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Caro Luís, conforme combinado, junto depoimento breve sobre mortos intangíveis, aqueles que se colam à existência, que ultrapassam a necessidade de os esquecermos.
Acerca do tema que agora circula no blogue (2), queria também dizer o seguinte: mortos que ficam são os que matamos com as nossas mãos; mortos dolorosos são os que não podemos enterrar e que nos culpam por um determinado acto precipitado; mortos são aqueles cuja morte não percebemos como Uam Sambu que morreu nos meus braços ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, num estúpido acidente de G3. O morto que vou falar tem a ver com uma amizade profunda, o insólito da notícia no dia em que me casei pelo civil.
Um abraço para todos
do Mário.
Há mortos que nunca se enterram
por Beja Santos
A 7 de Fevereiro de 1970 consegui telefonar de Bambadinca para a Cristina. Era o nosso casamento por procuração, e havia festa lá em casa depois do conservador ter saído. Ela insistia, cautelosa, na pergunta:
- Já recebeste a minha carta?.
Naquele dia não tinha chegado o correio, de modo que subi a rampa para o quartel de Bambadinca a perguntar o que de tão extraordinário vinha naquela carta. À entrada do corredor, quando íamos almoçar, o Tenente Pinheiro deu-me o meu correio e, claro está, fui logo abrir o correio da Cristina. É de lá que sai a notícia necrológica que te envio, um verdadeiro coice que me atirou à parede, fui aos urros para o meu quarto, estupidificado a ver o Carlos Sampaio, li, voltei a ler, disse que era impossível, ontem chegara a sua carta cheia de promessas para o nosso futuro como editores. Lembro ainda a entrada no quarto do Abel Rodrigues (Alf Mil da CCAÇ 12) que conversou comigo. Lá me enxuguei e fomos almoçar.
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Norte de Moçambique > Alf Mil Art Carlos José Paulo de Sampaio, natural de Anadia, mobilizado para Moçambique, pelo BCAÇ nº 10, em 12 de Abril de 1969.
É verdade que já tinha perdido muita coisa (1) e até Abril de 1970 ainda irei perder mais. Estou à vontade para testemunhar que há mortos, inteiros ou aos pedaços, que nos acompanham e enformam o carácter. Até desaparecermos deste mundo.
Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. último post do Beja Santos > 4 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1730: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (44): Uma temerária e clandestina ida a Bucol
(2) Vd. posts de:
8 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1739: É ruim de se ver mas faz parte da(s) nossa(s) memória(s) (Luís Graça / David Guimarães / José Martins)
7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)
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