sexta-feira, 22 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14646: Notas de leitura (716): Guiné-Bissau. um País Adiado, por Manuel Vitorino, Orfeu (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
Se bem que Manuel Vitorino tenha passados escassos meses na Guiné, ficaram-lhe as lembranças, quis voltar, quarenta anos depois.
Chegado a Bissau, usou a Casa Emanuel, uma ONG, como placa giratória para as suas deambulações. Está ciente que há um voluntariado de jovens portugueses que serve de cabouco da política de saúde e qualidade de vida, sem ele tudo seria ainda pior. Por vezes desalenta com o afundamento a que votaram infraestruturas e equipamentos cruciais. É a ajuda externa e os programas humanitários que evitam que os indicadores sejam menos trágicos do que a realidade permite ver. E fica a esperança por dias melhores. Como ele escreve, aquele povo é um património admirável, um crisol de afabilidade e cultura.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau, um País Adiado (2)

Beja Santos

Como se referiu anteriormente(*), “Guiné-Bissau, um País Adiado”, por Manuel Vitorino, fotografia de Hugo Delgado, Orfeu, livraria portuguesa e galega, Bruxelas, Bélgica (www.orfeu.be e orfeu@skynet.be), é o testemunho de alguém que combateu na Guiné, aonde voltou 40 anos depois. O autor, experimentado jornalista, escreve em jeito de abertura: “Algumas das crónicas foram escritas ao correr dos dias na Guiné-Bissau – entre novembro e dezembro de 2013. O blogue Mau tempo no Canal foi o primeiro porto de abrigo, espécie de caderno de apontamentos para memória futura. O esboço do trabalho navegou por aqui, entre notas de reportagem, episódios, atmosferas, entrevistas, testemunhos vividos num país cheio de contradições e desigual, uma elite política alardear públicas virtudes e a fazer negócios privados. É um retrato sombrio e trágico. Mas foi aquele que encontrei e observei durante a minha estadia no território”.

Voltemos à cooperação chinesa, tem grande peso. Pequim terá seguramente alguma desconfiança quanto à fidelidade do alinhamento político-diplomático de Bissau, não seria a primeira vez que se reconheceria Taiwan como representante da China. Lembro perfeitamente de ver a cooperação de Taiwan a funcionar em 1991, refizeram todo o tapete de alcatrão entre Bissalanca e Bandim, com criteriosas valetas, despenderam seguramente uma fortuna, e com a fatalidade costumeira não houve manutenção, cedo se regressou aos buracos e à completa degradação. Que cobiçam os chineses na Guiné? Os chineses cobiçam as pescas, as areias pesadas com destino ao fabrico de vidro à prova de bala e também importante para fabricar componentes eletrónicos, gostam imenso de madeira exóticas. O autor fala em operações dúbias quanto às areias, ao tempo do governo presidido por Carlos Gomes Júnior a concessão aos chineses foi outorgada aos russos. Escreve Manuel Vitorino: “O contrato com a China foi firmado em 2008 por um período de 8 anos e assinado com a empresa chinesa West Africa Union, Investiment Company. Objetivo: proceder à execução de trabalhos de extração de areia pesada na zona de Varela. Porém, em janeiro de 2014, o governo saído do golpe de Estado anulou o contrato e sob a proteção de militares colocou uma empresa de capitais russos a fazer a mesma empreitada”. A China está no comando da exploração e abate de madeiras preciosas. O autor presume que as licenças foram dadas pelos militares saídos do golpe de 2012.

Manuel Vitorino procura e encontra portugueses indefetivelmente ligados à Guiné. João Marques Dinis, 70 anos, a viver em Bafatá, cumpriu comissão militar na Guiné, casou em Portugal, fez as malas e voltou. Divide o seu tempo a gerir uma escola de condução e o restaurante no centro de Bafatá, hoje uma cidade quase fantasma. Carlos Martinez, nado e criado na Guiné, foi empresário em Londres mas não resistiu à paixão dos lugares onde se criou, voltou. Mas está profundamente cético: "A curto prazo vamos sobreviver. As eleições não vão resolver todos os males do país, quanto muito servirão de alavanca para o tão desejado desenvolvimento. Mas como é que um país poderá captar investimentos sem luz elétrica, água, rede de esgotos, salários com atraso na função pública, professores em greve, taxas de importação muito altas. Já reparou quanto custa viver em Bissau?”.

E temos Patrício Ribeiro, 66 anos, técnico de energias. Tive a felicidade de o conhecer quando estive na Guiné, em 2010. O Patrício Ribeiro percorre o país de lés-a-lés na construção de estruturas de painéis solares, energias fotovoltaicas, instalação de bombas de água solares, etc. Fundou a sua própria empresa, tem uma inquestionável reputação. Comentou ao autor o seguinte: “O grande problema da Guiné-Bissau reside na falta de energia elétrica. Na maior parte dos casos trabalhamos no fio da balança, obrigados a percorrer locais de difícil acesso e isolados do mundo para proceder à montagem de painéis solares nas escolas, centros de saúde. É muito gratificante dar luz e água a quem nunca teve esses bens essenciais à vida”. E confessa num misto de motivação e desalento: “A Guiné ainda é uma aventura e sem aventura não consigo viver. Irei continuar por aqui até poder. Já trouxe o meu filho para efetuar a transição de conhecimentos e experiências. Mas a Guiné é um país adiado. As dificuldades de hoje são as mesmas que encontrei quando cheguei há trinta anos. Vou vivendo assim: um pé cá e outro lá”.

O autor não escusa críticas duras à cooperação portuguesa que nos últimos 40 anos promoveu centenas de projetos de cooperação, acha que é uma cooperação sem audácia, sem escrutínio sério e eficiente. Até ao golpe de Estado de 2012, a cooperação portuguesa teve ao seu dispor cerca de 15 milhões de euros por ano. Manuel Vitorino dá um exemplo do que considera desperdício e dinheiro mal gasto: em Buba construiu-se um mercado de frutas e legumes na parte alta da cidade sem dialogar com as populações, o povo montou ao lado um mercado rudimentar e o mercado construído de raiz está desocupado, foram uns milhares de dólares deitados à rua. Mas o autor também tece críticas em empreendimentos japoneses e outros.

Descreve uma visita ao Hospital Simão Mendes como uma descida aos infernos: no bloco principal estão as enfermarias sem privacidade alguma, a maior parte acolhendo pessoas em fase complicada de vida, portadores de HIV, hepatites, doentes do foro oncológico – não existe quimioterapia ou radioterapia – outros com complicações cardíacas, respiratórias, pulmonares. Faltam seringas, material cirúrgico, autoclaves de esterilização. O aparelho de raio X não funciona durante a noite, o laboratório de microbiologia só existe no organigrama. O serviço de maternidade é chocante, vêem-se grávidas em filas de espera, outras deitadas em macas improvisadas. Com ajuda divina, fazem-se cesarianas, mas as incubadoras não chegam para os recém-nascidos, por vezes estão três bebés de mães diferentes ao mesmo tempo. E tece duras críticas a obras mal feitas: “Há quatro anos o hospital voltou a ser reabilitado. Sofreu obras no telhado, paredes, interiores, gabinetes, serviços de Urgência. O dinheiro veio do Fundo do Petróleo. Quando foi ligada a rede de água o edifício ficou imediatamente inundado. Durante a empreitada esqueceram-se de colocar as torneiras nos locais próprios e a água começou a jorrar por todos os lados”. Mais adiante, ainda a propósito da saúde, tece outro comentário: “Num relatório técnico elaborado em 2012, após a visita do Ministro da Saúde à zona Sul nomeadamente aos centros de saúde de Quebo, Sangonhá, Cacine, Tite, Djabadá, Buba, Mato Farroba e Catió, chegou-se à conclusão de que a maioria dos centros de saúde não possui qualquer meio auxiliar de diagnóstico e o leque de testes realizado é mínimo. Só alguns, poucos centros de saúde têm condições para executar o exame direto da tuberculose e apenas o laboratório instalado em Buba tem equipamento para fazer bioquímica e hemograma”. Manuel Vitorino não esconde a admiração por um povo afável, hospitaleiro, sensível e culto. Este povo, diz ele é o maior património da Guiné.

Chegou a hora de partir, adeus e até ao meu regresso. Descreve a ONG Mundo a Sorrir e conta a história maravilhosa da Irmã Isabel Johannig, missionária da Costa Rica e fundadora da Casa Emanuel. A ONG Mundo a Sorrir será a beneficiária da venda deste livro.

Vale a pena insistir que se trata da descrição mais recente e mais acabada que se conhece da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

(*) Poste anterior de 18 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14628: Notas de leitura (714): Guiné-Bissau. um País Adiado, por Manuel Vitorino, Orfeu (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14630: Notas de leitura (715): Ao ler o livro “Nós, Enfermeiras Paraquedistas” assaltou-me de novo, e mais uma vez, aqueles dias então por lá (sobre)vividos (Armando Faria)

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