segunda-feira, 19 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6762: Antropologia (19): Os muçulmanos face ao poder colonial português e ao PAIGC (Eduardo Costa Dias)










Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Festa do  Ramadã... Imagens (belíssimas) do nosso saudoso camarada Zé Neto (1929-2007), convertidas de slides, muito usados na época.

Fotos: © Zé Neto / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.


Simpósio Internacional de Guiledje (Guiné-Bissau, Bissau, 1-7 de Março de 2008)> Comunicação de Eduardo Costa Dias (ECD), novo membro da nossa Tabanca Grande (*)


Bissau > 4 de Março, 17h30/18h00 > Painel 1 > Guiledje e a Guerra Colonial/Guerra de Libertação. Moderador: João José Monteiro (Universidade Colinas de Boé)

Título da comunicação de ECD > Papel e influência das dinâmicas sócio-religiosas e políticas nos movimentos de libertação nacional na África Ocidental: o caso da Guiné-Bissau

Sinopse da comunicação

O assunto desta comunicação tem directamente a ver com as diferenças de peso, de dinâmica e de tempo de intervenção que muçulmanos (**) e seguidores das religiões ditas tradicionais tiveram no movimento de libertação nacional liderado pelo PAIGC na Guiné-Bissau.

Trata-se, do meu ponto de vista, de um tema de grande importância para a compreensão, por exemplo, das razões sócio-politicas e político-religiosas da, globalmente, menor presença dos muçulmanos durante todo o período da luta de libertação, nas fileiras da guerrilha.

Com efeito, embora muitos muçulmanos tivessem, a título individual, integrado a guerrilha e alguns nela desempenhado papéis político-militares de relevo, durante a luta de libertação, a larga maioria dos membros do establishment muçulmano guineense (dirigentes das vários ramos guineenses da confraria qadriyya e da tijâniyya, imãs, letrados, régulos, etc.) teve um papel pouco colaborante com o PAIGC e muitos mesmo de assumido colaboracionismo com o poder colonial.

Nesta comunicação procurarei, descrevendo o quadro sócio-religioso da Guiné-Bissau e enumerando alguns dos acontecimentos mais marcantes das relações tecidas, antes e durante a luta de libertação, pelos dignitários muçulmanos guineenses com o poder colonial, questionar globalmente o papel dos vários grupos religiosos não cristãos durante a luta de libertação nacional e, numa dimensão mais precisa, aduzir elementos para a compreensão das razões da manifesta hostilidade por parte da maioria do establishment muçulmano guineense para com a luta de libertação.

Na minha opinião, as razões desta hostilidade não se radicam, no fundamental, na eventual incompatibilidade entre o Islão e o ideário filosófico-político proclamado pelo PAIGC ou na simples discordância sobre os métodos seguidos por este movimento na luta pela independência da Guiné-Bissau, mas sim em questões fundadas na política de alianças com o Estado seguida pelos dignitários político-religiosos muçulmanos guineenses e de um modo geral pelos dos países vizinhos desde os anos 1880-1890. Entroncam, na política dita do muwalat (“acomodação sob reserva”/”coabitação” com o Estado) encetada pelos dignitários muçulmanos no 3º quartel do século XIX em toda a África Ocidental e que, como o atestam, no caso guineense, a antiga “tradição” de aliança com o Estado colonial, a oposição do establishment muçulmano à luta de libertação e a “reentrada” na área do poder de muitos dignitários passado pouco tempo sobre a independência da Guiné-Bissau, transitou, nos seus contornos fundamentais, da situação colonial para a pós-colonial.

Cabral, fino conhecedor do xadrez social e político-religioso da Guiné-Bissau (***), tinha, bem antes do início da luta de libertação, consciência da tendência “estrutural” do establishment muçulmano para acomodar-se ao “poder do momento”,  qualquer que ele seja! Disse-o nos seus escritos, teve-a em atenção no delinear da estratégia de mobilização das populações para a Luta. (****)

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Julho de 2010 >  Guiné 63/74 - P6758: Tabanca Grande (231): Eduardo Costa Dias, antropólogo, CEA / ISCTE / IUL

(**) Alguns dos nossos marcadores/descritores, relacionados com esta problemática:

Animismo (2)
Antropologia (21)
Balantas (25)
Cherno Rachide (9)
Colaboracionismo (6)
Corão (2)
Fulas (45)
Historiografia da presença portuguesa (30)
Islamismo (17)
Islão (10)
Mandingas (38)
Mutilação Genital Feminina (13)
Ramadã (2)
Religião (14)
Tabaski (1)


(***) Vd., entre muitos outros, o poste de 30 de Junho de 2008  > Guiné 63/74 - P3000: Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

 (...) Quanto aos fulas, o fundador, dirigente e teórico do PAIGC fala deles em termos de uma forte “estratificação social”. Em primeiro lugar, temos (i) os chefes, os nobres e os dignatários religiosos (por ex., o Cherno Rachid de Aldeia Formosa); vêm depois, (ii) os artesãos e os jilas ou comerciantes ambulantes (que circulam pela Guiné, Senegal e Guiné-Conacri); finalmente, e na base da pirâmide social , (iii) os camponeses.

Sobre o grupo dirigente, Amílcar Cabral diz o seguinte:

“Os chefes e a sua comitiva têm ainda, a despeito da conservação de certas tradições relativas à colectividade das terras, privilégios muitos importantes no quadro da propriedade da terra e da exploração do trabalho de outrem. Os camponeses que dependem dos chefes são obrigados a trabalhar para eles um certo período do ano”.

Daí chamar aos fulas, aliados históricos dos portugueses, um grupo semi-feudal.

Os artesãos desempenham um papel importante na sociedade fula, constituindo um núcleo embrionário de uma indústria de transformação da matéria-prima: do ferreiro, na base da escala, até ao artesão do couro. Os comerciantes ambulantes (jilas) são os que têm, na prática, a possibilidade de acumular dinheiro. Por fim, os camponeses: em geral desprovidos de direitos, seriam os “verdadeiros explorados da sociedade fula”.

A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.

Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.

Estranha-se, não haver aqui uma referência ao fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema. (...)

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