Comissão: GUINÉ 1968/1970
Unidade: Companhia de Caçadores nº 5 /CTIG
Ramo: Exército
Arma: Infantaria
Especialidade: Transmissões
Posto: Furriel Miliciano
Fez parte de que Batalhão?
Fui mobilizado em rendição individual., isto é, sem ir integrado em qualquer tipo de unidade, já que era destinado à Companhia de Caçadores nº 5, uma unidade da Guarnição Normal do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné).
Era uma unidade, havia apenas três no exército na Guiné, que era constituída por Oficiais e Sargentos, do Quadro Permanente ou Milicianos, recrutados e mobilizados para o ultramar, em rendição individual.
Também tinha praças metropolitanas, (Cabos e Soldados) de diversas especialidades. Os restantes elementos da companhia eram recrutados na província, começando por serem só atiradores, mas com o correr do tempo foram sendo ministradas outras especialidades, assim como muitos foram recrutados para cursos de sargentos milicianos.
Quando é que chegaram?
Cheguei no dia 2 de Junho de 1968 (embarquei em Lisboa em 28 de Maio) a bordo do NM Alenquer que, alem de duas tripulações (4 marinheiros/cada) de LDP (Lancha de Desembarque Pequena) seguiam mais quatro furriéis do exército. O barco transportava material de guerra e outros materiais para as tropas em serviço na província.
Soube logo para onde ia?
Estava no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas. Tinha sido promovido ao posto de 1º Cabo Miliciano, com a especialidade de Transmissões de Infantaria, no dia 18 de Abril de 1968. Fui informado da mobilização, teatro de operações e unidade de destino, perto do final desse mês, iniciando os 10 dias de licença NNAPU (Norma de Nomeação e Apoio às Províncias Ultramarinas).
A minha mobilização foi, como a de quase todos os combatentes, efectuados ao abrigo da alínea c) do art.º 3º de Decreto nº 42.937 de 22 de Abril de 1960.
O que sentiu quando chegou?
A par da preocupação da chegada a um teatro de guerra, havia a expectativa de tomar contacto com realidades, até aí desconhecidas.
A “ida para a guerra” já era como que uma certeza, já que se desenrolava desde 1961 e, contrariamente ao que o Regime pretendia deixar transparecer que era “um assunto já resolvido”, o que a realidade desmentia uma vez que se procedia à “formação de mais soldados” para aumentar a presença militar nos teatros de operações.
No ano de 1961, tinha eu 14/15 anos, foi um “ano beligerante”.
Em 22 de Janeiro é desencadeada a Operação Dulcineia, pelo Capitão Henrique Galvão, contra o paquete Santa Maria, onde perde a vida um oficial – João José do Nascimento Costa – quando se opôs aos assaltantes. Como tinha pertencido à Mocidade Portuguesa, como a maioria dos estudantes, o regime elevou-o às maiores honras, apresentando-o como herói nacional e modelo a seguir.
A 4 de Fevereiro desse mesmo ano, inicia-se o terrorismo em Angola, para outros Luta de Libertação, com o assalto às prisões que, nos anos seguintes, se estenderá a outras províncias ultramarinas.
No dia 18 de Dezembro, na Índia Portuguesa, consuma-se a invasão, por parte da União Indiana, dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu (em 1954 Portugal já tinha perdido os territórios de Dadrá e Nagar-Haveli). A força atacante composta por cerca de 45.000 elementos e tendo, para uma segunda vaga, um número ainda maior encontra, para fazer face à invasão, uma força portuguesa, mal armada e desmoralizada que, praticamente, se rendeu sem dar um tiro; entre 2.500 a 3.000 homens, que foram feitos prisioneiros. Foi nessa altura que se deu o último combate naval da nossa história, com a Lança Vega foi atacada e afundada em combate, com a morte da maioria da tripulação.
No final do ano, precisamente no último dia, é tentado um assalto ao Quartel de Infantaria nº 3, em Beja, dirigido pelo Capitão Varela Gomes, onde, na madrugada seguinte encontraria a morte o Subsecretario de Estado do Exercito, Tenente coronel Jaime Filipe da Fonseca, quando tentava entrar no quartel.
Quando cheguei à Guiné em 1968, com seis anos de guerra já decorridos, havia a expectativa de, no terreno, “viver” o que já me tinha sido relatado, apesar de muito pouco explícito, como eu próprio o faria ao regressar, como “defesa e tentativa de esquecer” esse passado recente e, “sempre presente”.
Como foram os primeiros tempos?
Para mim como para todos, mas todos, apesar de “muitos” quererem mostrar o contrário, estávamos numa terra que, apesar de a “sentir-mos como Portugal”, não era o nosso cantinho, na nossa cidade ou na nossa aldeia.
Numa unidade africana, como a minha, o número de metropolitanos era reduzido (seriamos no máximo 50 europeus). Também a rotação do pessoal era frequente, o que poderia ser, ou originar, um sentimento de “não integração”, dada a alteração ser cíclica, com a partida de camaradas e a chegada de novos, até que chega a nossa vez.
O clima era outra vicissitude, que provocava alterações “sensíveis” no nosso próprio comportamento, provocando alterações físicas e psicológicas.
O próprio ambiente de expectativa, em relação ao “minuto seguinte”, originava uma alteração comportamental que, ainda hoje, muitos de nós só lavem um ouvido ou um olho da cada vez, para que tenhamos os sentidos alertas e disponíveis.
A unidade, para a qual fui enviado, tinha a sede e o comando em Nova Lamego (actual Gabu) e os grupos de combate a guarnecer os destacamentos de Canjadude, Cabuca e Ché-che, todos na Zona Leste.
O meu primeiro contacto com as operações deu-se, ainda no mês de Junho de 1968, quando fui enviado para visitar os destacamentos da companhia instalados em Canjadude e Che-che, aproveitando a coluna que iria retirar as nossas tropas do destacamento de Béli e coloca-las em Madina do Boé (evacuada, posteriormente, em Fevereiro de 1969).
Ao longo do percurso viam-se viaturas destruídas por minas, seguidas de incêndio, as crateras abertas pelas mesmas minas, o ouvir o rebentamento das bombas lançadas pelos aviões tentando “limpar” os possíveis locais de esconderijo das forças adversas, o novo tipo de refeições (as celebres rações de combate) e a sede, fundamentalmente a sede.
Quando voltou?
Deixei o destacamento de Canjadude, para onde fora destacada a Companhia em Agosto de 1968, no dia 28 de Maio de 1970, exactamente dois anos após ter largado do Tejo. Passei por Nova Lamego, “arranjei” transporte numa avioneta militar para Bissau e, aqui, foi a corrida para encontrar transporte rápido para a metrópole. O “Rita Maria”, um barco de passageiros civil em que regressei, partiu de Bissau em 2 de Junho de 1970, tendo passado pelo arquipélago de Cabo Verde, aportado em Lisboa no dia 10 desse mesmo mês. Já lá vão 40 anos!
Qual foi o dia mais marcante? E porquê?
O dia 6 de Fevereiro de 1969. Nesse dia deu-se um dos maiores desastres da guerra do ultramar: o desastre do Che-che, em que morreram afogados 47 homens.
Acresce que, além do drama que envolveu este acidente, onde centenas de homens participaram, directamente e no terreno, na “Operação Mabecos Bravios” que retirou de Madina do Boé a Companhia de Caçadores nº 1790, que tinha assumido a responsabilidade daquele subsector em Janeiro de 1968, fui incumbido de recolher, junto dos comandantes das unidades envolvidas, o nome e a patente dos homens que tinham desaparecido, para sempre, nas águas do Rio Corubal. De posse da listagem, já transcrita para o impresso de mensagem, assinado pelo comandante da unidade e enviada para os escalões superiores, (Batalhão – Quartel General – Comando Chefe) foi altura de começar a receber, por parte de muitos militares, o pedido para que enviasse às suas famílias telegramas, através do sistema rádio militar, informando-os que se encontravam bem. Era assim. Mesmo em guerra, e talvez por isso, os militares nunca esqueciam a família.
O que lhe lembra a guerra?
Lembra algo que não devia existir, mas que, infelizmente existe desde o nascer dos tempos. Portugal sempre foi um “país em armas” desde a sua nacionalidade. No espaço de um século, Portugal enfrentou três guerras, de alguma dimensão, e outras que a história registou, mas a que não deu grande relevo. Muitas famílias estiveram presentes nessas guerras, incluindo a minha.
O meu avô materno esteve em Moçambique nas Campanhas de Ocupação, para onde embarcou em 5 de Julho de 1899, regressando em 24 de Junho de 1900. Em 1916 foi mobilizado, como 2º Sargento do Quadro Permanente, para o Batalhão do Regimento de Infantaria nº 7 (Leiria) afim de integrar o Corpo Expedicionário Português presente na I Grande Guerra, embarcando para França em 19 de Janeiro de 1917. Regressou, chegando a Lisboa em 23 de Julho de 1917, vítima do gás lançado sobre as trincheiras. Foi evacuado, após ter permanecido em hospital de campanha, tendo sido dado como incapaz para o serviço militar, pela junta médica militar a que foi submetido à chegada.
Nessa mesma unidade, Batalhão do RI 7, estava integrado um tio paterno que cumpriu todo o tempo que as tropas portuguesas estiveram em França, tendo participado no desfile da Vitória. Foi repatriado, como se dizia na época, em 31 de Julho de 1919. Em 1961, residindo em Angola, pegou em armas para defender os seus haveres e, um ano depois, era o primeiro comandante das Milícias de São Salvador do Congo (A Voz de Domingo, Leiria, de 30 de Maio de 1971, pagina 7).
Em 1968 foi a minha vez! Fui a terceira geração em armas.
Fazem-se irmãos?
Na guerra não se fazem irmãos, fazem-se camaradas: “Camarada não é bem irmão, amigo, companheiro, cúmplice… é uma mistura disto tudo com raiva, esperança, desespero, medo, alegria, revolta, coragem, indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas” (António Lobo Antunes, 2007).
Eu entrego nas tuas mãos a minha vida, enquanto recebo, nas minhas mãos, a tua vida. E “vida” é tudo. È a vida, é a amizade, é a camaradagem, é, se necessário, o morrer para que tu vivas. É um laço tão forte que, dezenas de anos depois, ainda somos os mesmos “miúdos” que fizeram a guerra. Parece que a vida parou e, entre a nossa despedida e o nosso reencontro, nada passou. E é curioso! O sentimento que liga os combatentes é tão forte, que consideramos que os “Filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são”.
Esteve debaixo de fogo?
Por duas vezes, durante a operação “Lacoste” em 27 e 28 de Junho de 1969, por coincidência um ano após a minha partida de Lisboa, em que houve contacto com o inimigo, nos dois dias. Felizmente não houve baixas (feridos e/ou mortos), mas houve “autênticos” milagres:
Uma granada de RPG embateu num monte de baga-baga, monte com muita resistência formado pelas formigas, resvalando para junto das nossas tropas e acabando, por não explodir.
Um Alferes, o Gomes, quando regressou dessa operação retirou um estilhaço de granada de dentro de um dos carregadores de reserva da G3. Se não fosse o equipamento que trazia à cintura. Sem esta “protecção improvisada por Alguém”, as coisas teriam sido diferentes. Não lhe pôs fim à vida, por milagre.
A guerra marca para sempre?
A guerra, e tudo o que representa e tudo o que passamos, fica colada à nossa pele, e para sempre. É algo que nunca conseguiremos esquecer, e que se transmite, pelo nosso comportamento muitas vezes incontrolado, a quem connosco priva, quer familiar quer profissionalmente.
Marca quem esteve em teatro de operações e quem não esteve, mantendo-se na “retaguarda”, ansiando por noticias e tremendo quando “alguém batia à porta” a horas inesperadas.
Marca pela ausência e marca pela presença. Pela ausência em muitos momentos únicos, quer de alegria quer de dor, junto da família o dos amigos; pela presença junto de situações indesejadas mas normais numa guerra, assistindo àquilo que julgávamos impossível de existir.
Marca pela partida e marca pelo regresso.
E marca, mas marca muito fundo, quando se sente a incompreensão de tudo aquilo que “fomos obrigados a fazer e a viver”. Quando se ouve, os que estiveram ausentes daquelas situações, falar da guerra e da paz, sabemos que:
“Nenhuma voz é mais qualificada para defender a paz do que a dos homens que combateram na guerra”
Lema da FMAC – Federação Mundial dos Antigos Combatentes,
Organização internacional, não governamental, que reúne mais de 150 associações de antigos combatentes e vítimas de guerra de 88 países.
Nascido em Leiria a 5 de Setembro de 1946, frequentei o Jardim-escola João de Deus e a escola Primária de Santo Estêvão, em Leiria e, depois, na Marinha Grande e Vila Nova de Gaia.
Iniciei a minha actividade profissional aos 16 anos, como empregado de escritório, enquanto continuava a frequentar o Curso Geral do Comercio, que conclui já no serviço militar.
Recrutado, fui integrado no Contingente Geral, fazendo a Instrução Básica e a Especialidade de Teleimpressor. Por ter terminado o curso comercial, fui mandado apresentar no CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria) em Tavira, sendo colocado no GACA 2 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2) em Torres Novas, onde fui mobilizado.
Regressado do Ultramar, retomei a minha actividade profissional, passando durante sete anos por uma instituição bancária.
Adquirida a habilitação para a inscrição na Direcção Geral das Contribuições e Impostos, passei a exercer a função de Técnico Oficial de Contas, profissão que ainda desempenho.
Sou casado, há 39 anos, com a Maria Manuela, três filhos – Susana (38 anos), Tiago (34 anos) e Diogo (31 anos) – e netos David (14 anos), Duarte (num futuro próximo) e Gonçalo (15 anos, por laços de amizade recíproca).
Como hobby tenho o estudo/pesquisa e divulgação da História de Portugal, mormente desde 1890 até 1974, com especial incidência na área militar e africana.
José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5
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