quarta-feira, 20 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14641: Os nossos seres, saberes e lazeres (94): Bruxelles, mon village (Parte 6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
O viajante está prestes a regressar, empanturra-se de alguma da muita beleza disponível. A retrospetiva Chagall foi um assombro, asseguro-vos. Comprou-se algum bricabraque, este viajante é adicto de adelos, fancaria avulsa, livros que não interessam a ninguém, até têxteis, fotografias de desconhecidos e quejandos. Para que não haja ilusões, regressa pronto a partir, mal haja oportunidade, tem ali sempre um ancoradouro à sua espera, tudo lhe é familiar, ou quase tudo, já tem manhas por espetáculos a preço módico e há livros a um euro que são um fausto. É por isso que já está cheio de saudades do futuro e avisa solenemente que nessas circunstâncias voltará a fotografar e a comentar, como diário sentimental.

Um abraço do
Mário


Bruxelles, mon village (6)

Beja Santos


Por mim, não me teria custado nada começar o dia na Place du Jeu de Balle, a Feira da Ladra onde é possível encontrar loiça da Vista Alegre, álbuns fotográficos dos anos 1950, fotografias da mítica rainha Astrid, rendas e bordados, entre tanta quinquilharia há por vezes imprevistos que enchem de gozo o acumulador em viagem. Mas não, em vez do Petit Sablon, o viajante vai para o Grand Sablon, mais chique, com lojas de antiguidades de cortar o fôlego, a que é possível encontrar um desenho de Degas, o mais sofisticado mobiliário Art Deco, porcelanas requintadas, arte africana topo de gama, e mais recentemente a arte oriental, os mercadores russos trazem do bom e do melhor. E é no Grand Sablon que está a Igreja de Notre Dame, entro no templo praticamente vazio com a música de Bach em fundo. Percorro a nave central e aqui depara-se numa coluna: “Aqui vinha a rezar Paul Claudel”, foi aqui um dos seus primeiros postos de diplomata, lembrei-me da sua obra-prima “A anunciação feita a Maria”, traduzida por Sophia de Mello Breyner, tenho esta peça de teatro como um dos dez textos fundamentais do século XX. Tirada a imagem, sentei-me a agradecer a Claudel os tesouros que nos legou.


O púlpito de Notre Dame du Sablon é gigantesco, cingi-me a este pormenor, a águia está pronta a escutar uma prédica de sapiência, o Espírito Santo está vigilante, é um daqueles momentos em que se deplora, contrito, que a máquina fotográfica não possua outra pujança para captar todo este trabalho de talha, magnificente.


Temos ao fundo duas pinturas neogóticas, entre finais do século XIX, princípios do século XX. Mas a minha questão de fundo, o meu embevecimento é esta barcaça, o seu assumido grau de ingenuidade, a delícia de dois equilíbrios, o cromático e as figuras, a imagem da Senhora parece que se vai lançar nos ares, daqui a pouco. Saio entusiasmado, estou pronto para mergulhar noutro oceano de religiosidade, o do grande Marc Chagall, ele está aqui muito próximo, nos Museus Reais de Belas Artes da Bélgica.




Como é que é possível ter em exposição mais de 200 telas, aguarelas, esquiços, desenhos representativos de diferentes épocas, provenientes das sete partidas, é que me faz pasmar, só os milhões para segurar os bilhões expostos. Ainda por cima, a retrospetiva Chagall percorre todas as etapas da sua carreira artística, desde as primeiras pinturas em 1908 até aos seus trabalhos gigantescos dos anos 1980. Em grande ecrã, estão aqui os seus temas favoritos: a cultura judaica, as tradições populares, a iconografia de uma aldeia judaica russa, os seus trabalhos à volta da literatura do século XVII, as dimensões da sua pesquisa em torno da luz e da cor. Mas estou absolutamente seguro que andamos todos aos encontrões de sala em sala empolgados por este estilo pessoalíssimo de alguém que andou pela revolução cubista e que rapidamente se individualizou, o Chagall poético, arrebatado, atraído por diferentes religiosidades, alguém que nos leva pela mão e de sala em sala nos deixa de boca aberta. Agora vou descansar os pés, cá fora o dia está magnífico, ando a borboletear pelos jardins e pelas galerias, como uma boa sopa e uma sandes farta-brutos, vou-me lançar noutra exposição de estalo, chama-se Faces Then, são retratos renascentistas dos Países Baixos, estão no Bozar, o Palácio das Belas Artes de Bruxelas, um polivalente que mete teatro, cinemateca, uma sala de música onde podemos ouvir a Maria João Pires ou o Jordí Savall.


É também para mim mistério como aqui se juntam três grandes exposições, a dos tesouros otomanos aparece referenciada como uma das mais importantes exposições do ano. Este é um pormenor de entrada deste palácio luxuoso, bem marmoreado, elegante, vem dos tempos em que a arte era obrigatoriamente servida em templos aparatosos e luxuosos.


Ainda não encontrei explicação para esta apresentação das fainas artísticas como guloseimas visuais. Entramos no templo das Belas Artes, lá em cima já nos acenam três exposições e à entrada somos minuciados com vídeos e instalações, parece a grande feira das imagens. Não resisti a captar este vídeo, o jovem torce-se e retorce-se ao som de World Music. É de questionar se esta avassaladora ocupação dos espaços não acaba por nos distrair da razão fulcral do que aqui nos traz, deixando outros espaços vazios. Enfim, um pouco de conversa fiada.



Entrei num festival de retratos renascentistas, estou atento à ousadia museográfica que permite tirar partido de 50 retratos do século XVI, todos eles provenientes de artistas dos Países Baixos. São, por definição, registos circunstanciais, mas acontece que génios da pintura como Quentin Metsys ou Joos van Cleeve ganharam a imortalidade graças a estas telas de uma grande beleza e cujos pormenores permitem estudar a opulência, a moda, a religiosidade, o valor desta exposição é o saber fazer a síntese entre realismo e idealização, temos aqui uma paleta generosa da gestualidade estética a oscilar entre o protestantismo e o catolicismo, entre o luxo descarado e a pose contida, o estatuto é para ostentar dentro dos cânones da conta peso e medida.


Em finais da Idade Média, aqui se construiu o Hotel Ravenstein, hoje um dos ícones da arquitetura civil de Bruxelas. É contíguo ao Bozar, em frente está um edifício onde durante muito tempo funcionou o Comité Económico e Social Europeu. Mas tratou-se de uma fotografia sentimental. Aquela montra à direita, hoje de uma loja de material discográfico de ponta foi até ao fim do século passado a Galeria Tempera, onde vim tantas vezes, no regresso do dia de trabalho, descansar os olhos diante de sanguíneas, óleos, desenhos ou aguarelas e de onde pude trazer algumas pérolas que espalho pelas minhas paredes, companheiras indefetíveis.


E assim se chegou ao fim das férias. A seguir o almoço, o André Cornerotte leva-me a Zavantem, Aproveitamos a manhã para o último passeio, há anos que não vinha ao Parque de Schaerbeek, valeu a pena, a vegetação está molhada, mas pé entre pé aproximo-me deste cortador que anda pelas árvores e que olha para os céus, sonhador e confiante no seu destino. Vai ficar com uma marca de água de que o viajante quer regressar, já sabe que a viagem nunca acaba, o viajante é que muda de intenções, os seus humores oscilam, mas neste caso o seu amor por Bruxelas é inabalável. Ele promete voltar, e nessa altura captará outras imagens para que o leitor também se aproprie deste afeto inextinguível.
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Nota do editor

Último poste da série de13 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14609: Os nossos seres, saberes e lazeres (93): Bruxelles, mon village (Parte 5) (Mário Beja Santos)

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