Memórias da CCAÇ 2616
7 - O acidente grave e único do ex-furriel enfermeiro Antunes
Na nossa companhia, a CCaç 2616, em 1970, em Buba, havia dois furriéis que eram uns grandes cómicos, num português mais castiço, eram uns grandes pândegos. Por sorte minha um deles pertencia ao mesmo pelotão que eu, ajudou-me muito, melhor dizendo soubemos entender-nos bem e colaborar, como grandes amigos, nas tarefas que nos eram impostas.
Neste caso falo do Zamith Passos que para lá do cumprimento eficaz das suas responsabilidades de camaradagem e comando, tinha um humor e graça quase permanentes que ajudavam tanto à boa disposição de todos. Magro e de estatura entre o baixo e o médio, falando de grandes cómicos do cinema mudo, podia ser o Estica.
Bem, ao outro grande cómico não se podia chamar Bucha, pois ele era de estatura média, sem ser magro também não era gordo.
Tinha igualmente muita piada que ia distribuindo com remédios, pomadas e injeções que administrava aos militares ou à população nativa na enfermaria. Era o nosso furriel enfermeiro, José Alberto G. Antunes.
Além de camaradas alegres e brincalhões, que ajudavam tanto todos os outros a suportar aquele exílio forçado, eram, entre eles, dois grandes amigos.
Talvez por serem amigos, durante muito tempo pensei ser essa a relação causal para o facto de o Antunes ter saído para o mato com o nosso pelotão num dia de Junho de 1970. Posteriormente alguém me terá dito, que ele saiu connosco porque havia dois cabos enfermeiros de férias.
Por uma ou outra razão, ou por ambas nesse dia o Antunes, furriel enfermeiro saiu connosco. Ao atravessar o rio Grande Buba, no seu teminus, na maré baixa, com água até aos joelhos, houve um acidente com o RPG-7. A granada que estava dentro saiu disparada, atravessou o corpo do furriel enfermeiro, no baixo- ventre e foi explodir na outra margem.
Do que pude ver e do inquérito que foi feito sobre o acidente recordo de se falar que o soldado que transportava a arma terá escorregado e que ao cair na água ou ele ou um curto circuito provocado pela água terá originado o disparo da granada, comprida, mas com pouco diâmetro.
Foi uma situação aflitiva para todos os camaradas do pelotão, que dadas as circunstância e o estado do Antunes, ficaram muito emocionados e temeram pela vida dele.
Naturalmente a situação tornou-se mais aflitiva para ele, que nunca perdeu a consciência, estava cheio de dores e com ferimentos graves no baixo ventre e temia muito pela sua gravidade. Emocionou-me muito ouvi-lo despedir-se da mãe e da namorada nessa hora difícil e incerta.
Estávamos a cerca de dois a três quilómetros do quartel.
Entretanto tínhamos comunicado, via rádio, para o quartel e os fuzileiros vieram rapidamente e levaram-o num zebro, e pouco depois foi evacuado para o Hospital de Bissau, donde foi posteriormente para o Hospital de Lisboa.
Soubemos depois que felizmente o Antunes se tinha safado, provavelmente terá andado a bater à porta de S. Pedro que lhe terá recusado a entrada por já lá haver muitos cómicos, por não ter ido acompanhado com o seu duplo, o Zamith Passos, nem ter levado o furriel Varela, o grande cineasta do cinema mudo, a preto e branco, que fazia a cobertura de todos os grandes acontecimentos sociais e militares em Buba e penso que ainda fazia sessões fotográficas de borla para as beldades da terra.
A extensão dos males que sofreu nunca soubemos muito bem.
Passados meses após o meu regresso encontrei-o em Lisboa, por um feliz acaso da sorte. Estava feliz já tinha um filho da Graça, sua mulher, ao tempo namorada, de quem o ouvi despedir-se naquela hora aflitiva em Buba. Falou-me nisso não só pela alegria de ser pai mas também pelo receio que teve de ficar impotente pois a granada passou muito perto de vários órgãos vitais, entre eles os sexuais.
Meus amigos, o Antunes para cantor de ópera "castrato" já estava velho. Já não teria voz para encantar o público e ter aquele grande êxito, que pudesse compensar essa perda tão importante para um macho lusitano.
Depois vim para o norte, mais próximo das minhas origens e perdi o contacto com este grande camarada e amigo.
Nesse tempo, mais próximo dos tempos da Guiné, a minha reação e penso que a de muitos camaradas era esquecer e evitar até os amigos com quem tínhamos convivido tão perto e quase diariamente.
Tínhamos boas recordações de muitos e grandes amigos mas vinham sempre associadas a eles desgostos de perdas de outros, desgostos associados a um tempo perdido e uma derrota que já tínhamos assumido antes dessa batalha inglória.
Confesso, nunca o disse a ele, que uma vez vi o meu grande amigo Zamith Passos em Viana do Castelo, já passados talvez dez anos, depois do meu regresso, e evitei falar com ele.
Zamith Passos que reencontrei há pouco mais de um ano tinha perdido o contacto do Antunes há já longos anos. Falamos recentemente nele e como seria agradável que ele estivesse presente no almoço da companhia no dia 2 de Maio.
Por um acaso de inspiração rara, eu perguntei-lhe se sabia o nome dele completo.
2 de Maio de 2015 - Convívio da CCAÇ 2616
Concluindo o Antunes foi descoberto e está cá bem vivo e com o humor de sempre a confraternizar com os camaradas da companhia que puderem estar presentes.
Apesar do grande ferimento e de todo sofrimento e incomodo associado, este nosso camarada, teve uma sorte danada.
Segundo ouvi contar, terá sido, ele poderá confirmar isso, o único caso, em toda a guerra do Ultramar, de alguém que conseguiu sobreviver a uma situação semelhante.
2 de Maio de 2015 - Ex-Fur Mils Antunes e Zamith Passos
2 de Maio de 2015 - Ex-Fur Mil Enf Antunes e ex-Alf Mil Francisco Baptista
Um brinde ao Antunes, à vida, à alegria e à saúde dele e de todos os camaradas!
Com alguma emoção li este texto no almoço da companhia, com o Antunes ao meu lado, com um ar mais saudável do que a maioria dos camaradas.
2 de Maio de 2015 - O ex-Soldado Granja e o ex-Alf Mil Francisco Baptista
2 de Maio de 2015 - Os ex- Alf Mils Baptista e Folque
Houve outros casos de mortos ou feridos mas pessoalmente, por circunstâncias várias nunca acompanhei o sofrimento de ninguém como o deste camarada.
Os mortos por minas ou balas, perto da Bolanha dos Passarinhos, nem um grito de despedida soltaram.
Como num filme antigo a preto e branco, a minha memória parece conservar ainda, em câmara lenta, alguns desses episódios tristes.
Por hoje já basta.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13848: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (6): Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava
1 comentário:
Olá Francisco,
Tiveste uma excelente capacidade para, a propósito de acontecimentos tristes, teres feito uma composição de alegria e uma saúde ao pessoal da tua "guerra".
Um abraço
JD
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