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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Assim se chega ao fim deste primeiro volume, em 1964 o PAIGC dá sinal de vida às suas armas antiaéreas no Cantanhez, as forças portuguesas respondem com operações de bombardeamento e depois com forças (Operação Resgate, Operação Mercúrio, Operação Safari). 1965 será um ano sem perdas para a FAP, mas a guerra alastrou, o PAIGC consolidou-se no sul, no Morés, donde se dissemina até ao norte e ao Geba, está bem implantado no Corubal. Vamos agora esperar pelo segundo volume, assim que os autores tiverem a amabilidade de nos facultar. Bastava ler este volume I para perceber como muita gente que anda a escrever sobre a Guiné e a afirmar impudicamente que a governação Schulz foi atrabiliária, para se ver a ignorância que por aí vai, nem as memórias de José Krus Abecasis tiveram a oportunidade de ler.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois, dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Seguiu-se uma descrição sobre os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. Por fim, abordou-se a Operação Tridente, começa agora o período da governação Schulz. Pela narrativa destes autores, revela-se à puridade a ideia feita de que Schulz não tinha estratégia adequada para querer contrariar a ofensiva guerrilheira, adotou um modelo de disseminação da quadrícula que era totalmente partilhado por outros potências coloniais a enfrentar a insurgência, e, obviamente, apercebendo-se da natureza do terreno, teria de apostar no apoio aéreo e na capacidade dos bombardeamentos. E os autores explicam claramente as dificuldades surgidas com as aeronaves. Vamos continuar esse relato e acompanhar o período da governação Schulz, e procurar entender a natureza da resposta do PAIGC.

Em meados de 1964, o PAIGC dotara-se de armas de defesa aérea de 12,7 mm, entre elas o DShK ou “Degtyarov-Shpagina de grande calibre”, conseguiu danificar 42 aviões durantes os primeiros oito meses de 1964, foi a frota T-6 que sofreu o maior dano. A intensa atividade antiaérea do PAIGC continuou no ano seguinte. E à medida que o armamento do sistema antiaéreo se tornava mais eficaz, o PAIGC criou equipas de armas que poderiam agir de forma independente ou ligar-se a formações maiores para grandes operações. No início de 1965, o PAIGC tinha reorganizado a sua ala militar regular, as FARP, constituíram-se grupos autónomos de 17-25 combatentes cada, dois grupos formavam um bigrupo que se iria tornar a formação tática padrão das FARP. Cada bigrupo poderia ser reforçado com elementos da defesa aérea ou outras armas empregando morteiros, RPGs, canhões sem recuo, entre outros. Essas forças locais eram importantes para manter uma aparência de soberania do PAIGC nas chamadas zonas libertadas, um pilar fundamental do seu programa político.

O primeiro teste sério à capacidade do PAIGC blindar território “libertado” de ataque aéreo ocorreu na Península do Cantanhez. Em 6 de dezembro de 1965, um C-47 recebe uma autêntica barragem de fogo antiaéreo enquanto sobrevoava o sul da Guiné à noite e a uma altitude de 5000 pés. De acordo com os relatórios da operação, sugeria-se que o PAIGC tinha usado armamento antiaéreo mais pesado, seriam os canhões antiaéreos ZPU de 14,5 mm, era uma metralhadora com alcance de quase uma milha podendo fazer fogo até 4500 pés, o cano podia disparar 600 tiros por minuto. Como observou Krus Abecasis, o inimigo tinha escalado e procurava desafiar o domínio aéreo da Força Aérea, o incidente sobre o Cantanhez exigiu a ativação de uma estratégia, a Força Aérea ia responder ao desafio. Foram preparados planos para tal contingência e em 10 de dezembro Schulz aprovou a proposta de Abecasis para a Operação Resgate, nome escolhido com a intensão de restaurar a nossa liberdade de ação nos céus da Guiné. Schulz e Abecasis esperavam provocar estas equipas do sistema antiaéreo do PAIGC no Cantanhez, puseram em campo toda a gama da capacidade ofensiva: 2 C-47, 12 T-6, 3 Do-27, 2 helicópteros Alouette III e 2 P2V-5 (os Neptune chegaram a Bissalanca vindo das Ilha do Sal a 12 de dezembro trazendo consigo bombas de 325 kg para uso na operação). A Operação Resgate foi desencadeada a 17 de dezembro, um C-47 aproximou-se das posições antiaéreas à altitude de 400 pés, levava apagadas as suas luzes de navegação, atuava como isca, era um barulho destinado a provocar uma reação violenta dos sistemas antiaéreos, expondo as suas posições; atrás desta aeronave seguia outro C-47 que ia iluminar esses locais, a sua missão era identificar os alvos com mais precisão e simultaneamente atrapalhar a visão noturna dos artilheiros, este C-47 também vinha carregado de bombas de fragmentação de 50 kg e latas de napalm de 60 litros. A aeronave isca atraiu o fogo esperado, foram lançados flashes de magnésio e o primeiro bombardeiro Neptune chegou à área alvo dois minutos depois lançando bombas; os Neptunes despejaram as suas munições nos 50 minutos seguintes. Apesar da ferocidade do assalto, os artilheiros antiaéreos das FARP iam vomitando estilhaços de grande calibre contra os nossos aviões, como descreveu Krus Abecasis. Esta primeira onda de ataque foi seguida por mais três em dezembro a 18 de dezembro, completaram a primeira noite da Operação Resgate.

Ao amanhecer, os T-6 começaram a fazer o reconhecimento, a verificar como se processava a infiltração e o abastecimento das FARP, quais as rotas que levavam àquela península. Na avaliação de resultados da primeira noite, o comandante da ZACVG concluiu que houvera êxito na missão, tinham sido descarregadas 30 toneladas de bombas nas posições do PAIGC.

A punição recomeçou duas noites depois, a 19 e 20 de dezembro, as aeronaves da FAP lançaram a segunda série de ataques na região do Cantanhez. Observou-se logo um declínio acentuado no fogo antiaéreo, presumivelmente devido aos danos causados durante a primeira noite da Operação Resgate. A FAP não perdeu nenhuma aeronave durante estes dias de operação, embora dois T-6 tenham sido atingidos no dia 19 e um P2V-5 ficou ligeiramente danificado pelas defesas antiaéreas durante a noite final da operação. Até ao fim do ano fizeram-se voos noturnos para avaliar os resultados, e havia o intuito de preparar uma operação conjunta para expulsar em definitivo o PAIGC do Cantanhez. Embora os sistemas antiaéreos do PAIGC estivessem piados, as FARP continuavam numa total liberdade de movimento naquela península densamente florestada e frequentemente inundada. Na sequência da Operação Resgate ocorreu a Operação Safari em 3 e 4 de janeiro de 1966, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, fizeram vários desembarques simultâneos na Península de Cantanhez. Apesar de alguns sucessos iniciais, incluindo a destruição do que se considerou uma bases central das FARP, as forças portuguesas encontraram uma forte oposição e foram obrigadas a retirar-se. Retornou-se ao Cantanhez dois meses e meio depois, as forças portuguesas desembarcaram com a proteção de aeronaves, era a Operação Mercúrio, em 19 de março de 1966; pela primeira vez, alguns DO-27 foram utilizados para atacar, empregando granadas de mão como bombas de fragmentação improvisadas – um método não isento de riscos para o avião e a tripulação. A Operação Mercúrio foi considerada um sucesso tático, não encontrado resistência da guerrilha e não houve vítimas do lado português a assinalar.

Noutro lugar desta volátil Região Sul, em 1 de agosto de 1966, a ZACVG lançou a Operação Ribalta, com a duração de três dias, abarcando a fronteira sudeste com a República da Guiné, operação que foi precedida por bombardeamento noturno, procuraram afetar unidades guerrilheiras que flagelavam os destacamentos de Beli e Madina do Boé. A operação foi um êxito, os guerrilheiros sofreram 60 mortos e o remanescente das unidades de guerrilha teve de fugir.

Atenuou-se, mas não se destruiu esta dinâmica do PAIGC. Ao longo de 1966, a região sul iria permanecer como o teatro de guerra mais ativo, o PAIGC consolidava o seu controle em zonas pouco povoadas de florestas, pântanos e mato. As FARP também aumentaram a sua presença e atividades no noroeste da Guiné ao longo da fronteira com o Senegal, explorando a escassez de forças portuguesas na área. As FARP estavam bem instaladas na região do Morés e dali partiam operações para todo o oeste. No leste, o PAIGC encontrou forte resistência por parte da população Fula dominante, mas conseguiu estabelecer uma presença disruptiva no setor, fazia-o mediante forças que se infiltravam na fronteira e que depois regressavam aos seus santuários da Guiné-Conacri.

Felizmente para a ZACVG, 1965 foi um ano relativamente bem-sucedido, não se perdeu nenhuma aeronave desde dezembro de 1964. Um dos oficiais superiores que trabalhavam com Schulz, o Tenente-Coronel Castelo Branco descreveu os problemas que estavam a ser enfrentados pelas tropas portuguesas em carta enviada ao Comandante-Chefe: insuficiência de recursos em tropas, veículos, aeronaves e pilotos; a guerrilha estava profundamente entrincheirada no sul da Guiné. O tenente-coronel considerava que o Governo teria de se comprometer mais com uma guerra em grande escala que queria reconquistar a região e as gentes, e escrevia: “Em suma, o inimigo colocou a mão no nosso pescoço, como um bom lutador de judo, e estamos com imensa dificuldade de sair desta posição.” Ora, para grande desconforto da ZACVG, deu-se a retirada do F-86, as funções de apoio de fogo iam ser centradas nos velhos T-6. As FARP aumentavam a frequência da sua presença e as forças terrestres mostravam dificuldade em responder com oportunidade célere às atividades da guerrilha.

As iniciativas diplomáticas desenvolvidas por Lisboa junto de Paris e Bona tiveram sucesso, conseguia-se contornar o embargo de armas norte-americano, adquirindo aeronaves pelos parceiros europeus. Estava iminente a entrada em cena dos Fiat G.91 da República Federal Alemã e a entrega dos helicópteros Alouette III, o que trouxe algum otimismo tanto a Schulz como a Abecasis, supunha-se que estas aeronaves iriam trazer novas capacidades e fazer pender a balança graças a uma fase qualitativamente nova da guerra aérea, na Guiné Portuguesa.

Fim do volume I.


Um caça Fiat G.91
Uma metralhadora antiaérea Degtyarev de 12,7 mm
Guerrilheiros do PAIGC com uma arma antiaérea ZPU-4 de 14,5 mm
Metralhadora pesada ZPU-4.

OBS: - As quatro imagens acima apresentadas foram retiradas do trabalho de José Matos intitulado “A GUERRA DAS ANTIAÉREAS NA GUINÉ (1965/1970)”, com a devida vénia
Quadro da penetração do PAIGC em meados de 1966 (Matthew M. Hurley)
Quadro que reporta as perdas em combates e acidentes de aeronaves na Guiné (1962-1966)
F-86 destruído em 31 de maio de 1963, na sequência de um bombardeamento que correu mal (Arquivo Histórico da Força Aérea)
À atenção do leitor: estes dois volumes de memórias de José Krus Abecasis continuam a ser leitura fundamental para análise do comportamento da FAP na Guiné, neste período
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Notas do editor

Vd. Postes anteriores de:

6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

13 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)

20 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23998: Notas de leitura (1545): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (13) (Mário Beja Santos)
e
27 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24015: Notas de leitura (1547): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (14) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Angola, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), ao poste P24012 (*)

É a primeira vez que encontro uma referência à especialidade de desempanador. Para mim é uma completa novidade, não sabia que existia semelhante especialidade. Que eu saiba, no meu batalhão em Angola,  não havia nenhum mecânico desempanador, porque todos acabavam por sê-lo, mais cedo ou mais tarde.

Na região dos Dembos, em todas as colunas auto seguia obrigatoriamente um mecânico, porque a vetustez das viaturas e o acidentado do terreno a isso obrigava. 

O "desempanador-mor" da minha companhia era um soldado mecânico chamado Mota (ainda está vivo, e espero que por muito mais tempo ainda), que resolvia sempre todos os problemas da maneira mais criativa possível. Servia-se de paus de fósforos (para substituir algum parafuso partido, por exemplo, renovando os paus quando eles mesmos também se partiam), chicletes (nomeadamente para vedar alguma fuga de óleo ou de combustível), etc. 

Com ele, todas as viaturas chegaram sempre ao seu destino pelos seus próprios meios. Uma vez, partiu-se a mola do acelerador de um unimog, mola esta que tinha por função manter o pedal do acelerador levantado. O Mota resolveu o problema substituindo a mola partida pelo elástico que tirou das suas próprias cuecas!

27 de janeiro de 2023 às 03:05

2. Comentário do editor LG:

Uma história incrível, Fernando, essa do Mota, o mecânico "desenrascador" e "desempanador". Que importa que não tivesse o "diploma" nem o "título"?! 

Também os houve na Guiné, havia mecânicos das Daimlers, por ex., que conseguiam manter operacionais essas relíquias da II Guerra Mundial... O Mota, mesmo que  vocês tenham estado em Angola, merece um poste no blogue dos amigos e camaradas da Guiné. Uma homenagem a todos os nossos mecânicos. Tens uma foto dele ou com ele? Candando (abraço, em angolês). 

Luís

3. Resposta do Fernando Ribeiro:

Data - sábado, 28/01/2023, 03:01

Caro Luis,

A única fotografia que tenho do mecânico Mota é esta (à esquerda), que data de 2016 e foi feita no convívio do meu batalhão realizado aqui no Porto. Ninguém o conhecia por Mota, mas sim pela alcunha de Matraquilho.

Quando a minha companhia chegou a Zemba, estavam num canto do bar dos soldados uns matraquilhos estragados. O Mota foi pedir ao capitão, Lamas da Silva, licença para reparar os matraquilhos. O capitão respondeu-lhe que não tinha que lhe dar licença nenhuma, porque os matraquilhos não faziam parte do espólio da companhia e, por isso, não tinham dono. Acrescentou que, se o Mota quisesse ficar com os matraquilhos, que ficasse, e fizesse deles o que muito bem entendesse. 

Isto foi música para os ouvidos do Mota, que tratou logo de reparar os matraquilhos e pô-los a render. E como renderam! Zemba era um cu-de-judas onde não havia comerciantes, nem "meninas", nem nada onde a malta pudesse gastar o seu dinheiro, a não ser o bar dos soldados. 

Os matraquilhos do Mota foram por isso um enorme sucesso, que a malta toda usava de manhã até à noite, metendo todas as moedas necessárias para jogar. O Mota a partir de então passou a ser conhecido pela alcunha de Matraquilho, o mecânico que personificava o portuguesinho desenrascado.

Um abraço, Fernando Ribeiro

4. Novo comentário do editor LG:

O teu Matraquilho faz-me lembrar, com as devidas distâncias (até geográficas e históricas...) o MacGyver, o herói de uma série que passou na RTP, em 1987, e era muito popular... É caso para perguntar quem imitou quem... Entre um e outro há uma distância de 15 anos... 

Lembras-te das aventuras do MacGyver?

(i) Aqui vai um excerto da RTP > Programas TV

"As aventuras de MacGyver: a sua mente é um autêntico canivete suíço

Richard Dean Anderson é Macgyver (foto à esquerda, cortesia da RTP), um agente astuto e muito inteligente, que opta por resolver situações de conflito sem recurso às armas e à violência. Um herói que arrisca a sua vida em delicadas operações de salvamento, utilizando como únicas armas, os utensílios que existem à sua volta" (...)

(ii) Na Wikipédia também se pode ler:

MacGyver (Profissão: Perigo no Brasil) foi uma série de televisão americana de ação-aventura criada por Lee David Zlotoff (...) . MacGyver durou 7 temporadas, de 1985 a 1992, no canal ABC nos Estados Unidos. A série foi filmada em Los Angeles  (...) e  em Vancouver (...) . O último episódio foi exibido a 21 de maio de 1992.

A série segue o agente secreto Angus MacGyver, interpretado por Richard Dean Anderson, que trabalha como “um solucionador de problemas” para a Fundação Phoenix em Los Angeles e como agente para o Departamento Governamental de Serviços Externos (DXS), ambas fictícias. 

Educado como cientista, MacGyver serviu na Guerra do Vietnã como técnico da brigada antibombas ("Countdown"). 

Muito versátil e possuidor de um conhecimento enciclopédico de ciências físicas, MacGyver resolve problemas complexos ao criar coisas a partir de objetos comuns, grande parte das vezes com a ajuda do seu canivete suíço; MacGyver também porta consigo fósforos e fita adesiva em alguns episódios. Prefere resolver suas missões sem violência e não gosta de usar armas de fogo devido a uma morte acidental que envolveu um de seus amigos de infância. (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24032: Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (Fulacunda, Mejo, Aldeia Formosa e Buba, 1966/68) (Parte II)




Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (FulacundaMejoAldeia Formosa e Buba, 1966/68), autor do livro "Noites de Mejo - Histórias Singulares da Guerra na Guiné", obra recenseada pelo nosso camarada Mário Beja Santos.

Foto 7 > Aspecto da Tabanca do Mejo. À esquerda, o espaldão do morteiro 8 cm (1966)
Foto 8 > Aspecto da Tabanca do Mejo (1966)
Foto 9 > Aspecto da Tabanca do Mejo (1966)
Foto 10 > Abrindo o poço no leito seco do "rio" de Mejo para abastecimento da Companhia. A água barrenta é de um vermelho vivo (1966)
Foto 11 > Vista parcial da Porta D'armas de Mejo e da Enfermaria (1966/67)
Foto 12 > Vista parcial do aquartelamento do Mejo. À esquerda, uma caserna (1966)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24013: Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (Fulacunda, Mejo, Aldeia Formosa e Buba, 1966/68) (Parte I)

Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da  Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)


1. O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, já aqui fez uma exaustiva e brilhante  recensão do livro do Luís Cabral (*), livro de memórias, talvez um pouco  esquecido,  do meio-irmão de Amílcar Cabral, escrito no seu exílio.

Recorde-se que Luís Cabral esteve  detido mais de um ano no Forte da Amura, em Bissau, logo a seguir ao golpe militar de 'Nino' Vieira, seu primeiro ministro, em 14 de novembro de 1980,  até ser liberto por pressões internacionais, acabando por seguir para Cuba e Cabo Verde e por fim para Portugal, em 1984, país onde viveu até à sua morte, em 2009, vítima de doença prolongada. (Ironicamente, um mês depois de 'Nino' Vieira.) (**). 

No prefácio do livro de 461 pp., com data de outubro de 1983, e escrito na Praia,  Cabo Verde, ele diz que nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever um livro sobre a sua vida e a sua luta. Foi na solidão da Amura, que foi tentado a escrever. E fê-lo sobretudo em homenagem ao Amílcar e demais companheiros: 

(...) "Mais tarde, já em liberdade, alguns dos meus antigos companheiros dão o seu apoio e uma apreciação amiga a este primeiro trabalho sobre a vida e a luta com o Amílcar, e, fornecendo-me importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentacão e encorajando-me a continuar a escrever as minhas lembranças sobre a heroica luta que conduziu os nossos povos à liberdade e independênci nacional" (pág. 9).

E no fim acressenta:

(...) Se é que tenho a uma pretensão, é a de considera que fiz o melhor do meu esforço para que tudo o que foi dito neste trabalho corresponda à verdade dos factos registados, embora com a consciência de, em muitos casos, não ter ainda chegado o momento de dizer toda a verdade" (pág. 11).

Não sei se o Luís Cabral chegou a ter a oportunidade, nomeadamente em entrevistas que foi dando, de "dizer toda a verdade" até ao momento da sua morte, em 2009, no antigo Hospital do Barro, nos arredores de Torres Vedras.  Ao que parece, estava nos seus planos escrever um segundo livro de memórias sobre a sua experiência como presidente da República da Guiné-Bissau. Teve 25 anos para o fazer, antes de morrer. Não chegou, infelizmente,  a escrevê-lo ou a publicá-lo. O que é pena.

Temos, todavia, que concordar que este seu primeiro (e único) livro é um documento importante para a historiografia da guerra colonial na Guiné, tanto mais que Luís Cabral era o nº 2 ou 3 do PAIGC, membro do "Bureau Político" e do "Conselho de Guerra", além de ter sido o primeiro presidente do conselho da República da Guiné-Bissau. Foi, além disso, íntimo confidente, grande admirador e fiel executante do pensamento e da estratégia  do irmão. Por outro lado, sabemos que os seus antigos companheiros, da cúpula do PAIGC,  já morreram todos ou quase todos, tendo levado para a cova os seus segredos, as suas melhores e piores memórias. Tirando Luís Cabral e Aristides Pereira, quem escreveu mais ? Ou dá a cara, falando em público, como é o caso do 'comandante' Pedro Pires ?!

Alguns antigos combatentes, membros da Tabanca Grande e/ou leitores do nosso blogue, nem sempre se sentem confortáveis quando falamos aqui do PAIGC, dos seus dirigentes, do seu pensamento e da sua história...como se o IN que combatemos, no TO da Guiné, não tivesse  um nome e protagonistas com um rosto... Como se tivéssemos combatida contra extra-terrestres!... Amílcar Cabral e Luis Cabral, por exemplo, estão na "lista negra"... Fazem parte dos ódios de estimação de alguns de nós... 

Mas se voltamos hoje a uma (re)leitura da "Crónica da Libertação" não é para santificar ou diabolizar ninguém, é apenas para melhorarmos e enriquecermos o conhecimento que temos daquele conflito em que estivemos envolvidos. E que não foi um conflito qualquer, Foi uma guerra prolongada e, em muitos casos, sangrenta e cruel. E, ainda mais do que isso, completamente estúpida e inútil.

Neste caso há "factos & mitos" que devemos pôr em evidência, numa linha que nos é cara, aqui, no blogue, que é a exploração das "memórias cruzadas", na continuação dos escritos de camaradas nossos como o Jorge Araújo, o Mário Dias, o António Rosinha ou o Patrício Ribeiro (estes dois últimos já como "paisanas", na República da Guiné-Bissau)...

Não vou cotejar o que diz (e muito menos o que omite, esquece, branqueia ou falsifica) Luís Cabral com o que os biógrafos de Amílcar Cabral  investigaram e escreveram. E são já  várias  as biografias do líder histórico do PAIGC.  Confesso que ainda não as li, conheço-as apenas das recensões que têm sido feitas, e nomeadamente pela mão do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos. É preciso tempo e vagar para se ler, e a lista de prioridades de cada de um de nós é diferente. 

Da "Crónica da Libertação" vou, ao longo de vários postes, reter alguns pontos que me chamaram a atenção e que julgo ser também do interesse dos nossos leitores conhecer ou apurar melhor...  Por exemplo, a relação do PAIGC com os fotojornalistas e os cineastas, nomeadamente europeus, que ajudaram a alimentar o mito das "áreas libertadas", do "poder popular", dos "armazéns do povo",  das escolas e dos hospitais de campanha... 

Noutros casos, há perguntas que ficam no ar: teve ou não Luís Cabral um "copydesk" (editor literário) que o ajudou na feitura do seu livro ? Recordo-me de o saudoso Leopoldo Amado (vítima da pandemia de Covid-19, em 2021) me ter confidenciado, há uns largos anos atrás, na Feira do Livro de Lisboa, que a obra "O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países", de Aristides Pereira  (Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 974 pp.)  tinha sido em grande parte escrita por ele...

Não há nenhum mal nisso: muitos políticos e outras celebridades (nomeadamente do mundo do espetáculo) recorrem a jornalistas e escritores profissionais, como "copydesks", ajudando-os a publicar as suas memórias ou autobiografias...

Na ficha técnica do livro de Luís Cabral, editado em 1984 sob a chancela de "O Jornal", não há menção sequer de um revisor técnico e/ou de texto. Mas admitimos que tenha tido a ajuda de alguém na parte da escrita. No prefácio, o autor agradece, sem os citar, a "alguns dos seus antigos companheiros" que, além do apoio e estímulo, lhe forneceram "importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentação".

O livro foi publicado em julho de 1984. O prefácio escrito em outubro de 1983. E a detenção na Amura decorreu, presumivelmentre,  entre novembro de 1980 e o  final do ano de 1981 (13 meses). Esteve depois exilado  em Cuba e a seguir em Cabo Verde, nos anos de 1982 e 1983. 

O "making of" do livro deve ser deste período, mas curiosamente as referências a Cuba e à participação dos "internacionalistas cubanos" na luta ao lado do PAIGC são escassas ou discretas... Fala de um ou outro médico, mas nem sequer nos dá um número (mesmo que aproximado) dos cubanos que participaram na "luta de libertação", desde 1966. Como se isso se tratasse de um "segredo de Estado"...

O autor é também avaro ou omisso quanto a outros números: população sob controlo do PAIGC, tabancas, escolas, hospitais, armazéns do povo, "barracas" ou "bases", homens armados (incluindo milícias), mortos e feridos, ajuda externa, etc. (Quanto a desertors portugueses, acolhidos pelo PAIGC, fala em 20, se não erro.)

Luís Cabral nunca foi um "operacional", ou um "combatente", de armas na mão... Nem devia ter qualquer formação militar específica... De resto, nunca foi tratado como um comandante, como 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira ou Pedro Pires.  Pertencia ao aparelho político, ao "bureau"...  Mas tinha como pelouro, no interior do território da Guiné, a "reconstrução nacional das áreas libertadas" (sic). E, como Amílcar Cabral não tinha tempo para andar no mato, a caminhar, a pé, dias e dias, até à fronteira, o "mano" fazia as funções de "inspetor-geral"... dos combatentes e da população que os suportava... Em contrapartida, tinha boa memória para nomes, o Luís... 

De qualquer modo, é o homem de confiança do irmão para missões difíceis, nomeadamente na Região Norte e no Senegal (cujas autoridades só tardiamente abrem, ao PAIGC, o "semáf0ro verde" para o trânsito de homens armados, e de carregamentos  de armas e munições; e por essa razão o Luís passava mais tempo em Dacar, enquanto o Amílcar percorria as capelinhas a "ajuda internacional" e fazia o "marketing político" da sua "revolução africana").

A narrativa conserva um estilo de alguma oralidade, mas o autor raramente é traído pelo  crioulo guineense com que, supomos, se exprimia no dia-a-dia, para mais sendo casado com uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, Lucette Andrade (ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar), e lidando com muita gente de PAIGC de diferentes etnias. 

No final há um glossário, com 27 termos, para uso do leitor português (sem novidades para nós). O livro é ainda ilustrado com 3 dezenas de fotografias.

Numa primeira impressão, o livro tem algo de hagiográfico: o Luís Cabral viveu muito em função do irmão, que admirava acriticamente, pondo-o  no altar dos deuses ou semi-deuses (que para os gregos eram os heróis). E não é por acaso que as suas memórias acabam com as derradeiras recordações do Amílcar, no dia a seguir à sua morte em Conacri... 

Um dia depois, a 21 de janeiro de 1973, Luís chega a Dacar, e só então sabe da trágica notícia... É o último a saber, cruel ironia!... Senghor põe então um avião à disposição da delegação do PAIGC que se desloca a Conacri para as cerimónias fúnebres"...

Trata-se, mais do que um trajeto pessoal (o do guineense Luís Cabral, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, antigo contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma cunha do irmão, conceituado engenheiro agrónomo): é, de facto, uma crónica da "luta de libertação",  mas ao mesmo tempo é também a crónica de uma morte anunciada,  parafraseando o título de um dos romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez.  

Ao longo destas quatrocentas e tal páginas, que seguem um fio cronológico, embora sejam avaras em datas precisas, o autor não esconde que o seu irmão foi sendo alvo de várias tentativas de assassinato por parte de homens do seu partido... (A lista parece ser bem maior do que as referidas por Luís Cabral.) (***). A última, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, foi fatal. 

Mas o Luís é incapaz de perceber as razões e as motivações que estão por detrás desta tragédia: como é que um homem como o irmão, Amílcar,  tão amado e até idolatrado por tantos, podia ser também tão odiado por alguns, para mais estando dele tão próximos ?

(Continua)
_________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(...) É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. (...) 

(**) Vd. poste de 1 de junho de  2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Guiné 61/74 - P24030: (In)citações (229): A matança do porco... do nosso contentamento (Francisco Baptista / Alberto Branquinho / Joaquim Costa / José Belo / Luís Graça / Valdemar Queiroz)

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Depois da caçada há que preparar o bicho, tal qual uma matança de porco numa das nossas aldeias".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "É hora de levantar cada um a sua parte e comer em família, cada um em sua tabanca [morança]".

Fotos (legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O texto, de cinco estrelas, que escreveu o Francisco Baptista sobre a matança do porco em Brunhoso, na terra fria transmontana, já mereceu uma boa mão cheia de comentários... Reporta-nos para as memórias, os sabores, os paladares, as brincadeiras,  a ruralidade, as festividades cíclicas, as geografias emocionais da nossa infância, enfim, para um Portugal que não existe mais e donde saiu um milhão de homens para fazer a guerra em África (1961/74), e que eram capazes de vender, não digo a G3, mas pelo menos a alma ao diabo,  por um salpicão, umas chouriças ou um naco de presunto do fumeiro da santa terrinha... (que isso, sim, é que era pecado, para os nossos amigos e leais fulas, respeitadores da lei de Maomé).

Na Guiné os animistas como os balantas criavam uns porquinhos que, com relutância, vendiam à tropa,  às vezes eram atropelados pelo "burrinho" (o Unimog 411), que entrava pela tabanca dentro sem respeitar os "sinais de trânsito" e as orientações da "psícola" do Spínola,,, Outras vezes, havia uns corajosos e sortudos caçadores que lá apanhavam, no mato,  fora do arame farpado, um porco selvagem ou javali... 

Nesses dias havia festa no quartel, como documentam as fotos que acima reproduzimos... (E a propósito, não me lembro de ter comido carne de porco, da "pocilga do vagomestre", mas tenho que admitir que havia vagomestres engenhososos, criativos e nossos amigos que criavam uns porquinhos, com as sobras do rancho...).

Vale a pena, entretanto,  selecionar alguns dos comentários ao poste P24026 (*)

(i) Valdemar Queiroz:

Que apetitoso texto. Com cheiro a porco chamuscado e às tripas que tiravam da barriga ainda a fumar. Só faltou ouvir o porco guinchar antes, durante e no fim da matança.

Em criança de 9 anos, lembro-me de ter ido a uma matança do porco na casa da tia Rosa Verde. Pelo guinchar de outras paragens, o matador devia estar a chegar.

Eram só mulheres a tratar da matança, apenas dois homens a agarrar e atar o porco em cima do carro das "piscas". A minha avó era do grupo que tratava da lavagem das tripas, e eu ia com ela à foz do rio junto ao mar lava-las com areia(?) e limões.

Depois era toda a gente a encher chouriços e os rapazes e raparigas desapareciam nas brincadeiras.

Que pena eu não saber escrever como o Francisco Baptista. (...)

31 de janeiro de 2023 às 23:14  

(ii) Francisco Baptista:

Camarada e amigo Valdemar Queiroz, tu escreves bons comentários também saberás escrever bons textos.

Os porcos grunhem, não guincham, confesso que, à distância de muitos anos, esse grunhir queixoso me incomoda mais do que no tempo real em que acontecia, talvez porque com mais idade, com outra experiência de vida e mais conhecimentos, me tenha dado  conta que há a inteligência humana dos bípedes como nós e a inteligência animal. Talvez os porcos,  ao serem puxados com uma corda e ao depararem com tantos homens,  adivinhassem que era o fim da boa vida e das comezainas. 

Lembro-me da minha mãe que durante muitos anos matou as galinhas e os perus e, com mais idade, deixou de o fazer. Enfim com a idade ficamos mais humanos e passamos a ficar mais próximos e a compreender melhor os animais.

Continuo a gostar da carne de porco, ainda ontem comi um bom cozido dessa carne.

1 de fevereiro de 2023 às 11:07

(iii)  Luís Graça;

Francisco, é um texto de valor etnográfico. É bom poder voltar a ler os teus escritos. Este Portugal, da matança do porco, do fumeiro, da salgadeira..., já não existe mais. Há anos que deixámos de matar o porco em Candoz, no Norte... Mas faz parte das minhas memórias de infância, quando eu, menino e moço, ia à aldeia da minha mãe, Nadrupe, a 3 km da vila da Lourinhã, ma Estremadura, para participar na "festa" da matança do porco... Era sempre por esta altura, no inverno. Ao pé do mar, não se fazem presuntos, mas havia também um bom fumeiro, à base de chouriços.

(,,,) "Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem." (...)

1 de fevereiro de 2023 às 12:12

(iv) Joaquim Costa:

Em minha casa todos os anos se matava o porco. Era dia de muitas emoções para mim. O frenesim começava de manhã cedo com os preparativos e terminava ao fim da tarde com a chegada do especialista, com o seu facão para aplicar o golpe de misericórdia no sítio certo de forma a evitar o sofrimento do bicho. Este parecia que adivinhava o que vinha aí,  já que desde muito cedo mantinha um comportamento anormal. O caminho do calvário (corredor da morte) da pocilga até à rudimentar mesa onde era atado, esperneava, grunhia e gritava (...). . Era uma cena macabra. Ainda o bicho ofegava e já era chamuscado com tochas de palha a arder.

Depois era o lavar das tripas, fazer os enchidos e proceder à salga... Mas o que mais me impressionava era a matança da galinha, com a minha mãe cortando a cabeço à pobre ave (que esperneava sem cabeça) que durante meses era tratava com zelo e carinho.

Mas verdadeiramente arrepiante era a matança do coelho com as pancadas dadas no cachaço do fofinho animal. Fugia daquela cena arrepiante, razão pela qual nunca comi coelho na minha vida. 

Felizmente hoje a matança é … mais fofinha ! ?

1 de fevereiro de 2023 às 12:14



(v) Alberto Branquinho

Ó Francisco! Gostei muito do teu texto. Fez-me voltar à infância.

Na minha santa terrinha, que não é muito longe da tua (o Douro separa-nos), aos pulmões não chamam "boches", mas "bofes" e ao teu "piche" chama-se "alpechim" (origem árabe, vê tu, em terra de judeus...).

E com o auxílio de "fachas" de palha a arder não tiravam as unhas ao bicho para dar à garotada? Que as coloca no nariz e berrava: "Cheira a "carrapé"!

E não faziam cruzes no sangue com palhinhas para "coalhar" mais depressa?

O "unto", homem, o "unto"! É capaz de ser por causa disso que o pessoal não tem colesterol... Ou tem?

A matança, pois! Há uns poucos anos assisti a uma (clandestina), mas a pressa de matar (?!) era tanta, com medo de aparecer a fiscalização...

 1 de fevereiro de 2023 às 16:33

(vi) José Belo (... from Key West, Florida, USA):

Fantástico poder de observação. Minuciosos detalhes que transformam uma recordação em algo de vivo e actual.

Será…”todo um mundo que desapareceu “?

Ou antes páginas viradas de um mesmo livro?! Páginas (as viradas e as por virar) que mais não são que um “continuum” existencial?!

Encontram-se no interior do livro o passado, o presente e o futuro?! Entramos neles de acordo com a página,ou capítulo que (de momento) abrimos?!

E,mais uma vez, estou-te grato por teres folheado o teu “livro”.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24029: Notas de leitura (1549): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte X: a importância da acção psicossocial: pondo as mulheres a voltar a pescar... peixe e camarão


Guiné > s/l> s/d> Mulheres a pescar no rio... Cortesia do nosso camarada Carlos Rios [ex-fur mil, CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66] (*)


Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Na foto da capa, podemos ver o "capitão Cristo", sentado ao centro, com a mão direita no rosto, visivelmente bem disposto, em agradável convívio na casa do Zé Saldatnha [encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia]. Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o dono da casa, o Zé Saldanha (antigo militar que esteve em Bedanda). 

Recorde-se o que escrevemos na primeira destas notas de leitura (***):

(---) O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego"), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (...)

A intensa atividade operacional é intercalada com pequenas, saborosas (e algumas pícaras) histórias do quotidiano do quartel, da tabanca e seus "vizinhos" (que o autor nunca trata por "turras")...

(...) O estilo narrativo é poderoso. Seco, assertivo, direto, às veses quase telegráfico. A escrita é, visivelmente, de um militar, com experiência operacional, e forte espírito de liderança, que quer "chegar, ver e vencer", mas que vai encontrar uma companhia em farrapos (equipada ainda com a velha Mauser, sem fardas novas, mal alimentada, isolada, desmoralizada, mal vista pelo comando do setor, sediado em Catió).

É decididamente um militar que sabe que uma companhia vale pelo seu comandante operacional, e que quer fazer jus à sua divisa "Aut Vincere Aut Mori" (Vitória ou Morte). Pelo que nos é dado inferir da leitura do livro, é um militar de "mão cheia", para usar uma expressão cara ao cor inf ref Arada Pinheiro, seu amigo e camarada (um ano mais novo na Escola do Exército), e que não regateia apoio aos seus soldados, mesmo que com isso tenha que enfrentar a incompreensão e até a desconfiança da hierarqui militar (em Catió e em Bissau). (...) 

1. Continuação da leitura do livro de  Manuel Andrezo, pseudónimo literário de Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de 1965 e julho de 1967. 

Com mais três comissões, primeiro na Índia, depois em Moçambique, como capitão (1962/64) e  outra em Angola, já como major (1971/73), é um militar condecorado com Medalha de Prata de Valor Militar com palma, Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, Cruz de Guerra de 2.ª classe, Ordem Militar de Avis, grau Cavaleiro, Medalha de Mérito Militar de 3.ª classe e Prémio Governador da Guiné. 

Participou no 25 de Abril, como major, tinha então 41 anos e estava colocado na EPI, Mafra. Em esposta ao "Inquérito a 13 generais de Abril", por Adelino Gomes, jornalista do "Público", respondeu, à pergunta "O que sonhava enquanto militar, enquanto cidadão e enquanto indivíduo, no 25 de Abril?", o seguinte: 

"Mais igualdade, melhores condições de vida, encontrar uma solução que não nos desonrasse nem o povo nem os militares, para o Ultramar."

Está à beira de fazer 90 anos (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933). Vive em Lisboa, víuvo mas rodeado de bons filhos e netos. Em sua honra e para nosso prazer e conhecimento, publicamos  mais um pequeno apontamento das suas memórias, neste caso relativo ao seu dia-a-dia em Bedanda, à frente da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, entre meados de 1965 e meados de julho de 1967. 

O seu "alter ego", cap Cristo, mesmo sem orientações superiores, já na altura procurava pôr em prática a "ação psicossocial" que alguns de nós pensa(va)m ser obra de Spínola e do seu estado-maior... No essencial, e desde cedo, os militares portugueses (a começar pelos comandantes operacionais) se aperceberam que aquele tipo de "guerra subversiva" não se podia ganhar só pela força das armas, e que era preciso ir muito mais longe, ou seja, conquistar ou reconquistar (no caso de balantas, biafadas, mandingas, nalus...) a confiança das populações... O episódio chama-se "Um dia diferente" (pp. 337/339).


Pondo as mulheres a voltar a pescar... 
peixe e camarão

por Manuel Andrezo / Aurélio Manuel Trindade

A alimentação em Bedanda era deficiente, tanto para os militares como para a população civil. Para atenuar tais deficiências o capitão incentivou a cultura do arroz, a plantação da mandioca e da mancarra, essenciais para a alimentação da população nativa. 

Para acompanhar o arroz, o capitão entendeu que era preciso peixe à refeições, e que isso seria resolvido se as mulheres fossem pescar. Após uma conversa com a Tia e outras mulheres grandes, ficou decidido que as mulheres de Bedanda iriam pescar quando quisessem e que o capitão daria uma secção de escolta sempre que a solicitassem. 

Esta decisão caiu tão bem entre as mulheres que passaram a ir pescar todas as semanas pelo menos uma vez. Juntamente com o peixe vulgar também pescavam camarão. Por decisão das mulheres o camarão seria oferecido ao capitão como agradecimento por tudo o que ele estava a fazer em prol da população.

Uma vez, logo nos primeiros dias de pesca, compareceu no quartel a Tia com meia dúzia de mulheres e informaram o Lassen que queriam partir mantanhas ao capitão. E o Lassen informou o capitão. O capitão mandou entrar a Tia e as outras mulheres.

─ Nosso capitão, as mulheres da tabanca estão muito contentes com nosso capitão. Tudo que nosso capitão quiser das mulheres elas fazem.

─ Obrigado, Tia. O que eu quero é que mulheres da tabanca ajudem nosso capitão pescando e trabalhando na bolanha, para haver muito peixe e muito arroz para alimentarem marido e filhos. Vocês têm pescado muito.

─ Temos, nosso capitão. Quando vamos à pesca trazemos muito peixe para comer e mulheres muito contentes por nosso capitão dar protecção com soldados quando elas vão pescar. Elas decidiram que quando vão pescar também trazem camarão que é para nosso capitão. Não é muito mas foi o camarão pescado hoje de manhã.

─ Tia, muito obrigado pelo camarão. Nosso capitão está muito contente com Tia, com mulheres grandes e com todas as mulheres da tabanca por me oferecerem camarão. Nosso capitão gosta muito de camarão e isso vai matar-lhe saudades de Lisboa. Logo nosso capitão vai a tua casa falar contigo e agradecer o camarão que trouxeste.

─ Fico muito contente por nosso capitão ir na minha casa. Nosso capitão não tem que agradecer à Tia ou mulheres da tabanca. A Tia e mulheres da tabanca é que agradecem muito nosso capitão. Nosso capitão pode contar sempre com mulheres da tabanca.

─ Obrigado, Tia. Agradece por mim às mulheres da tabanca. Até logo.

─ Até logo, nosso capitão.

Assim se estabeleceu uma norma em Bedanda. Todas as vezes que as mulheres iam à pesca, traziam camarão para nosso capitão. Camarão muito pequenino, diferente do que se comia em Lisboa mas a que os oficiais da Companhia chamavam um figo. Como nestas coisas não havia propriedade privada, o capitão levava sempre o camarão para a messe, mandava-o cozer e todos petiscavam acompanhando o petisco com cerveja.

Tinha sido de facto um dia diferente. Surgira algo que justificava uma paragem na rotina de todos os dias e que permitia que os oficiais, com um copo de cerveja na mão e um prato de camarões, conversassem amenamente sobre as suas recordações. Um elo que os unia a todos, eles que quase todos os dias jogavam a sua vida em combate e a que tudo se agarravam para se sentirem vivos tanto física como psicologicamente.

Procedendo com a delicadeza tradicional da Guiné que exige que nada se ofereça na hora a uma oferta acabada de receber, porque isso seria ofensivo, o capitão mandou preparar uma encomenda para à noite a levar à Tia, e que seria a retribuição da delicadeza e nobreza de alma que a Tia e as mulheres da tabanca demonstraram. Nessa noite o capitão foi a casa da Tia para partir mantanhas e levou-lhe azeite, arroz, açúcar, conservas e pão. Eram as coisas que os homens e as mulheres da tabanca mais apreciavam. A Tia ficou muito contente por receber o capitão em sua casa com as lembranças que lhe levou.

─ Obrigado, nosso capitão. É uma honra para a Tia receber em sua casa nosso capitão, principalmente quando vem de propósito partir mantanhas. Nosso capitão pode sempre dispor casa da Tia como se fosse sua.

─ Obrigado, Tia. Se me deres licença gostaria de me sentar contigo na varanda um pouco, para conversar, descansar e apanhar o fresco da noite,

─ Fico contente nosso capitão querer ficar sentado comigo na varanda. Vamos, nosso capitão, vamos sentar.

Aí ficaram, capitão e Tia, a conversar como dois bons e grandes amigos, mais de duas horas. Em dado momento, porque a noite já ia avançada, o capitão despediu-se da Tia.

 ─ Agora vou-me embora, Tia. Vou até ao quartel e vou dormir. Obrigado por me receberes em tua casa e por me fazeres companhia. Até amanhã.

─ Até amanhã, nosso capitão. Venha sempre pois tenho muito gosto em o receber.

[Seleção / revisão e fixação de texto / título / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9362: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (11): Fragmentos Genuínos - 9

(**) 20 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

(***) Vd. poste de 5 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

(****) Último poste da série "Notas de leitura" > 30 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
As atas do Conselho prosseguem dominadas pelas discussão de regulamentos, normas, concessão de créditos, a Província vai se dotando de legislação, bem interessante para quem investiga cotejar estas atas com o Boletim Oficial da Guiné e as leituras possíveis que passavam, por exemplo, pelos jornais e pelo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Aqui e ali ouve-se a voz do povo, é o caso do padre missionário que vem acusar a autarquia de Bissau de crueza os indígenas que não pagam a tempo e horas, protestando que há dois pesos e duas medidas; ouve-se a queixa de um conceituado comerciante, Mário Lima Wahnon, que manifesta indignação com a concorrência desenfreada no mercado de amendoim, o que leva outro conselheiro a dizer que não há alfaiate ou sapateiro que não cheguem à Guiné e prontamente queiram enriquecer, sabe Deus como. A descolonização já bate à porta, chegámos a 1957 e as perturbações com a União Indiana movimentam manifestações e vozes calorosas a exaltarem o Portugal uno e indivisível.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (7)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Nunca esquecendo que estes volumes depositados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm lacunas, há saltos da cronologia, por exemplo passou-se de 1951 para 1955, dá para ponderar o que distingue uma governação como a de Sarmento Rodrigues e como as dos seus sucessores acabaram por legitimar o espírito de modernização das instituições, consolidando infraestruturas, abrindo estradas, inaugurando pontes e fontanários, cuidando dos equipamentos de saúde, criando o liceu de Bissau, por exemplo. Referimos no último texto que já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim, iremos verificar grandes ausências do governador por motivos de saúde. Participa no Conselho de Governo um elemento missionário, adiante será mencionado pela importância da sua intervenção. A partir de outubro de 1955 encontramos as atas com bastante regularidade, vejamos sumariamente os assuntos tratados: plano quadrienal de trabalho; crítica por não se incluir no mesmo a construção de silos para a mancarra; há largas referências à necessidade de um grandioso plano de estradas; discute-se a reforma dos serviços de assistência pública, bem como o orçamento geral da província para o ano económico de 1956; concedem-se bolsas de estudos e autorizam-se créditos; é posto à discussão o horário de trabalho dos estabelecimentos comerciais; referencia-se a tuberculose pulmonar como um importante desafio e há consenso para a transformação da missão do sono em missão de combate às endemias; é aprovado uma sobretaxa sobre o preço da gasolina e aprovado o abono sobre as ajudas de custo. Deteta-se que a partir de novembro é contínua a ausência do governador, quem preside ao Conselho é o vice-presidente, o Diretor da Fazenda. É na sessão de 29 de novembro que intervém o padre Cruz Amaral, tinha a ver com uma comunicação que este fizera ao governador, então doente na residência, manifestara discordância de opinião quanto às observações do padre missionário. E abordava publicamente a questão por que se via forçado um esclarecimento.

Assim:
“Há tempos fora abordado por alguns indígenas que lhe disseram ser obrigados pela Câmara Municipal a pagar o chão que ocupam com as suas moradias, vulgarmente de adobes cobertas a colmo. Que o mínimo que lhe cobravam era 200 escudos mensais, afora outros encargos. Fiquei impressionado, solicitei a pessoa da minha confiança para que me obtivesse elementos mais concretos e precisos, pois o assunto interessava sobre maneira ao representante dos interesses dos indígenas no Conselho de Governo. Essa pessoa trouxe-me a mesma notícia devidamente retificada. Os indígenas de Bissau, qualquer que seja o seu grau de assimilação, além de todos os impostos, pagam à Câmara Municipal 100 escudos por cada moradia e se a moradia for alugada passa a pagar 200 escudos; e quando destinada a estabelecimento comercial o imposto camarário pelo terreno que ocupa vai de 400 a 500 escudos.”

E o sacerdote observava a escassez de proventos dos indígenas e a crueza das execuções fiscais, quem não pagava a Câmara arrancava-lhe as portas e delas fazia coleção em monte no recinto do município. E assim verberou:
“Devo dizer a Vossas Excelências tais notícias que me deixaram verdadeiramente atordoado, não se pode ficar impassível perante tal violência. Numa terra como esta em que os CTT não cortam o telefone aos assinantes que estão 2 anos e mais sem pagar; onde a Emissora local sente repugnância em enviar para as execuções fiscais as taxas de recetores atrasadas, nesta terra, vamos descaridosamente arrancar as portas de domicílios que ocupam um chão que antes de ser do município já era dos indígenas. Isto vai contra o que há entre nós de tradicionalmente bom e cristão e compromete bastante os altos princípios de assimilação, de civilização humana que apregoamos”.

As discussões de caráter económico começam a vir à tona, veja-se o exemplo do período antes da ordem do dia aparecer o seguinte alerta vindo de um comerciante, Mário Lima Wahnon: “Avizinha-se o comércio da mancarra. Encerrou-se o comércio nalgumas localidades devido às taxas muito elevadas das licenças de comércio. Mas sei que apesar disso alguns comerciantes servem-se de camiões para comprarem mancarra nas povoações indígenas, com manifesto prejuízo daquelas que se sujeitam a pagar as taxas progressivas e despesas com a manutenção do estabelecimento todo o ano. Esta situação não deve continuar devendo o Governo exercer rigorosa fiscalização sobre este comércio ambulante e clandestino. Também se aproxima a campanha de arroz. Na área de Fulacunda é costume aparecer uma legião de homens e mulheres (chamados cristãos) que conduzem garrafões de água-ardente e tabaco para comprarem arroz de casca e de pilão nas diversas populações indígenas, também com manifesto prejuízo dos comerciantes legalmente estabelecidos. O governo proibiu a comercialização de arroz de pilão, mas a verdade é que o comércio de arroz de pilão continua todo o ano. Começou estes dias a venda de arroz de pilão no porto de Bissau e no mercado”.

Deu-lhe réplica o chefe dos Serviços de Administração Civil, alegando que o problema das limpezas dos produtos é um problema cíclico, observando que o mal tem outra origem, e não se coíbe de dizer qual: “Estamos habituados a ver chegar à província pedreiros, sapateiros, alfaiates, mulheres humildes e homens humildes que nunca tiveram outra profissão se não as que ficam apontadas; no entanto, ou porque o profissão lhes parece deprimente ou porque a sua ânsia é apenas a de enriquecer, 3 dias depois já aparecem licença para estabelecimentos de uma taberna ou de qualquer ramo comercial, intitulando-se comerciante”. Queixa-se que deveria haver regulamentação para instituir a carteira profissional, esta não existe e lembra que se dão fianças aqueles que adquirem camiões que permitem ir às tabancas utilizando meios ilegais e fraudes.

O Conselho continua a ser presidido pelo Diretor da Fazenda, o esforço legislativo prossegue: normas sobre os serviços de administração e funcionamento dos armazéns ou depósitos fiscalizados de regime aduaneiro, revisão do Regulamento dos Serviços das Alfândegas da província da Guiné; normas sobre a entrada, trânsito e saída de peles; regulamento de transportes em automóveis; tabelas de emolumentos a cobrar nos serviços públicos da Guiné. A 25 de abril de 1956 comunica-se a exoneração de Diogo de Mello e Alvim e a nomeação de Álvaro Silva Tavares, este presidirá à 1ª sessão do Conselho em 1 de outubro.

Paira já no ar a chamada questão da Índia e o chefe dos Serviços de Administração Civil apresenta uma moção a propósito de uma manifestação da população de Bissau de solidariedade com o governo central, no sentido de que a nação portuguesa é una, indivisível, e que a província toda está em íntima comunhão com estes princípios. “O Conselho de Governo não pode ficar indiferentes às interpretações que têm havido na ONU, em que o nosso delegado tem procurado mais uma vez demonstrar a inanidade dos conceitos de outros que, evidentemente, ainda não terão a capacidade suficiente para compreender o que seja uma unidade na diversidade”, moção que foi aclamada pelo Conselho com vozes de muito bem e apoiado.

(continua)

Avenida da República, Bissau
Pormenor da Catedral de Bissau
Estatueta Bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)