Vigésimo quarto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Já lá vivia há algum tempo. O seu trajecto era uma espécie de triângulo. Quando estava fora das suas tarefas, era a tabanca com casas cobertas de colmo, que existia perto do aquartelamento, a sede do Clube dos Balantas e a ponte sobre o rio Mansoa. Andava por ali, metia conversa com quem conhecia, nem sempre andava vestido com disciplina, a maior parte das vezes trazia na mão uma garrafita da “coca-cola”, com um líquido da cor da coca- cola, mas não era coca-cola, era alguma água e álcool roubado ao Pastilhas, e um pouco de vinho, às vezes café frio, só para lhe dar a cor, e o cigarro “três vintes”, quase sempre na boca. Desta vez o Cifra, quando tinha terminado as duas primeiras partes do triângulo, foi parado por pessoal militar, quando se dirigia para a terceira parte, que era a ponte sobre o rio Mansoa, o Cifra obedeceu e ficou-se por ali, sentando-se no chão.
Pela manhã, apareceu no aquartelamento pessoal militar e algum civil, vindo da capital da província em três jeeps. Os
militares traziam camuflados novos e os galões luziam nos ombros, os civis traziam calças compridas e sapatos pretos reluzentes, camisa branca, própria de usar gravata, mas sem gravata, com as mangas arregaçadas e chapéu tropical, daqueles redondos, como se vêm nos filmes. Estiveram em conferência com o comandante do agrupamento a que o Cifra pertencia, e quando o Cifra se dirigia para a ponte e foi parado, todos estes personagens lá se encontravam, no corredor que existia ao lado da ponte, pois em cima da ponte estavam várias viaturas militares. Passados uns minutos começa um enorme tiroteio, gritos, algumas granadas foram lançadas para a água, mais tiros de G-3, mais granadas, mais gritos, mais tiros de pistola, mais gritos, mais rajadas de G-3, mais granadas a rebentarem na água, mais gritos, até que passado uns minutos tudo parou, passado outros tantos minutos a cena repetiu-se, e isto sucedeu umas tantas vezes, até que o fumo já começava a encobrir a ponte, nessa altura, as personagens retiram-se, ficando algumas viaturas, e começam a tirar fotos da ponte quase coberta de fumo.
O Cifra esperou por ali, apreciando toda aquela cena de longe, já com a garrafa da coca-cola vazia, que colocou no bolso, pois a referida garrafa era uma importante “peça de ferramenta”, que se usava por tempo indeterminado, pois as pessoas vendo a garrafa sempre pensavam que o Cifra e os seus amigos bebiam coca-cola, o que na verdade não era verdade. Mas vamos continuar com a história. Quando tudo isto acabou, regressaram com todo aquele aparato ao aquartelamento, despediram-se e foram de regresso à capital da província.
O Cifra, ao outro dia, veio a saber que toda aquela cena tinha sido uma encomenda do governo de Portugal, que foi gravada e fotografada, onde entraram alguns actores com a sua voz, para apresentarem em determinada reunião. Ao Cifra disseram que era em Nova Iorque, nas Nações Unidas, para justificar o injustificável!
Passado uns dias, alguns africanos que tinham canoas e andavam um pouco longe pelo rio, pescando, perguntaram ao Cifra quando iria haver outra cena igual, pois nesse dia tinham carregado as canoas com peixe que andava a boiar no rio!
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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11901: Bom ou mau tempo na bolanha (23): O "Mississippi" e o 11 de Setembro (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro "Cifra"
Se isto fosse o 'Face' podia agora escrever simplesmente "eh eh eh eh".
Se fosse o 'Face'. Mas não é.
E assim aproveito para salientar três aspectos desta tua lembrança:
o facto, exemplificado pelo "Cifra", de que naquele tempo muitos de nós se entregaram a 'experiências' com bebidas ou comidas, sendo essa da garrafa de coca-cola 'recheada' muito interessada;
a interessante 'guerra para inglês ver', consubstanciada naquela encenação que certamente muito terá impressionado;
a 'habilidade' de tirar partido de todas as coisas que acontecem à volta, neste caso por parte dos 'autóctones', coisa que afinal não é apenas timbre dos portugueses (mas podem ter aprendido connosco...), revelado pela expectativa que criaram em nova 'pescaria fácil'.
Pequenas/grandes coisas que vivemos.
Abraço
Hélder S.
Ora vivam os camaradas!
Também fiquei surpreendido com a notícia do ataque encomendado. Ingenuidade minha que imaginava mais pureza na guerra, apesar da luta política sem quartel que inspirava os governantes lusos na reacção às investidas internacionais.
Dessa vez, as vítimas foram peixes, mas, provavelmente, se tivesse acontecido algum "acidente" pessoal, teria contribuído para a verosimilhança do argumento. E as altas patentes colaboravam: ComChefe, Estado-Maior, etc.
Outro bom "tiro" do Cifra.
Abraços fraternos
JD
Amigo Tony ora pois...fizeste-me lembrar a minha meninice e quando eu brincava às guerras "de mentira" lá com os putos do meu bairro. Também ouvi falar em mistificações idênticas, com pessoal bem vestido e bem barbeado. Coisas ...
Um abraço do
Veríssimo Ferreira
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