sábado, 10 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11927: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A viagem para a Guiné

1. Segundo episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

2 - A VIAGEM PARA A GUINÉ

As imagens repetidamente difundidas pela RTP dos embarques de militares com destino às colónias enraizaram a ideia da inevitabilidade de que um dia chegaria a nossa vez. E no dia 17/05/1970 no Cais de Alcântara encontramo-nos defronte do velho “Carvalho Araújo”, a bordo do qual seríamos transportados para a Guiné.

Na azáfama do embarque assalta-me a estranha sensação de rotura iminente com o meu passado. Percebi, como em nenhum outro momento da minha vida, que o meu futuro estava somente nas minhas mãos e na minha capacidade e instinto de sobrevivência.

Eras ainda nesse momento, camarada, devido ao nosso paralelo percurso militar e à forte amizade alicerçada na identificação em valores comuns, o único elemento de apoio com que contava perante o futuro próximo que se percebia difícil.

"Carvalho Araújo"
Foto de António Garcia de Matos

Assistimos na amurada do navio aos acenos com que, familiares e amigos, se despediam de alguns de nós. Como eu desejava encontrar naquela pequena multidão um aceno que me fosse dirigido embora, já soubesse que tal não seria possível. Não consegui evitar um enorme vazio e uma dor tão funda que só os que muito amam os que ficam, podem sentir. Mantivemo-nos praticamente todos na amurada até que deixamos de ter a terra à vista. Ampliamos a nossa capacidade de alcance visual, quase como quem se recusa aceitar o afastamento que se estava a consumar. Ainda com este estado de alma, fomos chamados para a primeira refeição a bordo.

Lembram-se camaradas como nos congratulamos com o “fígado de cebolada com batatas cozidas”? Estávamos perante um manjar dos deuses, depois de semanas a “ração de combate” e de refeições miseráveis que nos serviam em Viana do Castelo durante o IAO.
Depois da avalanche de emoções geradas pela partida, esta primeira refeição foi uma nota positiva para adoçar a adaptação às novas rotinas a bordo.

O nosso Mundo era agora o navio e, à medida que as horas foram passando tomamos consciência da forma desumana como estávamos a ser transportados, principalmente as praças. Ao que nos disseram depois, o velho “Carvalho Araújo” era usado no transporte de gado bovino entra as Ilhas Açorianas e entre estas e o Continente. Constatamos esta realidade quando visitamos os “aposentos” de alguns camaradas que viajavam nos porões, onde haviam sido construídos beliches em madeira a toda a altura dos mesmos e, se percebia ainda o odor a fezes dos bovinos.

Triste sorte a de muitos que, resignados, aceitavam passivamente esta realidade, como se aceitava a incerteza das contingências da guerra que nos esperava. Do entusiasmo pela primeira refeição, passei à tortura dos enjoos que tornaram intragável qualquer refeição que, noutras circunstâncias poderia ser deliciosa.
Por curiosidade e necessidade desloquei-me à descoberta da enfermaria do navio para encontrar remédio para os meus males. Apesar de medicado, foi pouco o alívio conseguido. A maioria das praças repartia-se diariamente pelo convés, dispersos em pequenos grupos, ocupados no passatempo predilecto para entreter o tempo “a lerpa”. Eram frequentes manifestações de euforia e de quando em vez alguns impropérios quando as coisas davam para o torto.

E neste rodar do tempo a distância para o nosso destino encurtava a cada hora. Sensivelmente a meio da viagem, quando o sol já se havia escondido, fomos surpreendidos por belas imagens em que eram visíveis com nitidez as iluminações daquilo que nos pareciam ser avenidas marginais. Passávamos junto às Ilhas Canárias e alguns vaticinavam que as imagens seriam de Las Palmas.

Por esta altura, fomos todos bruscamente alertados para uma situação de emergência. A aflição na procura dos coletes de salvamento e do local à proa e à ré que nos foram sendo indicados, indiciavam que era um treino de emergência ou seria, como alguns já afirmavam, um incêndio a bordo. Acreditem camaradas, nunca cheguei a saber qual a verdadeira razão para tanto aparato, mas não há dúvida que criou a bordo um clima muito tenso e preocupante.

No alvorecer de mais um dia a bordo fomos mais uma vez surpreendidos com “terra á vista”. Será a Guiné, interrogavam-se alguns?
O navio apontava a proa para entrar numa grande baía, rodeada de montes escarpados e agrestes, sem qualquer vegetação visível e, ponteada aqui e ali de velhas carcaças de embarcações de razoável porte e em que se aconchegava uma povoação de aspecto simples e acolhedor.
Chegamos à Ilha de S. Vicente e à cidade de Mindelo em Cabo Verde.

Desembarcamos para algumas horas de descontracção em terra firme e logo nos fizemos ao caminho até a Cidade. No pequeno estabelecimento em que entrou o nosso grupo começaram a saltar as cápsulas das garrafas de cerveja e foram saboreadas as poucas bananas da terra que estavam expostas no balcão. Ao entardecer a viagem prosseguiu.

Sentíamos a proximidade da costa continental africana e, se dúvidas houvesse, bastava sentir o quanto escaldava a certas horas o varandim de madeira da amurada do navio, da imensa quantidade de algas que flutuavam no mar com se de ilhas vegetais se tratasse e, dos peixes voadores que apareciam como por encanto.
Por estes sinais e pelo que nos dizia o instinto, o nosso destino aproximava-se rapidamente. Até que os nossos olhares começarem a distinguir palmeiras e casario razoavelmente alinhado.

Decorria o dia 25 de Maio de 1970 e tínhamos Bissau à vista.
A curiosidade e o medo do desconhecido dominavam as nossas emoções.

Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea parcial e Ilhéu do Rei. 
Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 142". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 31 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11893: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (1): Mobilização

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Martins Rodrigues. Força e mande mais. Gostei e continuarei a ler. Fui para a Guiné no Niassa, voltei no UIge, onde as condições eram bem melhores, e até com cinco refeições das boas, ou seja, comida bem boa para o que estava habituado e a que mesmo enjoado nunca deixei de estar presente. Um abraço do
Verissimo Ferreira

Henrique Cerqueira disse...

José Martins
Eu por acaso fui para a Guiné de avião ,ou seja nos T.A.M.s Boing 707 transporte militar.
Embora a viajem tenha sido mais rápida e mais cómoda que a tua,tem também as suas desvantagens.Porque nem sequer nos deu tempo a nos adaptarmos à ideia irmos para a Guiné,nem nos adaptarmos à mudança de clima. Mas quanto a mim o que me encanta nas histórias da malta que fez a viagem de barco,são precisamente as dificuldades que tiveram que se adaptar mas eu creio ainda que se devem ter criado laços de amizade muito fortes entre os camaradas "viajantes". E sempre que contam histórias dessas viagens de barco eu ponho-me a imaginar o ambiente dentro desses Navios e em especial aquela malta que viajava nos porões e não deixo de admirar todos esses camaradas que iniciaram a sua comissão logo em condições degradantes,mas que no fundo deve ter sido uma situação de unidade entre todos.
Um abraço e continua com as tuas memórias de "viajante".
Henrique Cerqueira

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Este relato do José Rodrigues, feito assim, metodicamente, ilustra muito bem o que foi a mobilização, os antecedentes imediatos da partida e as peripécias da viagem, com os seus sustos, as suas incomodidades, as suas surpresas, e também a progressiva aproximação à Guiné.

Tal como refere o Henrique, também penso nas vantagens dessa progressiva aproximação e ambientação mental, pese embora os problemas e a situação sub-humana em que viajaram muitos militares, principalmente os que 'usufruíram' dos porões.

Realmente, compartilho a ideia de que a viagem por barco permitia conhecer mais, o tal 'cruzeiro das nossas vidas' para a esmagadora maioria de nós, ao mesmo tempo que nos 'preparava' psicologicamente para o embate com o desconhecido.

A minha viagem foi boa. Muito boa. Mas fui preveligiado, já que segui num cargueiro com 6 cabinas duplas para passageiros, num total de 12, sendo que na minha viagem 6 eram militares e 6 civis. Mar calmo, 'vaga larga', o acompanhamento de peixes-voadores já relatado por muitos. Passámos ao largo das Canárias embora não muito perto pois a nossa carga era de material bélico.

Comi bem, acompanhado pelo Sr. Comandante do navio que fez questão de estar à mesa com os 'bravos militares' (por acaso todos de Transmissões...). Foi uma viagem para recordar.

Abraço
Hélder S.

armando pires disse...

O "Carvalho Araújo" foi quem me trouxe de volta a casa.
Em Dezembro de 1970.
Fez escala na Madeira para reparar uma caldeira que ameaçava incendiar-se.
Foi a sua derradeira viagem.
E, de barco, também foi a minha última.
armando pires