminho do TO da Guiné aumentava a "carga humana" cinco ou seis vezes mais...

Foto do livro "Histórias da CCAÇ 2533" [Edição e legendagem: LG]



N/M Niassa > Ficha técnica:

(i) navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice; (ii) construído em 1955, na Bélgica; (iii) registado no porto de Lisboa (e abatido em 1979); (iv) com mais de 151 metros de comprimento; (v) arqueação bruta de c. 10.700 toneladas; (vi) uma potência de 6800 cavalos e uma velocidade normal de 16,2 nós; (vii) alojamentos: 22 em primeira classe, e 300 em classe turística, num total de 322 passageiros; (viii) número de tripulantes; 132; (ix) armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa.

Foi neste navio, adaptado a transporte de tropas (T/T), que viajaram (!), de Lisboa para Bissau, diversas companhias independentes, com partida a 24 de maio de 1969, incluindo a CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), a CCAÇ 2591 (futura CCAÇ 13), a CCAÇ 2592 (futura CCAÇ 14), bem como a CCAÇ 2533 (dos nossos camaradas Luís Nascimento e Joaquim Lessa) ou ainda a CPM 2537 (a que pertenceu o atual secretário geral do PCP - Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa). Um "fait divers" para a história...

Crédito fotográfico: Navios Mercantes Portugueses (2004) (Foto aqui reproduzida com a devida vénia...)


apitou três vezes


por Luís Graça (**)



Uma estranha maneira de dizer adeus,
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se,
no cais de partida,
não em oração para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão de Estado.

A tentacular força centrífuga
que, de há séculos,
te leva os filhos teus, para fora,
paridos e expulsos do ventre da mátria,
para longe, bem para longe,
muito para lá do mar.

Uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
Todas as despedidas são breves e tristes:
o momento em que o Niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar,
diz o capitão de terra, ar, mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a Vat(e) 69, ontogenético, fotogénico,
cinéfilo, garboso, charmoso, glamoroso
pronto para a ação
... na mesa do king, do bridge ou da lerpa.

Passado o Bugio,
deixado para trás o velho do Restelo,
desvanecido o azul da serra de Sintra,
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
no mar alto que outrora foi português,
anuncia o capitão,
muito pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo, pequeno e burguês.
Vai na segunda comissão, o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar da batalha de Dien Bien Phu
nem sabe onde fica a ilha do Como.

E o filme da noite é  uma comédia, 
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
que no T/T Niassa faz de porteiro
ao bar Meu Amor, Guiné.
Um gajo bacano, num país de bacanos,
fulanos e sicranos,
de soldados rasos, primeiros cabos, furriéis forcados
e segundos sargentos, mangas de alpaca.


Uma tragicomédia, escreverás tu no teu diário
a que mais tarde chamarás Diário de um Tuga.
Cadé os oficiais ?
Cadé a elite da nação ?
Onde estão os filhos-família,
a ínclita geração, 
os primeiros, a fina flor, os morgados,
os cavaleiros andantes, os primogénitos, os palmeirins,
os fidalgos, a casta, a raça apurada,
o sangue azul, pedigreeos Gamas e os Camões,
os melhores de todos nós ?
... Morreram todos
em Alcácer Quibir.

Lisboa revista,  revisitada,  revistada,
em filme de oito milímetros,
a preto e branco ou a preto e negro,
dizes tu, corrosivo,
uma só nação,
valente mas ferida mortalmente,
ironiza alguém.
O Niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata,
inglória a sucata da história que tu perdeste
aos dezoitos anos,
quando deste o teu nome para as sortes.
Estranha palavra essa, das sortes, 
que rima com desnortes
e com mortes e com fortes, 
que dos fracos não reza a história.

despedida breve e triste do Niassa,
o teu primeiro e único cruzeiro da vida,
e ainda mais triste é o filme, sem som,
sem palavras desnecessárias, a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas,
talvez a noiva que ia vestida de branco
com xaile preto, a louca,
por cima dos ombros.

A ponte, ainda reluzente,
de Salazar, o velho,
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás tu, Sophia,  pitonisa de Delphos,
quase morto mas não enterrado.
Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
a última nau do cais da Ribeira,
o último império que ficou por haver,
o último marinheiro em terra,
sinal de tempestade,
o último uísque marado 
que ficou por beber de um trago
no Cais do Sodré, amargo,
o mudo do Cristo Rei em terra 
que outrora foi de infiéis,
o Terreiro que continua do Paço,  não do povo…
Lisboa e o seu casario, branco, sujo,
o filme a preto e branco, riscado,
um gato preto à janela,
sinal de mau agoiro.

Lisboa...  e lá longe a Guiné,
Lisboa, enfim,  com as suas ruínas,
pré-pombalinas,
o poço dos mouros, o poço dos negros,
o lundum, a umbigada
a procissão da Nossa Senhora da Saúde,
mais a Santa Inquisição,
zelando pela pureza da raça e do sangue,
zurzindo corpos e almas,
o Cemitério dos Prazeres ao alto,
com os seus altos ciprestes negros,
os mastros dos navios da carreira colonial,
o império por um fio, dental,
a vida, ainda curta, que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de Santa Margarida.

Ah!, e os jacarandás  que, em maio, já choram,
de lágrimas lilases,
e as santas das nossas mães que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas,
a tecer o lenço de enxugar lágrimas,
um fado que tu ouviste numa tasca do Bairro Alto
e que já não era batido nem dançado nem cantado,
um fado apenas gemido, sussurrado.

Ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da Páscoa.
anhos, dizem no norte, alinhados
no Cais da Rocha Conde de Óbidos,
como os elétricos amarelos
que vão para a Cruz Quebrada,
empilhados, aboletados, requisitados
às mães para servir a Pátria,
o pai-patrão que lhes cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.

Mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refratários, outros desertores,
cozinheiros, magarefes, corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
desenfiados, traidores, atiradores,
sacristães, sapadores, pulhas,
coveiros, escriturários,  bazuqueiros,
safados, bufarinheiros, cavaleiros,
trolhas, cavadores de enxada,
infantes, artilheiros, maqueiros,
herois de torre e espada…

Coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló, o cadafalso,
com um nó na garganta mal disfarçado,
os lenços brancos como em Fátima no 13 de maio.
Algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação patriótica.
O hino canta-se em voz de cana rachada,
em disco riscado
por senhoras, poucas e roucas,
do Movimento Nacional Feminino.

A mesma atitude, admirável,
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem.
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos,
leia-se: da tragédia inelutável,
acrescenta o bispo de Merda…suma.

Senhora Nossa, rogai por nós, pecadores,
protege-nos, das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas, dos estilhaços
e dos tiros de costureirinha,
protege-nos do IN, leia-se inimigo,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas  e canhões sem recuo.
das piçadas  e dos louvores dos nossos comandantes.
e sobretudo de nós mesmos,
soldados malgré noussoldado à força,
arrebanhados,  arregimentados, requisitados, 
condenados, ameaçados,  camuflados. 
acondicionados como bestas
que vão para o matadouro.
Livra-nos, Senhora Nossa,
da fome, da peste e da guerra,
e do marechal da nossa terra
que nos manda para tão longe.

Lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
Puseste o combate do possível
na tua agenda de expedicionário da Guiné.
Puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito, que te deu a tua namorada, coitada.
Não, não usas a cruz, o crucifixo,
não vais para a guerra santa,
não, senhor capelão,
alguém há de rezar por ti, camarada,
para que  voltes são e salvo.
Do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico 13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos,
tudo isto face ao risco, bem real e concreto,
de tu morreres longe, bem longe
da tua casa, da tua pátria,
para lá do mar,
em terra que nunca te viu nascer.

Descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio,
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos,
engraxará as tuas botas.
e porá um moeda na boca
para pagares a viagem ao barqueiro de Caronte,
no caso de morreres pela Pátria,
ainda jovem e imberbe,
nas bolanhas, rias ou matos da Guiné

Levarás contigo a pedra-chave
que te liga ao além,
uma chapa de zinco, picotada ao meio,
que outrora era de xisto ou de grés,
entre o teu antepassado
calcolítico, castrejo, romanizado.


Respeitaremos a tua última vontade,
lavrada no cimento fresco do teu abrigo:
Camaradas
(que colegas é só nas putas!):
se eu aqui morrer, 
que me enterrem,
 
numa anta do meu país megalítico!


A bordo do T/T Niassa, 
a caminho da Guiné,
24-29 de maio de 1969. 
Visto e revisto.
v10 22mai2015

Guiné 63/74 - P14650: Agenda cultural (403): Uma iniciativa do INATEL: "É de Fones!"... 500 tocadores de instrumentos musicais tradicionais portugueses (gaitas, concertinas, cavaquinhos, violas campaniças, bombos, adufes, castanholas, chocalhos, canas rachadas...) fazem esta tarde a festa em Lisboa!... A não perder, povo que ainda cantas e tocas, contra a depressão coletiva!



1ª Edição | 23 Maio 2015 | Lisboa

Do sítio da INATEL, com a devida vénia:


500 tocadores de instrumentos musicais tradicionais, acompanhados pelos Gaiteiros de Lisboa, como grupo embaixador e Amélia Muge como guardiã de todos os fones, invadem a Baixa Pombalina para celebrar de forma original as sonoridades, técnicas e formas de execução das quatro famílias de instrumentos que fazem parte da nossa paisagem sonora:

Cordofones (instrumentos de corda), Aerofones (instrumentos de sopro), Membranofones (instrumentos de percussão), Idiofones (instrumentos de vibração), todos juntos como nunca os (ou) viu.

Partindo de quatro praças distintas |15h30 - Praça da Alegria e dos Cordofones, Praça do Comércio e dos Aerofones, Praça Luís de Camões e dos Membranofones, Praça do Martim Moniz e dos Idiofones - em desfile rumo ao Rossio de todos os fones, num espectáculo sonoro singular e revelador da nossa identidade e da riqueza do nosso Património Cultural Imaterial (PCI).

A Fundação INATEL, cumprindo a sua missão de entidade responsável pela salvaguarda do PCI, promove a 1ª edição do É DE FONES! consagrado à valorização do património musical coletivo, com a participação de músicos, profissionais e amadores, tocadores populares, professores e alunos de música, concretizando-se numa verdadeira invasão da cidade pelos instrumentos musicais tradicionais, enriquecida pela diversidade sonora do território português.

PROGRAMA

15h30
Concentração de tocadores na Praça da Alegria, na Praça do Martim Moniz, na Praça do Comércio e na Praça Luís de Camões
Início dos cortejos rumo ao Rossio de Todos os Fones

16h00
Praça da Alegria e dos Cordofones
Casa do Povo de Corroios
Grupo de Cavaquinhos do Louriçal
Pedro Mestre e Campaniças

16h15
Praça do Comércio e dos Aerofones
Associação Gaita-de-Foles
Concertinas do Vale do Tejo
Escola de Música Tradicional do Centro Cultural Alto do Moinho
Gaitas da Golegã da Associação Cultural Cantar Nosso
Xuventude de Galicia

16h35
Praça Luís de Camões e dos Membranofones
GigaBombos do Imaginário da Associação Cultural Teatro Imaginário
Grupo de Adufeiras da Casa do Povo de Paul
Orquestra de Percussão Eclodir Azul

16h50
Praça do Martim Moniz e dos Idiofones
APEM – Associação Portuguesa de Educação Musical
Castanholas de Freamunde – Pedaços de Nós
Chocalheiros de Vila Verde de Ficalho
Grupo das Pedrinhas de Arronches
Orquestra de Canas Rachadas de Aveiras de Cima
Trupe da Cana Rachada

17h20
Rossio de Todos os Fones
Concerto dos Gaiteiros de Lisboa (Embaixadores) e Amélia Muge (Guardiã)

18h00
Rossio de Todos os Fones
Concerto com todos os tocadores dirigidos pelos Gaiteiros de Lisboa (“Embaixadores”)

Percursos dos Desfiles
- Praça do Comércio | Arco da Rua Augusta | Rua Augusta | Rossio
- Praça do Martim Moniz | Rua Dom Duarte| Praça da Figueira| Rua do Amparo | Rossio
- Praça da Alegria | Avenida da Liberdade | Praça dos Restauradores | Rua 1.º de Dezembro, Praça Dom João da Câmara | Rossio
- Praça Luís de Camões | Largo do Chiado | Rua Garrett | Rua do Carmo | Rossio


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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14647: Agenda cultural (401): Apresentação do livro "Nós Enfermeiras Paraquedistas", coordenação de Rosa Serra, dia 29 de Maio de 2015, pelas 17 horas, no Clube Militar de Oficiais de Setúbal, Praça do Bocage - Setúbal

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14649: Os nossos seres, saberes e lazeres (95): Se fosse presunto... (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com data de 17 de Maio de 2015, com um trecho do seu próximo livro, uma autobiografia, ainda sem nome.

Amigo Carlos:
Tenho o gosto de te comunicar que estou a escrever um novo livro, de cariz autobiográfico, cujo título ainda, por enquanto, não vou divulgar. É um projecto que visa, sob a forma de contos, descrever essencialmente tempos da minha infância e juventude, retratando, ao mesmo tempo, a vida daqueles tempos, no interior profundo transmontano, Folgares, Freixiel, Vila Flor, nos aspectos social, económico, religioso e cultural, entre outros aspectos. O "Panelo de barro preto", já publicado no blogue, integra este trabalho.
Envio-te em anexo um pequeno excerto do mesmo livro, já em fase adiantada, caso o queiras publicar na nossa "tabanca", para conhecimento de toda a tertúlia.
Envio-te também em anexo uma fotografia para ilustração.
Ao fazer este anúncio, é o assumir de um compromisso para não me dar à preguiça na prossecução e conclusão deste modesto projecto.

Um abraço
Manuel Sousa


Se fosse presunto...


"...Assim fui crescendo nesta azáfama da vida dura do campo até à minha chamada para o cumprimento do serviço militar.
Em campanha, na guerra colonial na Guiné, durante um mês de férias em Bissau, em Janeiro de 1974, tirei a carta de condução.

Regressei em Agosto desse ano apetrechado com este instrumento de trabalho e havia que retomar o ritmo, quer em casa dos meus pais, quer naqueles trabalhos sazonais em Freixiel, interrompido por aquela obrigação militar.
Voltei a integrar um rancho de azeitoneiros logo em Dezembro desse ano, a trabalhar numa das casas mais ricas de Freixiel, o senhor Ernesto Lima, que além dos olivais que possuía onde trabalhámos também tinha um lagar de azeite lá na aldeia para a transformação da azeitona, quer da sua colheita, quer a que se produzia na aldeia e noutras aldeias circunvizinhas, aliás, para quem quase sempre trabalhei durante a minha adolescência e juventude até ir para a tropa.

 Manuel Luís R. Sousa na apanha da (sua) azeitona

Conhecendo-me como conhecia e sabendo que já tinha a carta de condução, entregou-me logo uma carrinha Bedford, azul, de caixa aberta, de 3500Kg, para o transporte do pessoal para os olivais e da azeitona para o lagar ao fim do dia.

A partir daí, à noite, levava a carrinha para a minha aldeia, transportando toda aquela minha gente, que antes, como contei, andava a pé, e no dia seguinte voltávamos ao trabalho já com aquela comodidade.
Uma bênção para toda a gente, ter um motorista no grupo!

No primeiro dia que procedi ao transporte da camarada de regresso à minha aldeia, cerca de vinte pessoas, o senhor Ernesto Lima, preocupado, sabendo da minha pouca experiência e sendo a estrada que liga as duas aldeias muito sinuosa, íngreme e com curvas e contra curvas, além de algum gelo que se acumulava em alguns lugares, encarregou um motorista de Freixiel, que eu conhecia bem e de quem era amigo, com mais experiência para me acompanhar, para se inteirar do meu desempenho da condução naquelas condições, seguindo ele, o patrão, atrás, no carro dele. A viagem correu bem até ao cimo da encosta, no percurso de cerca de seis quilómetros, e chegámos assim à minha aldeia.
Regressou então o patrão e aquele motorista, o Chico António, a Freixiel no carro dele, ficando eu com a carrinha em cima para no dia seguinte transportar o pessoal para o trabalho.
Nesse mesmo dia seguinte, quando já descia a meio do percurso, verifiquei que o senhor Ernesto Lima, ainda preocupado, foi ao meu encontro no seu automóvel, seguindo atrás de mim depois até Freixiel, decorrendo a viagem sem qualquer problema.

Ambos tivemos sempre uma relação quase afectiva que ia para além da equidistância entre patrão e trabalhador, como, aliás, se pode verificar na sua preocupação em relação a mim que acabei de descrever. Sempre foi muito afável comigo nas nossas relações laborais, e não só. Estou-lhe eternamente reconhecido por isso.
A adaptação à condução da carrinha decorreu relativamente rápido e, passados alguns dias de se ter iniciado a apanha da azeitona, por ordem do patrão, deixei de fazer parte da camarada de azeitoneiros e fui incumbido de, acompanhado de um ajudante, o senhor Inácio, também da minha aldeia, proceder à pesagem da azeitona nas aldeias mais próximas e transportá-la na carrinha para o lagar para a transformação, entregando depois o azeite aos clientes.

O meu ajudante era uma pessoa com cerca de cinquenta anos de idade, de baixa estatura, de rosto miúdo e moreno, rijo, bem disposto e com muito sentido de humor! Tinha como missão transportar os sacos de azeitona às costas no local da recolha até à carrinha e depois da carrinha até à "tulha" no lagar.
Vergado debaixo daqueles grandes sacos de lona, com cerca de oitenta quilos, o senhor Inácio quase desaparecia. Não se via literalmente. Eu, sobre a caixa de carga da carrinha, ajudava-o a pôr os sacos às costas e, de vezes em quando, para o aliviar um pouco, carregava um saco ou outro.
O senhor Inácio, já muito vivido, e como não era o primeiro ano em que ele fazia aquele trabalho com outros motoristas, teve o cuidado de me prevenir, sendo eu novato naquelas andanças, que era costume os agricultores onde íamos buscar a azeitona a essas aldeias em redor, que ele já conhecia, aquando do final do carregamento da azeitona oferecerem um "taco", dizia ele.

Assim, no dia a dia, naquelas aldeias, Meireles, Vilas Boas, Roios, Samões, etc. no final do carregamento, as pessoas, muito francas, convidavam-nos a entrar em casa para comermos o tal "taco", altura em que, quase sempre, à socapa, o meu ajudante João Inácio me piscava o olho, como a dizer-me que era verdade o que antes me tinha dito.
Entrávamos então e, à boa maneira transmontana, eram postos no braseiro da lareira umas linguiças ou salpicões, acabados de tirar do estendal do fumeiro, que mais parecia um tecto falso da cozinha, que degustávamos depois de assados com bom pão centeio e vinho da casa.
Confirmei então que era assim, quase diariamente, a ponto de não comermos o nosso farnel que transportávamos no porta-luvas da carrinha.

 Uma merenda bem melhor que um "taco"

Um dia, no final do trabalho, regressámos à nossa aldeia, eu e o meu ajudante Inácio, dando também "boleia" a um rapaz lá da terra, muito mais novo do que eu, o António "Palancho", que trabalhava no lagar.
Nessa altura já a apanha da azeitona do patrão tinha terminado, embora o lagar continuasse a trabalhar, não tendo, por isso, a camarada dos azeitoneiros para transportar. O percurso de regresso a casa foi diferente do habitual, bastante mais longe, para passarmos por duas aldeias, Samões e Seixo de Manhoses, para entregarmos azeite de clientes.

Depois da entrega em Samões, em casa de um tal senhor Joaquim Madureira, foi cumprido o ritual habitual: presunto, pão e vinho na mesa com que todos os três nos saciamos com a voracidade natural do final de um dia desgastante de trabalho.
Partimos depois para Seixo de Manhoses entregar a colheita de azeite de um padre. Chegámos. Ele não estava em casa. Fomos recebidos por uma senhora ainda jovem. Não sei se era empregada ou familiar.
Abriu-nos a porta dos baixos duma casa alta, em granito, bem cuidada, e ali descarregámos o azeite num bidão. Terminada a entrega, a senhora, simpaticamente, com aquela hospitalidade transmontana, perguntou-nos se queríamos beber um copinho de vinho.
Antes que eu e o António "palancho" recusássemos, porque não éramos grandes bebedores e tínhamos acabado de comer e beber em Samões, o meu amigo Inácio, com a piscadela de olho habitual que me dirigiu, "atacou" logo:
- Bebia-se um copito..., se fosse com uma azeitonita...
- Que não seja por isso... subam, por favor.
Respondeu logo a senhora, franca e expedita.

Subimos então umas escadas altas em granito e entrámos numa grande cozinha, onde a senhora nos acomodou convidando-nos a sentar junto à fogueira que crepitava na lareira, num ambiente agradável e aconchegante, comparando com o frio que se fazia sentir na rua naquela época do ano.
Encontrava-se ali deitado, regalado ao calor da fogueira, um corpulento cão perdigueiro.

A nossa anfitriã colocou uma mesa pequena à nossa frente, coberta com uma toalha branca, onde dispôs um pão, uma malga de azeitonas e uma caneca de vinho, para que os três comêssemos e bebêssemos, deixando-nos ali sozinhos enquanto se ocupava nas lides da cozinha.

Eu e o António "Palancho", como não tínhamos fome, fomos debicando um pedacinho de pão uma azeitona por uma questão de cortesia em relação à hospitalidade da senhora. Fomos acometidos por um ataque de riso, que mal conseguimos disfarçar, vendo o nosso amigo Inácio também a debicar, a mastigar em seco, a olhar de soslaio para a senhora, a ver se trazia algo mais suculento, que era o fito dele.
Mas..., nada.

O cão perdigueiro, esse sim, é que estava com apetite, ávido de nos tirar a comida da mão.
Então o amigo Inácio, continuando visivelmente a engolir em seco, pegou num pedacinho de pão, atirou-o ao ar na direcção do cão e este com uma infalível precisão logo o apanhou no ar e o abocanhou.
Mais uma e outra vez e o cão não falhava. Eu e o António já estávamos ansiosos para sair dali porque estava a ser insuportável aguentar o riso, sabendo as intenções do Inácio.
Para cúmulo este pegou numa azeitona, atirou-a ao cão, e este, da mesma maneira, tal como fazia ao pão, com a mesma avidez, a deglutiu. Perante esta fome canina, o Inácio murmurou em sussurro:
- Se fosse presunto...!

Pronto. Foi um descalabro. Não conseguimos disfarçar mais aquele momento hilariante que rimos, rimos, abertamente, apressando-nos a dizer à senhora que o motivo da risada foi a graça que encontrámos ao cão. Agradecemos, despedimo-nos e saímos rapidamente. A caminho da aldeia, de regresso a casa, os três, continuámos a divertir-nos com aquela peripécia, com a certeza de que o Inácio, daquela vez, não conseguiu comer presunto.

O amigo Inácio já faleceu. Que Deus o tenha. Foi um privilégio, com aquela idade, com vinte e três anos, ter este estágio de vida orientado por ele..."

17 de Maio de 2015
Manuel Sousa

Fotos: © Manuel Luís Rodrigues de Sousa
Legendas da responsabilidade do editor
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14641: Os nossos seres, saberes e lazeres (94): Bruxelles, mon village (Parte 6) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14648: Meu pai, meu velho, meu camarada (46): O meu avô, cruz de guerra de 1ª classe, esteve na I Grande Grande, nas margens do rio Rovuma, norte de Moçambique.... Quando regressou, trouxe com ele um "filho da guerra", que seria mais tarde o meu pai, que eu sempre adorei e adoro (Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; membro do Lions Clube Lusofonia)

1. A propósito do tema "Filhos do Vento", o Jaime Machado mandou-nos ontem a seguinte mensagem:


Caro Luis

Este assunto (*) diz-me particularmente respeito.

Meu pai foi trazido do norte de Moçambique. Nasceu de um "amor" em tempo de guerra. Nasceu na  I Guerra Mundial,  no norte de Moçambique, em Quelimane.

O meu avô (cruz de guerra de 1ª classe) esteve lá no teatro de guerra nas margens do rio Rovuma.

Quando regressou, num barco militar(!),  trouxe com ele o meu pai que eu adorei e adoro.

Abraço, Jaime Machado


PS - Junto foto do meu avô, de nome Antonio Rodrigues Machado. Prometo mandar mais alguns dados sobre os meus familiares.(**)


[Jaime Machado vive em Matosinhos, é membro do Lions Clube Lusofonia; foi  alf mil cav, cmdt  do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; foto atual à direita]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14642: Agenda cultural (400): Conferência "Filhos da Guerra", Festival Rotas & Rituais, 2015, Lisboa, Cinema São Jorge, 6ª feira, 22, 19h30... Participantes: Catarina Gomes (moderadora), Margarida Calafate Ribeiro (Os netos que Salazar não teve), Luís Graça (Que guerra se conta aos filhos?) e Rafael Vale e Reis (Filhos do vento: direito ao conhecimento das origens genéticas?)... Entrada gratuita... Às 18h, inauguração de exposição sobre o tema

Guiné 63/74 - P14647: Agenda cultural (402): Apresentação do livro "Nós Enfermeiras Paraquedistas", coordenação de Rosa Serra, dia 29 de Maio de 2015, pelas 17 horas, no Clube Militar de Oficiais de Setúbal, Praça do Bocage - Setúbal

APRESENTAÇÃO DO LIVRO "NÓS ENFERMEIRAS PARAQUEDISTAS", DIA 29 DE MAIO DE 2015, ÀS 17 HORAS NO CLUBE MILITAR DE OFICIAIS DE SETÚBAL


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Nota do editor

Último poste da série de 21 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14642: Agenda cultural (400): Conferência "Filhos da Guerra", Festival Rotas & Rituais, 2015, Lisboa, Cinema São Jorge, 6ª feira, 22, 19h30... Participantes: Catarina Gomes (moderadora), Margarida Calafate Ribeiro (Os netos que Salazar não teve), Luís Graça (Que guerra se conta aos filhos?) e Rafael Vale e Reis (Filhos do vento: direito ao conhecimento das origens genéticas?)... Entrada gratuita... Às 18h, inauguração de exposição sobre o tema

Guiné 63/74 - P14646: Notas de leitura (716): Guiné-Bissau. um País Adiado, por Manuel Vitorino, Orfeu (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
Se bem que Manuel Vitorino tenha passados escassos meses na Guiné, ficaram-lhe as lembranças, quis voltar, quarenta anos depois.
Chegado a Bissau, usou a Casa Emanuel, uma ONG, como placa giratória para as suas deambulações. Está ciente que há um voluntariado de jovens portugueses que serve de cabouco da política de saúde e qualidade de vida, sem ele tudo seria ainda pior. Por vezes desalenta com o afundamento a que votaram infraestruturas e equipamentos cruciais. É a ajuda externa e os programas humanitários que evitam que os indicadores sejam menos trágicos do que a realidade permite ver. E fica a esperança por dias melhores. Como ele escreve, aquele povo é um património admirável, um crisol de afabilidade e cultura.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau, um País Adiado (2)

Beja Santos

Como se referiu anteriormente(*), “Guiné-Bissau, um País Adiado”, por Manuel Vitorino, fotografia de Hugo Delgado, Orfeu, livraria portuguesa e galega, Bruxelas, Bélgica (www.orfeu.be e orfeu@skynet.be), é o testemunho de alguém que combateu na Guiné, aonde voltou 40 anos depois. O autor, experimentado jornalista, escreve em jeito de abertura: “Algumas das crónicas foram escritas ao correr dos dias na Guiné-Bissau – entre novembro e dezembro de 2013. O blogue Mau tempo no Canal foi o primeiro porto de abrigo, espécie de caderno de apontamentos para memória futura. O esboço do trabalho navegou por aqui, entre notas de reportagem, episódios, atmosferas, entrevistas, testemunhos vividos num país cheio de contradições e desigual, uma elite política alardear públicas virtudes e a fazer negócios privados. É um retrato sombrio e trágico. Mas foi aquele que encontrei e observei durante a minha estadia no território”.

Voltemos à cooperação chinesa, tem grande peso. Pequim terá seguramente alguma desconfiança quanto à fidelidade do alinhamento político-diplomático de Bissau, não seria a primeira vez que se reconheceria Taiwan como representante da China. Lembro perfeitamente de ver a cooperação de Taiwan a funcionar em 1991, refizeram todo o tapete de alcatrão entre Bissalanca e Bandim, com criteriosas valetas, despenderam seguramente uma fortuna, e com a fatalidade costumeira não houve manutenção, cedo se regressou aos buracos e à completa degradação. Que cobiçam os chineses na Guiné? Os chineses cobiçam as pescas, as areias pesadas com destino ao fabrico de vidro à prova de bala e também importante para fabricar componentes eletrónicos, gostam imenso de madeira exóticas. O autor fala em operações dúbias quanto às areias, ao tempo do governo presidido por Carlos Gomes Júnior a concessão aos chineses foi outorgada aos russos. Escreve Manuel Vitorino: “O contrato com a China foi firmado em 2008 por um período de 8 anos e assinado com a empresa chinesa West Africa Union, Investiment Company. Objetivo: proceder à execução de trabalhos de extração de areia pesada na zona de Varela. Porém, em janeiro de 2014, o governo saído do golpe de Estado anulou o contrato e sob a proteção de militares colocou uma empresa de capitais russos a fazer a mesma empreitada”. A China está no comando da exploração e abate de madeiras preciosas. O autor presume que as licenças foram dadas pelos militares saídos do golpe de 2012.

Manuel Vitorino procura e encontra portugueses indefetivelmente ligados à Guiné. João Marques Dinis, 70 anos, a viver em Bafatá, cumpriu comissão militar na Guiné, casou em Portugal, fez as malas e voltou. Divide o seu tempo a gerir uma escola de condução e o restaurante no centro de Bafatá, hoje uma cidade quase fantasma. Carlos Martinez, nado e criado na Guiné, foi empresário em Londres mas não resistiu à paixão dos lugares onde se criou, voltou. Mas está profundamente cético: "A curto prazo vamos sobreviver. As eleições não vão resolver todos os males do país, quanto muito servirão de alavanca para o tão desejado desenvolvimento. Mas como é que um país poderá captar investimentos sem luz elétrica, água, rede de esgotos, salários com atraso na função pública, professores em greve, taxas de importação muito altas. Já reparou quanto custa viver em Bissau?”.

E temos Patrício Ribeiro, 66 anos, técnico de energias. Tive a felicidade de o conhecer quando estive na Guiné, em 2010. O Patrício Ribeiro percorre o país de lés-a-lés na construção de estruturas de painéis solares, energias fotovoltaicas, instalação de bombas de água solares, etc. Fundou a sua própria empresa, tem uma inquestionável reputação. Comentou ao autor o seguinte: “O grande problema da Guiné-Bissau reside na falta de energia elétrica. Na maior parte dos casos trabalhamos no fio da balança, obrigados a percorrer locais de difícil acesso e isolados do mundo para proceder à montagem de painéis solares nas escolas, centros de saúde. É muito gratificante dar luz e água a quem nunca teve esses bens essenciais à vida”. E confessa num misto de motivação e desalento: “A Guiné ainda é uma aventura e sem aventura não consigo viver. Irei continuar por aqui até poder. Já trouxe o meu filho para efetuar a transição de conhecimentos e experiências. Mas a Guiné é um país adiado. As dificuldades de hoje são as mesmas que encontrei quando cheguei há trinta anos. Vou vivendo assim: um pé cá e outro lá”.

O autor não escusa críticas duras à cooperação portuguesa que nos últimos 40 anos promoveu centenas de projetos de cooperação, acha que é uma cooperação sem audácia, sem escrutínio sério e eficiente. Até ao golpe de Estado de 2012, a cooperação portuguesa teve ao seu dispor cerca de 15 milhões de euros por ano. Manuel Vitorino dá um exemplo do que considera desperdício e dinheiro mal gasto: em Buba construiu-se um mercado de frutas e legumes na parte alta da cidade sem dialogar com as populações, o povo montou ao lado um mercado rudimentar e o mercado construído de raiz está desocupado, foram uns milhares de dólares deitados à rua. Mas o autor também tece críticas em empreendimentos japoneses e outros.

Descreve uma visita ao Hospital Simão Mendes como uma descida aos infernos: no bloco principal estão as enfermarias sem privacidade alguma, a maior parte acolhendo pessoas em fase complicada de vida, portadores de HIV, hepatites, doentes do foro oncológico – não existe quimioterapia ou radioterapia – outros com complicações cardíacas, respiratórias, pulmonares. Faltam seringas, material cirúrgico, autoclaves de esterilização. O aparelho de raio X não funciona durante a noite, o laboratório de microbiologia só existe no organigrama. O serviço de maternidade é chocante, vêem-se grávidas em filas de espera, outras deitadas em macas improvisadas. Com ajuda divina, fazem-se cesarianas, mas as incubadoras não chegam para os recém-nascidos, por vezes estão três bebés de mães diferentes ao mesmo tempo. E tece duras críticas a obras mal feitas: “Há quatro anos o hospital voltou a ser reabilitado. Sofreu obras no telhado, paredes, interiores, gabinetes, serviços de Urgência. O dinheiro veio do Fundo do Petróleo. Quando foi ligada a rede de água o edifício ficou imediatamente inundado. Durante a empreitada esqueceram-se de colocar as torneiras nos locais próprios e a água começou a jorrar por todos os lados”. Mais adiante, ainda a propósito da saúde, tece outro comentário: “Num relatório técnico elaborado em 2012, após a visita do Ministro da Saúde à zona Sul nomeadamente aos centros de saúde de Quebo, Sangonhá, Cacine, Tite, Djabadá, Buba, Mato Farroba e Catió, chegou-se à conclusão de que a maioria dos centros de saúde não possui qualquer meio auxiliar de diagnóstico e o leque de testes realizado é mínimo. Só alguns, poucos centros de saúde têm condições para executar o exame direto da tuberculose e apenas o laboratório instalado em Buba tem equipamento para fazer bioquímica e hemograma”. Manuel Vitorino não esconde a admiração por um povo afável, hospitaleiro, sensível e culto. Este povo, diz ele é o maior património da Guiné.

Chegou a hora de partir, adeus e até ao meu regresso. Descreve a ONG Mundo a Sorrir e conta a história maravilhosa da Irmã Isabel Johannig, missionária da Costa Rica e fundadora da Casa Emanuel. A ONG Mundo a Sorrir será a beneficiária da venda deste livro.

Vale a pena insistir que se trata da descrição mais recente e mais acabada que se conhece da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

(*) Poste anterior de 18 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14628: Notas de leitura (714): Guiné-Bissau. um País Adiado, por Manuel Vitorino, Orfeu (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14630: Notas de leitura (715): Ao ler o livro “Nós, Enfermeiras Paraquedistas” assaltou-me de novo, e mais uma vez, aqueles dias então por lá (sobre)vividos (Armando Faria)

Guiné 63/74 - P14645: Parabéns a você (908): Luciano Jesus, ex-Fur Mil Art da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14638: Parabéns a você (907): Mário Pinto, ex-Fur Mil Art da CART 2519 (Guiné, 1969/71)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14644: (De)caras (21): Em defesa da artilharia e dos artilheiros... e contra o lugar-comum "Importante é a versão, não o facto"... (Vasco Pires, bairradino em terras do Novo Mundo, fazendo também aqui prova de vida, sob o sagrado poilão da Tabanca Grande)


Vasco Pires, um artilheiro de corpo inteiro, fazendo aqui prova (pública) de vida, a meio corpo...



1. Mensagem do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Vasco Pires, que no passado século, por volta de 1970/72, lá no cu de Judas, na África profunda, em terras de Tombali, num sítio chamado Gadamael,  foi bravo artilheiro, comandante do 23.º Pel Art, numa guerra que já se varrei da memória dos povos...

Data: 19 de maio de 2015 às 16:19

Assunto: ...Ainda a Artilharia.

"Importante é a versão, e não o facto " (Anónimo).


Caríssimos Carlos e Luis, 

Nós (Artilharia), fomos (somos) poucos e quase esquecidos, uma meia dúzia, talvez, nesta "Grande Tabanca"

Ultimamente as referências que tenho lido, aqui e em outras média, falam de fogo amigo, folclorizando e apequenando a atuação da Artilharia.

Tenho a convicção que,  além de um ou outro estudioso, só nós mesmos lemos os nossos escritos.
Mais tarde, um ou outro antropólogo vai dar uma olhada na nossa versão da História.

Será justo, passar a ideia de Artilheiros relapsos ou trapalhões?

O GAC7 (GA7), teve trinta e dois Pelotões espalhados pelo TO da Guiné, apoiando tropas debaixo de fogo IN, atingindo importantes alvos, quer por ordem superior, quer como fogo de contra-bateria, por vezes apoiando outros aquartelamentos, até tiro direto, para impedir supostas invasões do quartel.

Como somos minoria, a nossa voz quase não é ouvida, mesmo ténue, aqui fica registrada a minha.

Forte abraço.
E siga a Artilharia (que na Guiné estava parada)

VP
Ex-soldado de Artilharia

PS - Conforme solicitado pelo nosso editor-chefe, segue em anexo foto atual.

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Guiné 63/74 - P14643: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (7): O acidente grave e único do ex-furriel enfermeiro Antunes

1. Em mensagem do dia 16 de Maio de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais uma Memória da sua CCAÇ 2616.


Memórias da CCAÇ 2616

7 - O acidente grave e único do ex-furriel enfermeiro Antunes




Na nossa companhia, a CCaç 2616, em 1970, em Buba, havia dois furriéis que eram uns grandes cómicos, num português mais castiço, eram uns grandes pândegos. Por sorte minha um deles pertencia ao mesmo pelotão que eu, ajudou-me muito, melhor dizendo soubemos entender-nos bem e colaborar, como grandes amigos, nas tarefas que nos eram impostas.

Neste caso falo do Zamith Passos que para lá do cumprimento eficaz das suas responsabilidades de camaradagem e comando, tinha um humor e graça quase permanentes que ajudavam tanto à boa disposição de todos. Magro e de estatura entre o baixo e o médio, falando de grandes cómicos do cinema mudo, podia ser o Estica.

Bem, ao outro grande cómico não se podia chamar Bucha, pois ele era de estatura média, sem ser magro também não era gordo.
Tinha igualmente muita piada que ia distribuindo com remédios, pomadas e injeções que administrava aos militares ou à população nativa na enfermaria. Era o nosso furriel enfermeiro, José Alberto G. Antunes.

Além de camaradas alegres e brincalhões, que ajudavam tanto todos os outros a suportar aquele exílio forçado, eram, entre eles, dois grandes amigos.
Talvez por serem amigos, durante muito tempo pensei ser essa a relação causal para o facto de o Antunes ter saído para o mato com o nosso pelotão num dia de Junho de 1970. Posteriormente alguém me terá dito, que ele saiu connosco porque havia dois cabos enfermeiros de férias.

Por uma ou outra razão, ou por ambas nesse dia o Antunes, furriel enfermeiro saiu connosco. Ao atravessar o rio Grande Buba, no seu teminus, na maré baixa, com água até aos joelhos, houve um acidente com o RPG-7. A granada que estava dentro saiu disparada, atravessou o corpo do furriel enfermeiro, no baixo- ventre e foi explodir na outra margem.

Do que pude ver e do inquérito que foi feito sobre o acidente recordo de se falar que o soldado que transportava a arma terá escorregado e que ao cair na água ou ele ou um curto circuito provocado pela água terá originado o disparo da granada, comprida, mas com pouco diâmetro.

Foi uma situação aflitiva para todos os camaradas do pelotão, que dadas as circunstância e o estado do Antunes, ficaram muito emocionados e temeram pela vida dele.
Naturalmente a situação tornou-se mais aflitiva para ele, que nunca perdeu a consciência, estava cheio de dores e com ferimentos graves no baixo ventre e temia muito pela sua gravidade. Emocionou-me muito ouvi-lo despedir-se da mãe e da namorada nessa hora difícil e incerta.

Estávamos a cerca de dois a três quilómetros do quartel.

Entretanto tínhamos comunicado, via rádio, para o quartel e os fuzileiros vieram rapidamente e levaram-o num zebro, e pouco depois foi evacuado para o Hospital de Bissau, donde foi posteriormente para o Hospital de Lisboa.

Soubemos depois que felizmente o Antunes se tinha safado, provavelmente terá andado a bater à porta de S. Pedro que lhe terá recusado a entrada por já lá haver muitos cómicos, por não ter ido acompanhado com o seu duplo, o Zamith Passos, nem ter levado o furriel Varela, o grande cineasta do cinema mudo, a preto e branco, que fazia a cobertura de todos os grandes acontecimentos sociais e militares em Buba e penso que ainda fazia sessões fotográficas de borla para as beldades da terra.

A extensão dos males que sofreu nunca soubemos muito bem.

Passados meses após o meu regresso encontrei-o em Lisboa, por um feliz acaso da sorte. Estava feliz já tinha um filho da Graça, sua mulher, ao tempo namorada, de quem o ouvi despedir-se naquela hora aflitiva em Buba. Falou-me nisso não só pela alegria de ser pai mas também pelo receio que teve de ficar impotente pois a granada passou muito perto de vários órgãos vitais, entre eles os sexuais.
Meus amigos, o Antunes para cantor de ópera "castrato" já estava velho. Já não teria voz para encantar o público e ter aquele grande êxito, que pudesse compensar essa perda tão importante para um macho lusitano.
Depois vim para o norte, mais próximo das minhas origens e perdi o contacto com este grande camarada e amigo.

Nesse tempo, mais próximo dos tempos da Guiné, a minha reação e penso que a de muitos camaradas era esquecer e evitar até os amigos com quem tínhamos convivido tão perto e quase diariamente.
Tínhamos boas recordações de muitos e grandes amigos mas vinham sempre associadas a eles desgostos de perdas de outros, desgostos associados a um tempo perdido e uma derrota que já tínhamos assumido antes dessa batalha inglória.

Confesso, nunca o disse a ele, que uma vez vi o meu grande amigo Zamith Passos em Viana do Castelo, já passados talvez dez anos, depois do meu regresso, e evitei falar com ele.
Zamith Passos que reencontrei há pouco mais de um ano tinha perdido o contacto do Antunes há já longos anos. Falamos recentemente nele e como seria agradável que ele estivesse presente no almoço da companhia no dia 2 de Maio.
Por um acaso de inspiração rara, eu perguntei-lhe se sabia o nome dele completo.

2 de Maio de 2015 - Convívio da CCAÇ 2616

Concluindo o Antunes foi descoberto e está cá bem vivo e com o humor de sempre a confraternizar com os camaradas da companhia que puderem estar presentes.

Apesar do grande ferimento e de todo sofrimento e incomodo associado, este nosso camarada, teve uma sorte danada.
Segundo ouvi contar, terá sido, ele poderá confirmar isso, o único caso, em toda a guerra do Ultramar, de alguém que conseguiu sobreviver a uma situação semelhante.

 2 de Maio de 2015 - Ex-Fur Mils Antunes e Zamith Passos

 2 de Maio de 2015 - Ex-Fur Mil Enf Antunes e ex-Alf Mil Francisco Baptista

Um brinde ao Antunes, à vida, à alegria e à saúde dele e de todos os camaradas!

Com alguma emoção li este texto no almoço da companhia, com o Antunes ao meu lado, com um ar mais saudável do que a maioria dos camaradas.

 2 de Maio de 2015 - O ex-Soldado Granja e o ex-Alf Mil Francisco Baptista

2 de Maio de 2015 - Os ex- Alf Mils Baptista e Folque

Houve outros casos de mortos ou feridos mas pessoalmente, por circunstâncias várias nunca acompanhei o sofrimento de ninguém como o deste camarada.

Os mortos por minas ou balas, perto da Bolanha dos Passarinhos, nem um grito de despedida soltaram.

Como num filme antigo a preto e branco, a minha memória parece conservar ainda, em câmara lenta, alguns desses episódios tristes.

Por hoje já basta.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13848: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (6): Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

Guiné 63/74 - P14642: Agenda cultural (401): Conferência "Filhos da Guerra", Festival Rotas & Rituais, 2015, Lisboa, Cinema São Jorge, 6ª feira, 22, 19h30... Participantes: Catarina Gomes (moderadora), Margarida Calafate Ribeiro (Os netos que Salazar não teve), Luís Graça (Que guerra se conta aos filhos?) e Rafael Vale e Reis (Filhos do vento: direito ao conhecimento das origens genéticas?)... Entrada gratuita... Às 18h, inauguração de exposição sobre o tema


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Nova Lamgo > CCS/BART 6523 (1973/74) > O fur mil op esp José Saúde e a "menina do Gabu"... que não chegou a conhecer o pai..- Terá morrido aos 12 anos, segundo informação da mãe (foto abaixo).




Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Nova Lamgo > CCS/BART 6523 (1973/74) > A mãe da "menina do Gabu"


Fotos (e legendas): © José Saúde  (2011). Todos os direitos reservados.


(...) Era linda! Por ironia do destino não consigo lembrar-me do seu nome. Sei, e afirmava o povo com certezas absolutas, que era filha de um camarada, furriel miliciano, que anteriormente esteve em Nova Lamego. Era uma criança dócil. Meiga. Recordo que a sua mãe era uma negra, muito negra, com um rosto lindo e um corpo divinal. Conheci-a e verguei-me perante a sua sensibilidade feminina. Da menina, agora feita senhora, nunca mais soube.

Os seus cabelos eram loiros. Maravilhosos. De cor morena, e de olhos negros, a criança, ainda de tenra idade, era de facto graciosa. Simpática, e de sorriso aberto, a menina espalhava simpatia nos braços de um qualquer soldado… desconhecido. Perdi algum tempo a deliciar-me com a sua meiguice. Dei-lhe o carinho dos meus braços e o seu sorriso tenro transmitiu-me um infinito afecto. Hoje, lamento a ausência do seu nome. Ficou retida na minha memória a sua pequena fisionomia. A sua imagem dócil deixou-me saudades. A menina foi, afinal, mais um dos “filhos do vento” que marcaram os conflitos em África.


(...) Do pai nada se soube. Partiu. A mãe, uma cidadã comum de uma tabanca, conviveu de perto com uma menina nada parecida com outros meninos com os quais partilhava brincadeiras de crianças. E assim terá crescido. Com a minha saída de Nova Lamego perdi-lhe o rasto. Não sei qual terá sido o seu futuro. Será, hoje, uma mulher ilustre na Guiné? Terá procurado futuro num país distante? Ter-se-á encontrado com o seu pai? Será que ele a reconheceu como filha? Será que sua mãe, outrora esbelta e linda, fez dela uma mulher digna no seio do seu clã? Será que estamos agora na presença de uma cidadã guineense com nome internacional? Enfim, um rol de interrogações que me conduz à decência de procurar no infinito do horizonte alvíssaras da sua presença. Fica o pedido! (...) (*)



1.  Festival Rotas & Rituais, 2015 > Filhos da Guerra | Conferência

Lisboa | Cinema São Jorge
6ª feira, 22 de maio de 2015 | 19h30
Sala Montepio


Filhos da Guerra

Sinopse > Entre 1961 e 1975, cerca de um milhão de homens portugueses foram enviados para três frentes de batalha, na tentativa de manter um moribundo império colonial. Há uma geração de filhos que cresceu com histórias desta guerra, umas contadas, outras mais ou menos escondidas. Com o passar dos anos, os álbuns de fotografia foram sendo arrumados nas arrecadações de muitas casas portuguesas.

O que trans­mi­ti­ram estes pais sobre as suas expe­ri­ên­cias de guerra?

O que se pode con­tar a um filho? Terão alguns des­tes homens con­tado aos seus filhos por­tu­gue­ses que têm irmãos afri­ca­nos que nunca conheceram?

Nos sítios onde houve guerra, alguns des­tes ex-militares fize­ram filhos a mulhe­res afri­ca­nas. Na altura, havia quem lhes cha­masse por­tu­gue­ses sua­ves, hoje, filhos do vento. São homens e mulhe­res, que eram cri­an­ças e que hoje são adul­tos, e que con­ti­nuam a per­gun­tar “quem é o meu pai tuga?”.

Cata­rina Gomes


FILHOS DE CÁ E FILHOS DE LÁ | CATARINA GOMES

Jor­na­lista do Público há 17 anos e autora do livro Pai, tiveste medo? (edi­ções Matéria-Prima) que reúne doze his­tó­rias sobre a guerra colo­nial vista por filhos de ex-combatentes, sendo tam­bém ela filha de um ex-combatente. Do livro nas­ceu a repor­ta­gem Filhos do Vento. Em 2015, a jor­na­lista rece­beu o Pré­mio AMI – Jor­na­lismo Con­tra a Indi­fe­rença com duas repor­ta­gens, uma sobre o desa­pa­re­ci­mento de um pai que tinha Alzhei­mer (Perdeu-se o pai de José Car­los) e outra sobre his­tó­rias de filhos de doen­tes com lepra sepa­ra­dos dos pais à nas­cença (Infân­cias de Vitrine).


OS NETOS QUE SALAZAR NÃO TEVE ! MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO

Dou­to­rada em Estu­dos Por­tu­gue­ses pelo King’s Col­lege de Lon­dres, é investigadora-coordenadora no Cen­tro de Estu­dos Soci­ais da Uni­ver­si­dade de Coim­bra e res­pon­sá­vel pela Cáte­dra Edu­ardo Lou­renço da Uni­ver­si­dade de Bolo­nha e apoio do Ins­ti­tuto Camões. Das suas publi­ca­ções destacam-se os livros África no femi­nino: as mulhe­res por­tu­gue­sas e a Guerra Colo­nial, Uma his­tó­ria de regres­sos: impé­rio, Guerra Colo­nial e pós-colonialismo e ainda, em con­junto com Roberto Vec­chi, Anto­lo­gia da memó­ria poé­tica da guerra colo­nial. Entre 2007 e 2011, coor­de­nou o pro­jecto Os filhos da guerra colo­nial: pós-memória e representações.


QUE GUERRA SE CONTA AOS FILHOS? | LUÍS GRAÇA

Soció­logo de for­ma­ção e dou­to­rado em saúde pública pela Uni­ver­si­dade Nova de Lis­boa, é inves­ti­ga­dor e pro­fes­sor uni­ver­si­tá­rio, além de direc­tor da Revista Por­tu­guesa de Saúde Pública´(desde 2007). Tem uma página pes­soal na inter­net sobre saúde e tra­ba­lho desde 1999, e desen­volve o blo­gue Luís Graça & Cama­ra­das da Guiné, desde 2004, um caso raro de par­ti­lha de memó­rias e afe­tos entre anti­gos com­ba­ten­tes da guerra colo­nial, com­posto por cerca de 700 membros.


FILHOS DO VENTO – DIREITO AO CONHE­CI­MENTO DAS ORI­GENS GENÉTICAS? |  RAFAEL VALE E REIS

Assis­tente con­vi­dado da Facul­dade de Direito da Uni­ver­si­dade de Coim­bra e inves­ti­ga­dor do Cen­tro de Direito Bio­mé­dico da Facul­dade de Direito, da Uni­ver­si­dade de Coim­bra. Inte­gra a equipa do Obser­va­tó­rio Per­ma­nente para a Adop­ção no âmbito do Cen­tro de Direito da Famí­lia da Facul­dade de Direito de Coim­bra. É autor de O Direito ao Conhe­ci­mento das Ori­gens Gené­ti­cas, publi­cado em livro pela Coim­bra Edi­tora em 2008.



Convite extensivo a todos os amigos e camaradas da Guiné (**)


2. Perguntas ao noss editor Luís Graça

A Catarina Gomes, jornalista do Público, que vai moderar a conferência, e que me comvidou para participar, mandou-me a seguinte mensagem ontem:

Caro professor,

Aqui lhe deixo algumas das perguntas a que gostava que tentasse responder na sua intervenção, que deverá ter 10 a um máximo de 15 minutos. O nosso painel [, Filhos da Guerra,] começa às 19h30, a exposição dos Filhos do Vento inaugura às 18h00.

  • Que guerra se conta aos filhos? 
  • Existe o direito ao silêncio?
  • Será que alguns destes pais contaram aos seus filhos que deixaram ou poderão lá ter deixado filhos?
  • Que relações eram estas entre ex-combatentes e mulheres locais durante a guerra?
  • Têm esses filhos direitos a procurar os seus pais? 
  • Têm estes pais direito a não ser encontrados?

Até sexta.

Catarina Gomes

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Notas do editor:


(...) Confirmava-me, recentemente, o camarada Amílcar Ramos, ex Furriel Miliciano BAA,  residente em Castelo Branco, e meu companheiro da Messe de Sargentos em Gabú, que no ano de 1999 visitou a Guiné e, como é óbvio, o Leste do País, sendo que dessa viagem ressalta uma visita a Bafatá e Gabú, locais onde prestou serviço, tendo então reencontrado velhos amigos e amigas que lhe comunicaram a morte da tal “Menina do Gabú"”.

Dizia-me o antigo camarada que ao ler os meus apontamentos (...) , decidiu contactar e elucidar-me sobre o infeliz desaparecimento daquela pequena flor que ousei trazer à estampa.(...) 


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14641: Os nossos seres, saberes e lazeres (94): Bruxelles, mon village (Parte 6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
O viajante está prestes a regressar, empanturra-se de alguma da muita beleza disponível. A retrospetiva Chagall foi um assombro, asseguro-vos. Comprou-se algum bricabraque, este viajante é adicto de adelos, fancaria avulsa, livros que não interessam a ninguém, até têxteis, fotografias de desconhecidos e quejandos. Para que não haja ilusões, regressa pronto a partir, mal haja oportunidade, tem ali sempre um ancoradouro à sua espera, tudo lhe é familiar, ou quase tudo, já tem manhas por espetáculos a preço módico e há livros a um euro que são um fausto. É por isso que já está cheio de saudades do futuro e avisa solenemente que nessas circunstâncias voltará a fotografar e a comentar, como diário sentimental.

Um abraço do
Mário


Bruxelles, mon village (6)

Beja Santos


Por mim, não me teria custado nada começar o dia na Place du Jeu de Balle, a Feira da Ladra onde é possível encontrar loiça da Vista Alegre, álbuns fotográficos dos anos 1950, fotografias da mítica rainha Astrid, rendas e bordados, entre tanta quinquilharia há por vezes imprevistos que enchem de gozo o acumulador em viagem. Mas não, em vez do Petit Sablon, o viajante vai para o Grand Sablon, mais chique, com lojas de antiguidades de cortar o fôlego, a que é possível encontrar um desenho de Degas, o mais sofisticado mobiliário Art Deco, porcelanas requintadas, arte africana topo de gama, e mais recentemente a arte oriental, os mercadores russos trazem do bom e do melhor. E é no Grand Sablon que está a Igreja de Notre Dame, entro no templo praticamente vazio com a música de Bach em fundo. Percorro a nave central e aqui depara-se numa coluna: “Aqui vinha a rezar Paul Claudel”, foi aqui um dos seus primeiros postos de diplomata, lembrei-me da sua obra-prima “A anunciação feita a Maria”, traduzida por Sophia de Mello Breyner, tenho esta peça de teatro como um dos dez textos fundamentais do século XX. Tirada a imagem, sentei-me a agradecer a Claudel os tesouros que nos legou.


O púlpito de Notre Dame du Sablon é gigantesco, cingi-me a este pormenor, a águia está pronta a escutar uma prédica de sapiência, o Espírito Santo está vigilante, é um daqueles momentos em que se deplora, contrito, que a máquina fotográfica não possua outra pujança para captar todo este trabalho de talha, magnificente.


Temos ao fundo duas pinturas neogóticas, entre finais do século XIX, princípios do século XX. Mas a minha questão de fundo, o meu embevecimento é esta barcaça, o seu assumido grau de ingenuidade, a delícia de dois equilíbrios, o cromático e as figuras, a imagem da Senhora parece que se vai lançar nos ares, daqui a pouco. Saio entusiasmado, estou pronto para mergulhar noutro oceano de religiosidade, o do grande Marc Chagall, ele está aqui muito próximo, nos Museus Reais de Belas Artes da Bélgica.




Como é que é possível ter em exposição mais de 200 telas, aguarelas, esquiços, desenhos representativos de diferentes épocas, provenientes das sete partidas, é que me faz pasmar, só os milhões para segurar os bilhões expostos. Ainda por cima, a retrospetiva Chagall percorre todas as etapas da sua carreira artística, desde as primeiras pinturas em 1908 até aos seus trabalhos gigantescos dos anos 1980. Em grande ecrã, estão aqui os seus temas favoritos: a cultura judaica, as tradições populares, a iconografia de uma aldeia judaica russa, os seus trabalhos à volta da literatura do século XVII, as dimensões da sua pesquisa em torno da luz e da cor. Mas estou absolutamente seguro que andamos todos aos encontrões de sala em sala empolgados por este estilo pessoalíssimo de alguém que andou pela revolução cubista e que rapidamente se individualizou, o Chagall poético, arrebatado, atraído por diferentes religiosidades, alguém que nos leva pela mão e de sala em sala nos deixa de boca aberta. Agora vou descansar os pés, cá fora o dia está magnífico, ando a borboletear pelos jardins e pelas galerias, como uma boa sopa e uma sandes farta-brutos, vou-me lançar noutra exposição de estalo, chama-se Faces Then, são retratos renascentistas dos Países Baixos, estão no Bozar, o Palácio das Belas Artes de Bruxelas, um polivalente que mete teatro, cinemateca, uma sala de música onde podemos ouvir a Maria João Pires ou o Jordí Savall.


É também para mim mistério como aqui se juntam três grandes exposições, a dos tesouros otomanos aparece referenciada como uma das mais importantes exposições do ano. Este é um pormenor de entrada deste palácio luxuoso, bem marmoreado, elegante, vem dos tempos em que a arte era obrigatoriamente servida em templos aparatosos e luxuosos.


Ainda não encontrei explicação para esta apresentação das fainas artísticas como guloseimas visuais. Entramos no templo das Belas Artes, lá em cima já nos acenam três exposições e à entrada somos minuciados com vídeos e instalações, parece a grande feira das imagens. Não resisti a captar este vídeo, o jovem torce-se e retorce-se ao som de World Music. É de questionar se esta avassaladora ocupação dos espaços não acaba por nos distrair da razão fulcral do que aqui nos traz, deixando outros espaços vazios. Enfim, um pouco de conversa fiada.



Entrei num festival de retratos renascentistas, estou atento à ousadia museográfica que permite tirar partido de 50 retratos do século XVI, todos eles provenientes de artistas dos Países Baixos. São, por definição, registos circunstanciais, mas acontece que génios da pintura como Quentin Metsys ou Joos van Cleeve ganharam a imortalidade graças a estas telas de uma grande beleza e cujos pormenores permitem estudar a opulência, a moda, a religiosidade, o valor desta exposição é o saber fazer a síntese entre realismo e idealização, temos aqui uma paleta generosa da gestualidade estética a oscilar entre o protestantismo e o catolicismo, entre o luxo descarado e a pose contida, o estatuto é para ostentar dentro dos cânones da conta peso e medida.


Em finais da Idade Média, aqui se construiu o Hotel Ravenstein, hoje um dos ícones da arquitetura civil de Bruxelas. É contíguo ao Bozar, em frente está um edifício onde durante muito tempo funcionou o Comité Económico e Social Europeu. Mas tratou-se de uma fotografia sentimental. Aquela montra à direita, hoje de uma loja de material discográfico de ponta foi até ao fim do século passado a Galeria Tempera, onde vim tantas vezes, no regresso do dia de trabalho, descansar os olhos diante de sanguíneas, óleos, desenhos ou aguarelas e de onde pude trazer algumas pérolas que espalho pelas minhas paredes, companheiras indefetíveis.


E assim se chegou ao fim das férias. A seguir o almoço, o André Cornerotte leva-me a Zavantem, Aproveitamos a manhã para o último passeio, há anos que não vinha ao Parque de Schaerbeek, valeu a pena, a vegetação está molhada, mas pé entre pé aproximo-me deste cortador que anda pelas árvores e que olha para os céus, sonhador e confiante no seu destino. Vai ficar com uma marca de água de que o viajante quer regressar, já sabe que a viagem nunca acaba, o viajante é que muda de intenções, os seus humores oscilam, mas neste caso o seu amor por Bruxelas é inabalável. Ele promete voltar, e nessa altura captará outras imagens para que o leitor também se aproprie deste afeto inextinguível.
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Nota do editor

Último poste da série de13 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14609: Os nossos seres, saberes e lazeres (93): Bruxelles, mon village (Parte 5) (Mário Beja Santos)