1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2013:
Queridos amigos,
Para mim é uma completa surpresa, o depoimento destes luso-americanos que combateram na Guiné.
Mas o livro vale a pena ser lido na íntegra, há para ali histórias espantosas, é bem provável que o nosso confrade Carlos Cordeiro ande à cata destas lembranças, lá pelos Açores, afinal temos que tomar em conta os que se dispersaram, sobretudo pelas europas e américas.
Maravilha confrontar este antes e depois, no antes aparecem sorridentes com um grande amigo, depois a cantar ou no escritório, talvez em Massachusetts ou na Califórnia.
Temos de os desencantar e trazê-los para o blogue, é trabalho para o Nelson Herbert e para o João Crisóstomo, entre outros.
Um abraço do
Mário
Das guerras africanas à diáspora americana
Beja Santos
Eduardo Mayone Dias é um conceituado investigador universitário há muito radicado nos EUA, portugueses e Califórnia é nele um tema central de estudo, a diáspora, os portugueses na guerra do Vietname, a literatura portuguesa na Califórnia, etc., são áreas sacramentais da sua pesquisa. Adalino Cabral tem feito parceria com Eduardo Mayone Dias nos estudos que falam de guerra onde intervieram os portugueses. Eles explicam na introdução o móbil do trabalho: “Pretendíamos obter um relato pessoal da experiência de campanha. Fizemos o possível para obter testemunhos espontâneos com a sua natural oralidade. E o discurso recolhido foi transcrito com a maior exatidão. Respeitámos a irrupção do “portinglês” na língua de origem. A escolha dos nossos entrevistados foi quase aleatória. Catorze entrevistas foram gravadas em Massachusetts e três na Califórnia. Os dezassete que tão generosamente se prontificaram a participar neste empreendimento refletem bem o arco-íris regional da nossa emigração nos EUA: onze açorianos, três madeirenses e três continentais. Oito dos nossos entrevistados foram mobilizados para Angola, seis para Moçambique e três para a Guiné. Quase todos entraram em combate. Mesmo os que atuaram na retaguarda eram suscetíveis de serem atacados perto dos postos ou nas suas deslocações. Destes testemunhos deduz-se uma considerável ausência de preocupação do jovem soldado ante o que o esperava ou o que dele se esperava. Passivo, aceita o que lhe impõem, não questionando a validade daquela guerra. Era “um dever que a gente tinha”. As cenas de combate são dadas com relativa moderação, numa forte economia de pormenor. Nas emboscadas enfrentava-se um inimigo invisível. Trocavam-se uns tiros e o inimigo desaparecia. A religião – a crença mais do que a participação em cerimónias religiosas – representou um importante papel na manutenção do moral de alguns dos nossos entrevistados. O intenso culto micaelense ao Senhor Santo Cristo dos Milagres motivou um soldado e a sua família a que se deslocassem, depois do regresso daquele, ao templo de Ponta Delgada com o fim de pagar duas promessas de 500 escudos cada. A fascinação por África, tão comum nos portugueses que por lá passaram, transparecem vários dos depoimentos. A recordação da dureza da vida em estado de guerra adoça-se aqui e além pela ironia e quase mesmo pela caricatura”. O livro organizado por Adalino Cabral e Eduardo Mayone Dias intitula-se “Das guerras africanas à diáspora americana”, Peregrinação Publications, 36 Brayton Avenue, Rumford, RI 02916, USA.
David de Sousa Barros nasceu em Terra do Raposo, Santo Espírito, Santa Maria. Trabalhou na taberna e dedicou-se à lavoura. Em 1971 emigrou para os EUA, trabalhou na construção civil em Hudson, Massachusetts. Fez a recruta nos Arrifes, em Abril de 1968, daqui seguiu para Santa Margarida, levava um terço para rezar e um crucifixo no pescoço. Foram diretos para Cacine, fala dos patrulhamentos e das emboscadas. Recorda os seus mortos, os momentos de perigo, lembra que Cacine tinha uma loja de um português, mercearia e taberna, era ali que ia beber cerveja. Nunca esqueceu as crianças a pedir comida: “Pediam comida e a gente dava no quartel. A gente quando acabava de comer dava comida. Às vezes a gente não gostava dela mas para eles aquilo era um luxo. À hora de comer eles estavam sempre lá. Acontece que a gente comia e eles comiam”.
Fernando Amaral Dutra nasceu em Madalena, Ilha do Pico. Esteve dois anos num seminário menor, frequentou o ensino liceal e iniciou o seu serviço militar aos 18 anos, foi para a Guiné, era voluntário. Fez o curso de mecânico eletricista. Foi para a Guiné em 1964. O primeiro destino foi Nova Lamego. Foi ferido três vezes. “A primeira vez foi um estilhaço de morteiro, era fogo para cá e fogo para lá, eles de um lado do rio, do Farim, e nós do outro lado. E de repente cai uma granada de morteiro no meio das nossas tropas. Oito ficámos todos feridos. Foi bom, foi muita sorte, nas pernas, nos braços e um pedaço de aço na barriga. Estive pouco tempo no hospital”. Embora fosse do quadro permanente, num aceitou a guerra de África, esteve mesmo preparado para passar para o Senegal. Queria vir para a América. Também comandou tropa africana, guardou recordações dos Balantas, eram obedientes. “Os melhores para nós eram os Fulas mas os mais guerrilheiros, aqueles em quem tínhamos mais confiança, eram os Balantas. Naquele tempo, diz ele, o nosso armamento era muito superior, e havia os T-6 e os Fiat e o napalm. Nunca esqueceu do pânico do capelão durante uma operação, a rezar o Padre-Nosso até meio e passando logo para Ave-Maria: “Trocava o Padre-Nosso com Ave-Maria e Ave-Maria com o Padre-Nosso. Oh, coitado, ele tremia com o texto na mão, tremia para todos os lados. E elas caíam. Caíam que era uma coisa séria”.
Jaime Soares nasceu em Santa Maria, trabalhou na lavoura, dedicou-se à pesca, num barco do seu pai, que também era carpinteiro. Emigrou em 1973 e fixou-se em Massachusetts. Assentou praça nos Arrifes e seguiu para Santa Margarida. Foi para o Cacheu. Recorda as patrulhas a dois pelotões. Diz ter comido muita carne de gazela. Recorda os seus mortos, um amigo seu que perdeu um pé e o seu dia inesquecível foi 29 de Julho de 1969. “Um soldado amigo meu, de Santa Maria, morreu numa emboscada. Um soldado de São Miguel pegou nele às costas. A gente tínhamos que atravessar uma área clara, o soldado deixou um morto no chão. Quando quisemos voltar para trás já não pudemos. Viemos embora. Sempre debaixo de fogo. Não pudemos recuperar o corpo. Era o dia da festa da Senhora do Bom Despacho da minha freguesia”. Foi o Jaime Soares da Costa quem cumpriu a promessa: “Fiz uma promessa ao Santo Cristo de São Miguel. A minha mãe prometeu que se eu escapasse da guerra que dava 500 escudos ao Santo Cristo. Eu prometi também 500 escudos. Então quando eu cheguei a São Miguel a gente fomos ao Santos Cristo e demos o dinheiro”.
O livro é profusamente ilustrado. É tocante ver cada um deles aparecer abraçado ao seu melhor amigo, alguns já desaparecidos. Aparece gente a passar a roupa a ferro, ao volante de viaturas, na guerra e depois na América, alguns deles em festas.
A todos os inquiridos os autores perguntaram se valeu a pena. Muitos deles responderam que se tratou de um fútil desperdício, que houve muita vida destroçada e há muita recriminação ao modo como a descolonização se processou. Para que conste.
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11899: Notas de leitura (507): Memórias de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Uma das histórias mais "curiosas" que conheço a este propósito é a de um conhecido, filho de pai português e mãe norte-americana, que, na sequência do início das hostilidades nas colónias portuguesas e estando na eminência de ser recrutado, opta pela nacionalidade norte-americana para escapar à guerra... infelizmente para ele, pouco depois dá-se a escalada no sudoeste asiático e acaba por ir parar ao Vietname.
Entre tanta tralha, desperdício, prosápia e pesporrência que por aí impera, excelente recensão do Mário Beja Santos.
E à consideração de todos nós, os tugas, os maus da fita, os colonialistas:
"Nunca esqueceu as crianças a pedir comida: “Pediam comida e a gente dava no quartel. A gente quando acabava de comer dava comida. Às vezes a gente não gostava dela mas para eles aquilo era um luxo. À hora de comer eles estavam sempre lá. Acontece que a gente comia e eles comiam”.
Abraço,
António Graça de Abreu
Caros amigos e camaradas,
Eu fui ao lançamento deste livro e confesso que tive algumas dificuldades na sua leitura. Beja Santos escreveu, e bem, que alguns depoimentos apontam para a futilidade da guerra no Ultramar. Acrescento que não pela guerra em si, perdas de vida e outras destroçadas, mas pela forma como a descolonização foi feita. Esta foi nojenta, onde pouco ou nada foi respeitado, incluindo, mas não só, aqueles que combateram ao nosso lado.
Para quem ler o livro, reparará na já assimilação da cultura americana onde tudo se faz com objectivos “quase” sempre bem definidos. Atingidos estes,declara-se a vitória, fazem-se as malas e regressa-se casa. Claro que isso contrasta grandemente com o processo de descolonização implementado pelas partes beligerantes na Guerra do Ultramar.
Devo chamar a atenção para o facto dos EUA nunca declararem derrotas, mas sim objectivos falhados o que é bem diferente. Isso leva-os a emergirem mais fortes e solidários numa próxima oportunidade, É a cultura americana no seu melhor, aquela que eu respeito e que me serve de exemplo. Claro que isso se aplica em quase todos os aspectos da vida quotodiana Americana.
Muitos foram os pais que embarcaram para o estrangeiro, diz-se, para tirarem os filhos à guerra do Ultramar, para mais tarde se aperceberem que os estavam levando de mão beijada para a guerra do Vietname. Nalguns casos até levaram os filhos a desertarem. O seu grande erro de percepção é que não era necessário ser-se cidadão americano para se envergar o uniforme dos EUA. Com dezoito anos de idade, cidadão ou não, os mancebos eram obrigados a registarem-se no Selective Service, o nosso Serviço de Recrutamento.
Depois da minha comissão de serviço militar na Guiné, emigrei para os EUA em Julho de 1973. Em Outubro desse mesmo ano não tive alternativa e lá fui registar-me no Selctive Service. A guerra do Vietname estava no seu auge. Sem ser chamado, passei à disponibilidade quando os EUA optaram por m exército voluntário..
No meu caso pessoal tinha duas opções. A primeira seria regressar aos Açores e ser considerado desertor nos EUA, perdendo toda e qualquer possibilidade de regresso. A segunda possibilidade seria ingressar mesmo nas fileiras do exército americano e aí receberia as divisas do posto militar a que teria direito no exército português.
O que acime disse não se aplicaria em casos de guerra onde a NATO estivesse envolvida. Nessa circunstância, se chamado pelos EUA, poderia optar por Portugal.
Um abraço transatlântico,
José Câmara
Excelente observação de José Câmara comparando os pontos de vista de "derrotas" ou "objectivos falhados".
Eu acrescento que é comum ouvir-se comparar a nossa guerra do Ultramar com a guerra do Vietnam e com a guerra dos franceses na Argélia, e até Dien Bien Phu.
Guerras que do ponto de vista das ideologias da guerra fria foi a derrota dos "colonialistas, imperialistas, e fantoches" e a vitória das forças socialistas e progressistas e emancipalistas.
Mas será que os "objectivos" pretendidos por um minúsculo e atrazado País como Portugal seriam mesmo iguais aos de uma descomunal França e da maior potência mundial USA???
Não podemos comparar os objectivos finais, e se o fizermos é porque continuamos com a mania de nos enganarmos como o Salazar quando nos mentia que Portugal era do Minho a Timor.
Os nossos historiadores têm que explicar quais eram os "objectivos" da potência militar tuga, cujos soldados tinham um pente de cinco balas de mauser quando a guerra começou.
Olá companheiros.
O companheiro José Câmara, explica uma situação real, que acontecia a todos nós emigrantes com idade jovem, eu não fui alistar-me, uns dias depois de desembarcar em Nova Iorque, tinha uma notificação na direcção que tinha dado no servi ço de emigração em Nova Iorque, convocando-me a comparecer no Selective Service, tendo respondido a um grande questionário, explicando toda a minha experiência na guerra da Guiné, ao serviço do exército de Portugal, sendo inspeccionado, fotografado, e fiquei de reserve, e felizmente nunca mais fui notificado, mas sabiam que eu existia, e qual a minha localização, no caso de precisarem de mim.
Um abraço, Tony Borie.
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