segunda-feira, 18 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14628: Notas de leitura (714): Guiné-Bissau. um País Adiado, por Manuel Vitorino, Orfeu (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
Trata-se porventura da reportagem mais recente nas nossas terras guineenses.
Manuel Vitorino nem sempre controla a indignação perante o marasmo, os nepotismos, a presença constante da ditadura militar, a exibição do novo-riquismo. Emociona-se com a qualidade do voluntariado, um dos pilares que sustém aquela sociedade com fome de justiça. Vai anotando, entrevistando, carreia dados muito importantes para a compreensão da Guiné no todo e na parte.
E as fotografias de Hugo Delgado, aqui e acolá, falam por mil palavras.
Não percam.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau, um País Adiado (1)

Beja Santos

“Guiné-Bissau, um País Adiado”, por Manuel Vitorino, fotografia de Hugo Delgado, Orfeu, livraria portuguesa e galega, Bruxelas, Bélgica (www.orfeu.be e orfeu@skynet.be), é o testemunho de alguém que combateu na Guiné, aonde voltou 40 anos depois. Manuel Vitorino é jornalista e mantém uma ligação estreita às associações culturais do Porto há várias décadas. Esteve na Guiné entre 1973/1974, fez parte do BCAÇ n.º 4518, passou alguns meses em Bolama e Cancolim, no Leste. “Foi por sentimento e amizade com este povo sofredor e sofrido que decidi regressar à Pátria de Cabral. Quis ver como é o dia-a-dia na cidade de Bissau, visitar as aldeias do interior e reviver Bafatá onde muitas vezes almocei a correr. Só não tive coragem nem vontade de ir a Cancolim. O mato tomou conta das instalações militares deixadas pelo colonialismo e nunca foram devidamente aproveitadas para outros fins da população”.

Observa, recolhe dados, indigna-se muitas vezes com a apatia e a corrupção. Aqui e acolá, dá voz a autoridades que discreteiam sobre problemas ingentes da vida guineense. É o caso de Adriano Bordalo e Sá, professor de microbiologia no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, que tece considerações sobre a água e a saúde em terras guineenses. Escreve ele:
“Em Bissau, a água canalizada chega a menos de 10 % dos 400 mil habitantes, um quarto do país. Em 40 anos a cidade ocupou 650 quilómetros quadrados, as infraestruturas coloniais minguaram a olhos vistos. O sistema de abastecimento de água, remendado aqui e acolá, tem-se aguentado estoicamente desde o início dos anos 60 do século passado, jorrando água de boa qualidade, haja gasóleo para a extrair das profundezas da terra vermelha, a mais de 600 metros de profundidade. Para um forasteiro, tomar banho com essa água gera uma estranha sensação. A reduzida espuma formada parece não querer largar a pele. Fruto da localização dos aquíferos, a água está isenta de microrganismos patogénicos.
Outras cidades e povoações têm em funcionamento pequenas redes novas geridas com parcimónia por comités de água locais. O precioso líquido corre nas torneiras dos fontanários a horas certas, cortesia de diversas ONG’s e dinheiros europeus. Os dadores internacionais substituem-se ao estado ausente.
Uma consultora holandesa passou a assessorar os sucessivos governos em matéria de recursos hídricos. Em Bissau as redes municipais de água e eletricidade caíram nas mãos de um monopólio francês. Saíram quando o povo deixou de poder pagar as tarifas exorbitantes suscetíveis de assegurar o retorno esperado em Paris. Em Catió, a rede desenvolveu-se com a participação local. Uma potente motobomba instalada junto ao descomunal depósito de água elevado na cabeça da antiga pista de aviação, assegurava os caudais necessários. Os pontos de água com contador espalhados pela cidade velavam pelo consumo, permitindo o pagamento justo. O sistema acumulou lucros nunca investidos localmente, sendo desviados para a capital. Enfurecida, a população deixou de pagar a água. As autoridades, a mando da consultora, retiraram os contadores e desligaram a motobomba. A cidade ficou sem acesso à água canalisada. Voltaram os poços ácidos e contaminados, depósitos individuais em cimento para captar a água as chuvas através dos telhados do zinco. Em 2013, o surto de cólera teve início em Catió”.

Bordalo e Sá também lembra que a Guiné, entre os países da África Ocidental, é aquele com menor número de licenciados em medicina no terreno. E o que se passa com a venda de medicamentos na rua excede o que de pior se pode imaginar em atentados à saúde pública:
“O exorbitante valor dos medicamentos nas farmácias e a penúria da rede pública fomentou a explosão do mercado de rua, um nicho cada vez mais importante. Bancas improvisadas vendem de tudo. De paracetamol à penicilina, de Viagra ao Xanax, passando pelos inevitáveis balsamos tipo Vick. Vendidos à unidade, os comprimidos chineses tanto podem conter resíduos do princípio ativo aposto na embalagem, como placebo ou mesmo substâncias tóxicas, pondo em risco a saúde de quem os toma.
Manuel Vitorino recorda que visita uma Guiné em ditadura militar. A magistrada Lucinda Barbosa, ex-diretora da Polícia Judiciária da Guiné-Bissau, entre 2007 e 2011, teve que abandonar o país, temendo represálias. Numa entrevista publicada no Jornal de Negócios, de 25 de outubro de 2013, acusa os militares de cumplicidade com o tráfico de drogas. Lucinda Barbosa comentou na ocasião: “Acho que já não temos Forças Armadas. Se formos recensear os antigos combatentes que ficaram nos quartéis, não chegam a 20 %. Muitos dos que agora são militares, em 1998 eram delinquentes. Os combates, em 1998, eram na zona onde havia uma prisão e eles evadiram-se e entraram nas Forças Armadas. Para mim, nem vale a pena termos militares. Basta preparar bem os polícias e refundar a Guiné-Bissau”.

Manuel Vitorino chega a Bissalanca e daqui parte para o bairro Háfia, para a Casa Emanuel, admira o voluntariado, irá estar atento ao trabalho espantoso desenvolvido pela ONG Mundo a Sorrir, especializada em saúde oral. Esta Casa Emanuel é uma instituição fundada por missionários da Costa Rica e ajudada pela cooperação portuguesa, tem hospital, orfanato e escolas. Deambula pela cidade, impressiona-se com a degradação dos edifícios, diz que “os únicos prédios novos ou com alguns anos de ocupação são o edifício da RTP África e a delegação da Agência Lusa, o Centro Cultural Francês mais a imponente sede das Nações Unidas, dois hotéis, a conhecida Residencial Coimbra”. Ouve falar crioulo, quanto ao português, quase nada. Procura as razões: o ensino está caótico, os professores em greve com muitos meses de salários em atraso, grande parte das escolas não têm quadros escolares ou giz. Os franceses apostam no incremento da língua, têm programas radiofónicos, seminários, aproveitam-se da perda da influência linguística no ensino do Português. É curioso o que ele anotou sobre a expansão do telemóvel: “O mercado de venda de telemóveis é dominado pela sul-africana MTN, com mais de 727 mil assinaturas, e logo a seguir pela Orange Bissau, operadora controlada por senegaleses e pela Guinétel, antes controlada pela Portugal Telecom”. Como não há luz elétrica, é preciso desenrascar: “Alguns habitantes montaram nas tabancas próximas de Bissau geradores alugados com tomadas elétricas em série destinadas ao carregamento dos telemóveis por 150 francos CFA cada. O negócio floresce”.

Descreve as agências bancárias e o câmbio feito na rua, a condução caótica no centro da cidade, os carros a cair de podre, as falsas inspeções.
A China vem à cabeça nas oportunidades de negócio, investimentos e exploração das riquezas naturais. E quer também dar uma imagem de que é um país muito amigo, dadivoso: reconstruiu o edifício da Presidência da República, o Palácio do Governo, o Hospital Militar e acabou recentemente de entregar grandiosas instalações ao funcionamento da Escola de Saúde Pública. Mas a China vê longe, como se verá a seguir.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de maio de 2015> Guiné 63/74 - P14621: Notas de leitura (713): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte III): toldaram-se-te os olhos, marinheiro... (Luís Graça)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Quando se fizerem afirmações negativas sobre a Guiné-Bissau, como lemos neste título de País Adiado, é tudo muito relativo e não é muito excepcional em termos de África sub-saariano.

Em África, muito provavelmente a cidade de Bissau será uma das capitais sub-saarianas, onde este escritor pode circular e ver o povo mais tranquilo e numa vida normal, do que em qualquer outra capital africana.

Talvez só mesmo Dakar, e uma ou outra, (poucas) que ainda vivem e bem sob a «neo-colonização» das antigas potências coloniais, e a África do Sul do excepcional MANDELA, tudo o resto está mais desiquilibrado do que a Guiné Bissau.

Generalizando, é mais fácil equilibrar a Guiné-Bissau, do que muitos outros países.

Porque só agora e não há 60 anos, e que não publicaram "a descoberta da pólvora"?