segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7045: Notas de leitura (151): Manual Político do PAIGC (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
Este manual é uma referência histórica incontornável, impressiona ver um partido que vivia na dependência exclusiva de um líder de craveira excepcional.
A sua leitura permite fazer o balanço entre o sonho realizável e a utopia, entre a grandeza e vulnerabilidade do PAIGC.

Um abraço do
Mário


Manual Político do PAIGC

Beja Santos

Foi publicado em 1972 e apresentava-se como “um instrumento capaz de aumentar a compreensão de cada militante pelos problemas da nossa vida e da nossa luta e de contribuir para a consolidação da sua consciência revolucionária”. Quem sentisse dificuldades na compreensão destas matérias devia pedir esclarecimento aos principais dirigentes do partido. O primeiro público do manual político era ferramenta de grande utilidade para os comissários políticos. No essencial as 24 perguntas e respostas do manual baseiam-se em intervenções de Amílcar Cabral. Lido à distância destas décadas, temos aqui registo do pensamento de Cabral, dos seus sonhos, mas também das tensões insaráveis que atravessaram a ideologia e a acção do PAIGC. Pela riqueza das suas considerações, tem a maior pertinência fazer o registo das propostas doutrinais e do pensamento visionário de Cabral.

Primeiro, a justificação da luta, o terreno em que ela se afirma, quem e como deve embarcar na viagem da libertação. A noção de partido sobrepõe-se à de movimento de libertação nacional, para triunfar era importante dispor-se de um partido coeso, da direcção às bases. Como se escreve: “É a direcção do Partido que comanda verdadeiramente as coisas e, a cada nível, há uma direcção estreitamente ligada ao nível superior. Evidentemente, até à base as ordens devem ser respeitadas, após a sua discussão na disciplina”. Temos pois o PAIGC como partido condutor, ciente da sua proposta revolucionária e conhecedor dos inimigos internos, aqueles que se prestaram a colaborar com os colonialistas portugueses. É uma parte da pequena burguesia quem deve conduzir a linha revolucionária, tendo em conta a realidade específica da Guiné. É a pequena burguesia quem se constitui na vanguarda do proletariado. Cabral alerta: “A pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe, para ressuscitar como trabalhador revolucionário, inteiramente identificada com as aspirações mais profundas do povo”. A luta de libertação passa por libertar as forças produtivas e pô-las em movimento ao serviço do povo. Marcará o fim do tribalismo e das chefias tradicionais. Esta luta de libertação poderá demorar vários anos mas o desfecho, diz Cabral, é inevitável: “No momento em que os portugueses forem levados a um ponto em que queiram regressar à política para respeitar os nossos direitos, estaremos no fim da guerra”.

Segundo, a questão da unidade entre a Guiné e Cabo Verde e a solidariedade com os outros povos africanos. Homem de cultura superior, Cabral sabia perfeitamente que não existia qualquer vínculo fatalista, inescapável, para poder declarar, em consciência, que havia uma realidade histórica indispensável entre a Guiné e Cabo Verde. Argumentou sempre que era a resposta indispensável para quebrar o imperialismo, que a independência de um território obrigava automaticamente a libertação do outro, que o PAIGC tinha sido criado por guineenses e cabo-verdianos e que à volta desse embrião a luta se consolidou, incessante, dando lógica à construção da unidade do povo em volta do partido. Chegou a argumentar com meias verdades e até argumentos sofismados. Dizer que as ilhas de Cabo Verde foram povoados por escravos levados até lá pelos portugueses, é dizer a verdade histórica e o seu oposto. E declarou, peremptório: “É imperioso evitar que os portugueses explorem a separação que há entre a Guiné e Cabo Verde, para nos lançar uns contra os outros. De facto, começamos a luta em conjunto, no seio de um mesmo partido”.

Por aqui se vê a fragilidade argumentativa de alguém, que a título excepcional, teve que encontrar motivos emocionais para substituir as razões históricas. Explica a política de formação de quadros do partido com base num princípio de assimilação crítica, usando do pragmatismo sem esquecer o que foi deixado pelo colonialismo. O PAIGC aceita a ajuda de todos mas não admite condições à ajuda que recebe. O PAIGC tem como tarefa fundamental libertar o país mas é igualmente sua tarefa prioritária estar ao lado de todos aqueles que combatem o racismo, o colonialismo e o apartheid, o tribalismo.

Terceiro, o manual do PAIGC, pela voz de Amílcar Cabral, procura dar resposta às razões da luta revolucionária e do porquê da fragilidade portuguesa. Professa que a violência é exclusivamente utilizada para responder à violência colonial. Com a independência pôr-se-á termo à luta armada. Se o Portugal economicamente atrasado mantém uma guerra em três frentes é porque está a ser auxiliado pelos interesses do colonialismo e do apartheid, quem fornece as armas a Portugal são os membros da NATO. Mas adverte que Portugal não tem condições para praticar o neo-colonialismo, está profundamente dependente das multinacionais, enumera exaustivamente as riquezas portuguesas nas mãos de capital estrangeiro, desde as indústrias extractivas, passando pelos transportes e comunicações, siderurgia, cimentos, derivado de petróleo, petroquímica, exportação de cortiça, refinação de açúcar, lacticínios e tabacos, entre outros. Defende a lógica anti-imperialista dos países socialistas e diz mesmo que a União Soviética pôs termos às colónias, a partir de 1917.

Quarto, Trata-se de um manual cheio de sonhos. Como num hino de esperança, Cabral faz balanço perspectivas do desenvolvimento e refere concretamente a mancarra, o óleo de palma, as madeiras, a borracha, a pecuária, o arroz, entre outras. Fará o mesmo com Cabo Verde, apela às economias inteligentemente orientadas com base para o progresso económico futuro da Guiné e de Cabo Verde. Ou foi um grande sonho, irrealizável, ou os seus sucessores não estiveram à altura da missão. Depois fala de táctica para a guerrilha do PAIGC e o modo como os combatentes dissuadiram as sucessivas estratégias do colonialismo português. Por último, alude à importância que é conferida às organizações nacionalistas das colónias portuguesas, deixando bem claro o papel desempenhado por ele próprio na ofensiva diplomática à escala mundial.

Há, pois, todas as razões, para ler o pensamento político de Cabral levado às células políticas do PAIGC. Estão ali as aspirações e os falhanços. A ideologia poderosa e a fragilidade dissimulada. Este manual é o espelho da vontade e da determinação de um líder ímpar que moveu o povo guineense para a sua libertação.

Onde foi bem sucedido e onde fracassou é ainda hoje motivo de reflexão na Guiné, em Cabo Verde e em Portugal, sobretudo.

As imagens que se juntam têm a ver com a edição do manual político em 1972 incluindo uma fotografia de Amílcar Cabral rodeado de combatentes e a edição portuguesa (Edições Maria da Fonte, Julho de 1974).
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7040: Notas de leitura (150): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

O pensamento político de Amílcar Cabral marcado pelo marxismo-leninismo, a fruta inquinada da época que tantas ilusões criou e em nada melhorou o mundo e os homens.
Sabemos qual o resultado em todo o mundo dessa ideologia utópica e impossível, hoje deitada para "o caixote do lixo da História", como diria Marx.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

"Este manual é o espelho da vontade e da determinação de um líder ímpar que moveu o povo guineense para a sua libertação."

E pouco mais interessa o resto !

Venham mais contributos seus, caro Beja Santos !

Nelson Herbert
USA