quinta-feira, 29 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18465: (Ex)citações (332): Comentário do historiador Armando Tavares da Silva ao Poste 18460: Notas de leitura (1052) de Mário Beja Santos



Beja Santos faz uma leitura e uma interpretação incorrectas do que está escrito em "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)". Nunca aí se disse ter havido na Guiné “uma espécie de luta de classes entre o Governo/administração e os comerciantes”, ou mencionado algo que pudesse ser considerado uma tal “luta de classes”. Quanto a “alguns levantamentos”, faço-lhe ainda notar uma diferença que convém ter bem presente: o que “aconteceu na luta armada” é uma coisa, e o que “motivou a luta armada” é uma coisa totalmente diferente.

Mas vejamos o que está escrito na obra mencionada. O que nela se escreve, por exemplo, pela mão de Manuel Maria Coelho, é que uma “chamada política da colónia” tinha separado em dois grupos os seus habitantes, “nativos ou emigrados, quer da metrópole, quer principalmente de Cabo Verde, compreendidos os funcionários públicos e até os militares”. Podiam classificar-se “simplesmente [por] patriotas e antipatriotas”.

Acrescenta Manuel Maria Coelho:  

“Aqueles eram os que se sentiam orgulhosos por que a Guiné seja, efectivamente e inegavelmente uma colónia inteiramente portuguesa; e estes – os antipatriotas – os que se sentiam morder de raiva por a nação portuguesa, o governo, não continuarem à mercê das condescendências e das tolerâncias de quem exercia na Guiné um poder tão extenso e tão profundo, que as vidas dos cidadãos, e principalmente das autoridades, estavam pendentes das intrigas, dos ódios e das aspirações desordenadas desses ambiciosos sem escrúpulos”.

No relatório da sindicância de que tinha sido incumbido por António José de Almeida (1917), na qual que se incluía a abertura de um “rigoroso inquérito sobre a vida pública da província para assim se esclarecerem tantas e tão variadas queixas que chegavam ao Ministério das Colónias”, o mesmo Manuel Maria Coelho escreve que no decorrer dessa sindicância apercebera-se do clima de intriga política e de interesses das várias facções de que se compunha a sociedade guineense. Verificara que a presença do elemento cabo-verdiano desempenhava aí grande influência. Era o pano de fundo sobre o qual tudo se tinha passado e que em parte o explicava (as operações de Teixeira Pinto em Bissau em 1915 e o seu rescaldo, incluindo as acusações que a este foram dirigidas). Entre esta presença Manuel Maria Coelho ressalta a do secretário-geral, Sebastião José Barbosa. E escreve:  

“Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo [...] e como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo, principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.

Vejamos ainda o que disse o governador Oliveira Duque relativamente às operações em Bissau em 1915: para as iniciar teve de “lutar fortemente contra más vontades, que encontrei até em funcionários altamente colocados, más vontades que atribuía e ainda atribuo ao desejo de que as coisas se mantivessem no pé de soberania fictícia em que estavam, e outras provenientes de animosidades pessoais conta o capitão Teixeira Pinto”.

E sobre as acusações que a este foram dirigidas, escreve Oliveira Duque:  

“A reputação de cada um está na Guiné à mercê dos nossos inimigos Cabo-verdianos, Guineensese e também índios que, conjuntamente com alguns, raros, europeus pretendem fazer da Guiné um feudo para seu exclusivo usufruto, o que vejo com pesar que cada vez mais se aproxima do seu desiderato”.

Mas recuemos a 1891 e vejamos o relato dos graves acontecimentos de Bissau desse ano, das diligências tendentes a compreender e explicar a sua origem e a subsequente procura da paz e harmonia, relato que está cheio de referências a “intrigas”, e procuremos a sua razão de ser. Estes acontecimentos foram precedidos e desenrolaram-se no clima de hostilidade entre as duas tribos papeis da ilha de Bissau, Intim e Antula.

Ora o governador Gonçalves dos Santos estava convicto de que estas hostilidades se deviam às ”intrigas dos habitantes da praça” , que “formando dois partidos” entre os beligerantes ”alimentavam a guerra”. O mesmo governador dirá que “o gentio branco e mulato (filhos da ilha do Fogo, principal colónia em Bissau) estão [...] mancomunados com os gentios e grumetes para nos desrespeitarem e desacatarem a autoridade; e os estrangeiros colaboram neste vil procedimento”, fim para que se serviam de “intrigas de toda a ordem”. E na procura de nomes dos instigadores do clima de desconfiança, um grumete afirma que “se fossem só portugueses e não do Fogo os que estavam na praça, não havia nunca guerra, nem com os grumetes, nem com Intim”. Pode perguntar-se: houve aqui algum “levantamento”?

A terminar mencionemos as palavras de Vellez Caroço no seu relatório de 1921-22 referindo-se aos problemas e dificuldades que teve de enfrentar para fazer “o saneamento” da província. Com a “compreensão nítida do presente” e a “visão segura do futuro” escreve Vellez Caroço:
“Cairei, prestando um serviço ao meu país, sacrificar-me-ei servindo a República, porque o embuste, a falsidade e o despotismo jamais voltarão a imperar na Guiné, e a obra metódica e persistente da desnacionalização desta rica província, que dia a dia se ia afirmando, teve aqui o seu termo. Como governador assim o espero, e como patriota assim o desejo”.

Vellez Caroço tocava aqui num ponto que outros que o antecederam já tinham sentido: a tentativa surda de afastamento da colónia da esfera de influência portuguesa. Ainda no mesmo relatório escreve Vellez Caroço:  

“Hoje já é vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”.

E pergunta: O que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?”

Por considerar que “a obra de desnacionalização [da] colónia era lenta, mas era contínua e persistente”, tornava-se necessário actuar para que não se continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era “uma colónia de Cabo Verde”. E para isso era preciso mais atenção dos “compatriotas metropolitanos”, para que para a Guiné “lancem as suas vistas […] e para aqui venham trabalhar”.

E, a propósito, nota que “o nativo da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia, até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”. Era um desejo patriótico do governador, porventura difícil de atingir.

Para finalizar e voltando às considerações de Beja Santos em que refere o “projecto de independência de que Amílcar Cabral foi a bandeira”, creio poder dizer ter esse projecto terminado com os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980. É bom perguntar-se: que motivação esteve na base destes acontecimentos e quais foram as suas consequências?

E os “grandes comentadores” que dislates é que cometem? É preciso é não ir atrás deles...

Armando Tavares da Silva

PS: Veja-se o meu Post P17819 de 3-10-2017[1] no qual estas questões são afloradas e se constata que Beja Santos nos comentários à obra acima referida resumiu a duas linhas a presença de Manuel Maria Coelho na Guiné, na prática olvidando um período de tempo e de acção reflectidos em quase dois capítulos desta obra.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 3 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17819: Historiografia da presença portuguesa em África (95): A intriga política na Guiné, 1915-1917 (Armando Tavares da Silva, historiador)

Último poste da série de 10 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18400: (Ex)citações (331): Os problemas no CTIG logo em 1963: memórias de cá e de lá (Jorge Araújo)

2 comentários:

Mário Beja Santos disse...

Primeira observação, a obra de Armando Tavares da Silva (ATS) é um levantamento documental, laborioso, mas não é uma peça historiográfica, na plena aceção do termo. Por isso intitula de "Presença Portuguesa" e confina essa presença a duas dimensões. Um livro de História tem exposição e contraditório, abarca legislação, uma enorme variedade de documentos, excede obrigatoriamente o que consta dos arquivos oficiais, procede à análise de imprensa, disseca a diferente bibliografia do período em estudo, etc. Ora ATS sentou-se à secretária de dois arquivos, leu milhentos papéis e a dada altura resolveu proceder a duas interpretações: a comprovada existência de conflitos em permanência entre militares/funcionários e comerciantes; e conclui o seu levantamento com um argumento que não lembra ao Diabo: as diferentes insurreições que assolaram a Guiné entre o século XIX e o período da pacificação, pelo menos um número elevado delas, devem ser vistas como terreno propiciatório do que se irá passar na preparação da luta armada. Como ATS diz que não disse, e acabo de ler os seus comentários, espero trazer aos confrades, devidamente digitalizadas, as duas últimas páginas do seu livro, assim ficará claro por onde andam as incorreções.
Segunda observação, como ATS andou pelos arquivos oficiais e não teve tempo para dedicar atenção ao quotidiano da Guiné visto por outros, podia ao menos ter lido esta obra de Fernando Tabanez Ribeiro, onde voltei a zurzir nos seus dislates. O engenheiro Tabanez Ribeiro deixa-nos impressões memoráveis da sua infância e juventude em Bolama. Em dado passo, a páginas 146, escreve: "Os militares viviam à parte, no quartel, pouco convivendo com os civis, excetuando o Tenente Abeillard Vilela que por ter passado à reserva, mudou de campo e se integrou na sociedade civil". Ora ATS encontrou histórias de militares briosos que se transferiram para o comércio. Encontrei documentação no Arquivo Histórico do BNU que refere muito claramente que os funcionários da administração em Bolama passavam cerca de 6 meses no continente a tratar dos seus negócios e da vida das suas propriedades agrícolas. Isto para sublinhar a enorme porosidade nos estatutos, o militar passava rapidamente a civil ou intercalava com esse estado, para negociar ou agricultar. E ATS até relevou detalhadamente o caso de Graça Falcão, um herói militar que se transmutou em civil e deu muitas dores de cabeça à governação e até à banca. Criar um maniqueísmo estatutário pode parecer muito original mas não tem pés nem cabeça.
(Continua)

Mário Beja Santos disse...

Terceira observação, ATS invoca, fora do contexto do seu livro, casos de anti caboverdianismo para querer justificar que havia uma germinação histórica que conduziria ao fim da proposta de Amílcar Cabral quanto à unidade Guiné-Cabo Verde. Outra mistificação, a dois níveis. Quando se faz crítica é um dado conteúdo, e ATS traz argumentação que não inclui no seu livro. Ademais, em nenhuma circunstância falei da luta armada como ela se desenrolou, é pura ficção encontrar nas sublevações de Felupes, Bijagós, Balantas e outras etnias um sentimento anti cabo-verdiano, o tal veneno que teria destruído essa premissa maior ideológica de Amílcar Cabral. É facto que havia anti caboverdianismo fruto do processo colonizador português na Guiné, os missionários e os agentes portugueses da administração iam rapidamente parar ao cemitério ou eram transferidos, carregados de doenças, para a Europa - a Guiné era um cemitério de brancos, e não só. Então, encontrou-se uma chave para o problema, trazer um número elevado de cabo-verdianos para a administração, funcionários, professores, administradores coloniais, e algo mais. Estavam nos pequenos negócios, trabalhavam para CUF (Casa Gouveia) e BNU (Sociedade Comercial Ultramarina), imbuídos da missão emanada do branco, passaram a andar e com rispidez. Mas isso é outra história que um tanto desajeitadamente ATS traz para a discussão, e para criar confusão. Segunda-feira, se até lá ATS não publicar as suas duas últimas páginas do seu livro aqui, para que os confrades se apercebam da tremenda incorreção que eu pratiquei, segundo ele, elas serão aqui postas por mim. Um abraço a todos do Mário