terça-feira, 8 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1739: É ruim de se ver mas faz parte da(s) nossa(s) memória(s) (Luís Graça / David Guimarães / José Martins)

Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Xitole > CART 2716 (1970/72)> 1970 : O fado da guerra, das minas e armadilhas... Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, os dois sapadores da CART 2716 ... Um deles, o Quaresma, não voltaria a casa, vivo e inteiro (1)...

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.



1. Comentário do editor do blogue, que seguiu para a tertúlia, a propósito do conteúdo do post anterior (2):

Amigos & camaradas:

São imagens que podem chocar alguns de nós... Hesitei bastante antes de as inserir, desde há três meses... Pedi ao Carlos para as enquadrar... Chegou-me o texto há pouco tempo, já em Abril... Têm uma história, um contexto, que é preciso entender... De qualquer modo, não as podemos ignorar, apagar, destruir, retocar, esquecer... É ruim de se ver, como diz o Carlos, mas fazem parte de nós, das nossas vivências, emoções, memórias... O horror começava no teatro de operações e viajava, de helicóptero, até ao Hospital Militar 241, ao seu bloco operatório, ao seu serviço de RAio X, às suas enfermarias... Homens mutilados, presos por um fio à vida e ao frasco de soro... Dos mortos, ou dos seus restos, faziam-se embrulhos, e levavam-se às costas, ou em padiolas improvisadas até ao aquartelamento mais próximo. Para os entregar ao cangalheiro e aos caixões de chumbo... Os presuntos: era a cruel expressão que usavam os vivos para falar dos mortos ou do que restavam deles...

Algumas das fotos que me chegaram, tiradas pelo Carlos Cardoso ou pelos seus amigos e camaradas da radioligia, durante a sua comissão no HM 241 (Bissau, 1972/74), não as publico mesmo, por que são demasiadas mórbidas, chocantes ou gratuitas... ou podem ser vistas como tal.

De qualquer modo, é precisar lembrar que o Hospital Militar 241 era o terminal da guerra, da morte e do horror... Alguns de nós também passaram por lá, pelo HM 241... O HM 241 e os camaradas que lá trabalharam - médicos, cirurgiões, enfermeiros, radiologistas, maqueiros, etc. - merecem uma palavra de apreço e de homenagem... Sem esquecer os pilotos, os técnicos de manutenção aeronáutica e as enfermeiras-paraquedistas.... E em primeiros lugar em nossos valorosos e valiosos 1ºs cabos enfermeiros que alinhavam connosco no mato e que corriam os mesmos riscos...

No HM 241 trabalhava-se em condições difíceis, de grande sobrecarga, de grande stresse físico e psicológico, que a guerra não dava descanso ao seu pessoal. Em muitos casos, lá operaram-se verdadeiros milagres. O Marques, que caiu numa mina anticarro comigo, em 13 de Janeiro de 1971, é um deles. O HM 241 era simultaneamente inferno e porto de abrigo, terminal da morte e do horror, mas também porta de salvação...

Obrigado, Carlos, pela tua sensibilidade, pelas fotos que juntaste e nos enviaste, que inevitavelmente despertaram em nós emoções fortes, associadas à lembrança da morte, da mutilação e da dor dos nossos camaradas...


2. Comentário do David Guimarães:

Luís, restantes camaradas e em especial Carlos:

Creio que andamos a escrever por aqui coisas e mais coisas, contando verdades e mais verdades e a história continua....

Bem, chega à baila o assunto dos mortos... Mas que coisa, mortos!.... Não sendo que se fale em exagero, não os podemos esquecer, eles foram gente que como nós queriam viver mas lerparam - termo da gíria militar que tão bem conhecemos. .. A guerra, a maldita guerra, que a certa altura, mesmo dentro do blogue, parecia algo que nós passámos, com enfim um ou outro morto... Até pdoeria parecer que tinha uma coisa mais ou menos boa...

O assunto, ora abordado, vem mesmo a talho de foice, com todos os cuidados que possamos ter ou não...

Conto um episódio - para explicar Espadanedo e Bissau, o mesmo soldado enterrado em dois lados (3)... Aconteceu... está lá aonde ???

Contarei pela rama dado, que o fulcro da questão está num ponto.... Na CART 2716 houve mortes - mas porque não haveria de haver mortes? Houve - não me vou agora referi a nomes pois eles estão por aí já relatados... Um dos meus camaradas que morreu lá foi ele em caixa de pinho.... Já morto rumo ao Hospital Militar... Ficou o espólio à guarda do Delegado de Batalhão e ... foi roubado.

Eu estava na altura de férias e, como conhecia a casa desse camarada, o Delegado do Batalhão pediu para eu ir resolver o assunto juntos dos pais para que não reivindicassem uma máquina fotográfica e um rádio... Enfim, não interessa agora os pomenores...

Eu, David Guimarães, saio do Porto em comboio e vou falar com a mãe do ex-camarada... A primeira coisa que ela me perguntou, com a mágoa de mãe:
- Ele está inteirinho ? - Eu lá menti:
- Sim, minha senhora, esteja sossegada quanto a isso....
- E o fio de outro que ele usava?
- Bom, minha senhora, aqueles indígenas lá o acharam e levaram possivelmente ... Deixe lá, tenha lá paciência, seu querido filho está connosco...

Amigos, este nosso camarada morreu a armadilhar e a colocar a cavilha de segurança no local próprio de armadilha: a granada era aquela granada instantânea vermelha com um cordão de aço helicoidal em volta... Isso rebentou-lhe nas mãos e em frente à zona do peito e pescoço (1)....

Curioso, não resolvi caso nenhum de espólio, mas isso é outro assunto que não vem ao caso de agora, um dia virá noutro contexto...

Nós, todos os combatentes, sabíamos como é que um individuo ficava depois de morto - em caso de mina por baixo de pés, nas minas anticarros em que se era projectado ou com rocketadas na tromba... Mas para a família contava muito saber se o corpo ficou ao menos inteirinho...É assim porque é assim e temos que respeitar...

Mas agora, se alguém mais expedito, resolve ir ver o que sobra do filho, do marido, sei lá... nas tumbas espalhadas por esse Portugal fora e mesmo nos teatros das operações... Valerá a pena haver segundo luto agravado com (ou pelas) nossas mentiras? E se alguém resolve ir ver esse meu camarada e não lhe encontra a cabeça? E se... e se...

Lá vem a história de Espadanedo e Bissau (3) e tantos outros casos que desembarcavam em Bissau em caixinhas... Sim, caixinhas, de madeira, bem pequenas que chegavam perfeitamente para albergar o que sobrou do morto...

O Vinhal sabe - falei com ele - desta outra hitsória: eu conhecia o alferes que andou na guerra para os seus lados e era bom homem... Rebenta-lhe a mina, creio que não mão - Vinhal corrige-me, se não for caso disso - e o que que sobrou? Este assunto também já foi aqui falado por mim e bem corrigido pelo Vinhal (4)... Enfim, um caso do caraças.

Creio que aqui hoje fica dada a resposta a todos os casos idênticos... Não vale a pena esconder a verdade... Claro que temos que mostrar isto a todos dizendo:
- Isto é verdade, olhai, era assim...

E na morte não há os bons e os maus... E as balas são tão assassinas atiradas por nós ou aqueles a quem combatíamos... E nenhuma bala, nenhum mina, nenhuma bazukada era dada com amor... Ela ia e quem dera que acertasse, mesmo quando muitos de nós tinham preocupações éticas, que na guerra também as havia...

Creio que agora chegamos ao epíteto da questão dos mortos... Morreu-se, a tiro, à canhoada, à facada, com enfartes e o que sobrava na maioria das vezes era isso, que aí está patente, um braço, um perna, uma cabeça... Choca sim, mas é bom que não se ignore... No entanto creio que agora basta, não vamos nós criar novos lutos onde eles já tinham sido totalmente aliviados... Porque, se as peripécias de guerra eram diferentes, o resultado de um morto era assim - isso que está ai patente, e que na maioria dos casos está contado....

Não chocado, ciente dos casos, gostaria que ninguém venha ainda chocar-se ao descobrir que seu filho, marido ou irmão não existe no cemitério onde foi aberta a sua campa que ainda visitam e enfeitam com flores e onde rezam...

Espanadelo pou Bissau ? E aqueles que ficaram sepultados numa frondosa copa de uma árvore de onde só o camuflado sobrou naquele clima tropical ?

Abraço, David Guimarães
Ex-Furriel Miliciano Atirador
Minas e Armadilhas
CART 2716 - Xitole 1970/72

3. Comentário do José Martins:

Caros camaradas: As imagens são impressionantes (1). Mas esta tema - a morte, e tudo o que ela envolve - não deve ser esquecido.

Há mentiras, que os próprios acontecimentos geraram, e que agora se pretende apresentar como libelo acusatório contra quem as usou, que se traduziram numa mentira de amor para com aqueles que puderam fazer o seu luto, já que nada mais lhes restava.

Um dia - porque há sempre um dia - que conseguiremos falar disso e, sobretudo, desfazer alguns pruridos de consciência.

José Martins
Ex- Fur Mil Trms
CCAÇ 5 -ç Gatos Pretos
Canjaude (1968/70)
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)

(2) Vd. post de 7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

(3) Vd. post de 22 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1684: Sepultado em Cinfães e em Bissau: 1º Cabo Enfermeiro Correia Vieira, da CCAÇ 1419 (Casimiro Vieira da Silva / A. Marques Lopes)

(4) Vd. post de 18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P968: A morte do Alf Couto, de minas e armadilhas, CART 2732, Mansabá, Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

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