sábado, 2 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Álbum fotográfico do Albano Gomes > Foto nº 10 > "O Obus 10.5, virado à fonte, que, conjuntamente com outro instalado do lado contrário do Aquartelamento, e quando manuseados pelo Pelotão de Artilharia ali instalado, faziam Manga de Ronco" (AG). 

Fotos (e legendas): © Albano Gomes (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os  direitos reservados.


1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 28 de Setembro último:

Assunto: Destinos


Meu Caro Camarada e Amigo [Carlos Vinhal]: 


Antes que o mês acabe vou fazer paragem na sabática. Ou seja, envio um texto lamechas na leitura apressada. O 3 de Outubro está perto. Sabes,  aquele escrito e outros estão "aquietados". Mas li este e fiquei a pensar, a recordar. São coisas que só um homem sabe bem e, se for lido em linhas e entrelinhas ou se vai lá ou, em gente de certo passado como nós, estabelecemos analogias.

Tenho ultimamente lido mais ao correr do rato. Outros paro e consumo devagar. Concordo, discordo e,  como anteriormente disse,  não comento. É pior e fica-se a remoer. Há concepções...bem não adianto mais ou... delete. A pluralidade opinativa é um valor adquirido e tem toda a razão, Felismina, de existir. Mas será extensível a tudo o que aqui aparece. O "aqui" é o blogue.

Eu nem sei se estás ao serviço ou de serviço. Parto do princípio que sim e, como quase sempre peço,  diz se chegou...basta um Ok. Quanto ao anexo é vosso e dele fazem o que quiserem.

Ainda vou tratar de uns assuntos e já é 28 de Setembro

Abraço a ti e extensível aos Editores e a Todos claro está.
Torcato

PS- Esta Bolha pode ser a uma por semana. Serei capaz? Sem compromisso,  como sempre. 

 
2.  Estórias de Mansambo II > Logo Ali, o Vazio…
por Torcato Mendonça (**)

Alegre, sorriso fácil, normal gosto por festas e bailaricos. Cresceu na planície com horizonte largo, a cidade lá muito ao fundo, e, á noite, sentado no portal da casa, olhava as luzes da cidade a tremerem devido ao calor a sair lento, lentamente da terra quente.
Planície de terra negra, fértil, terra de barros e terra mãe a dar sustento a ranchos de homens e mulheres que nela trabalhavam.
Ele trabalhava-a com carinho, mesmo com jorna magra e quando o sol se começava a querer esconder no horizonte a casa voltava.
Recebeu, através da Junta de Freguesia, a carta a dizer que teria que ir para um quartel. Carta curta, simples e a partir daquele momento estava incorporado como militar. Assim, poucos dias depois beijou a mulher, tocou-lhe ao de leve na cara a desviar a lágrima que descia.
Partiu então e por lá andou, correu, saltou, aturou berros e gritos. Nada disse, quase nada sentia a não ser o desejo de voltar. Voltar para junto da mulher, da terra negra, afagar ambas e á tardinha olhar a planície sem fim.
Um dia disseram que teria que ir para África. Onde? África e Guiné.
Ficou triste. Voltou a casa por breves dias, olhava ternamente a planície, o horizonte e com a mulher ao lado sem nada dizerem. Sentia quanto aquela aproximação seria breve. Sentiam, ele e ela, de modo diferente tudo o que os rodeava. Guiné? África? Porquê?
Voltou a despedir-se da mulher, fez-lhe uma festa no ventre e sorriu. Sorriram ambos na angústia de um destino desconhecido.
Meteram-no num barco, barco enorme, barco prenhe de militares companheiros de viagem em porão mal cheiroso e, cada vez mais nauseabundo á medida que os dias passavam. Sulcavam mares como o seu povo há séculos fazia mas, ele e outros, certamente também de pronto dispensavam. Passaram os dias, lentos e numa manhã ouviram o grito de que estava terra á vista.
Olhou e ao longe viu a neblina a levantar-se da terra. Lembrou a sua planície e rápido desviou o pensamento.
Horas depois aí estava o barco parado, a azáfama do desembarque, o calor a encharcar o corpo, a humidade a fazer-se sentir. Olhava e sentia ser tudo diferente, tudo a nada lhe dizer, tudo a levar a questionar-se o que ali fazia.
Não o deixaram gastar muito tempo, em visitas, olhares ou pensamentos. Não tardou a ser metido num batelão de nome esquisito. Ele, viaturas, caixotes enormes e, claro, os seus e outros companheiros, que aqui eram camaradas, lá seguiram viagem. Desta vez, não por mar, mas por um rio enorme acima.
Foi parar a um quartel. Chamavam àquele amontoado de casas desgastadas, barracões e buracos enormes tapados por troncos e com valas, no chão abertas, quartel. Seria um quartel ou um aquartelamento. Tudo bem para ele.
Tudo diferente, tudo estranho, onde o horizonte era já ali baço e verde, com a floresta num verde-escuro a sobressair da terra vermelha e quente.
Os amigos eram os camaradas do grupo e da Companhia. Falavam, riam, tentavam adaptar-se e afugentar para longe as recordações do seu Pais.
O tempo passava lento, tão lento que, sem por isso dar, veio a carta e nela a nova de que era pai de uma menina.
Se até aí as saídas para o mato em operações, as colunas com muitas viaturas, os tiros e rebentamentos eram a normalidade daquele estúpido viver e até a vontade de rir ou sorrir iam desaparecendo, naquele momento ficou parado, quieto, olhar vazio. Não soube o tempo que assim passou. Despertou com o vozear dos camaradas e sentiu que as forças lhe fugiam corpo abaixo, a cara a ficar molhada, os cheiros a serem os da planície, da mulher, da terra negra. Sentiu-se só, demasiado só. Sentou-se e o corpo ali e ele lá, ele a lá voltar, não sabia quem já era, que fazia ali, que tinham feito dele, porque, em tão pouco tempo, vira tanta desgraça e tanta miséria. Sentiu medo, mais medo, medo de tudo e dele também.
A partir daquele dia sentiu-se outro, mais temeroso e a desgastar-se no tempo. Tempo a passar cada vez mais lento, tão lento.
Andava cabisbaixo, diferente e fazia contas ao tempo que faltava. Quanto? Um ano, seis meses, três?
Se saía para o mato sentia-se mais fraco, sentia mais o medo, os medos que todos sentem e mais os dele.
Recebeu a notícia com certa indiferença. Ia para Bissau para tratar e cuidar de teres e haveres dos seus Camaradas da Companhia. Tinha tantos meses de comissão e nunca vira Bissau, excepto, brevemente, ao desembarcar e nem dera para ver nada. Vida de soldado era difícil.
Passados dias aí estava Bissau. Habituou-se rapidamente e reaprendeu a sorrir. Os pensamentos continuavam caminhando para a sua planície, família e os seus camaradas no mato. Como a guerra ali era diferente. Guerra só de nome e gente com risos e vidas a correrem rápidas e alegres. Muito deles em passagem para voltarem ao mato, aos medos, á vida que dispensavam.

Naquela manhã saiu alegre. Entrou no jeep, o amigo a conduzir, Bissalanca logo ali. Estrada fora ele a dizer que teria o embarque daí a dois meses. Seria?

A hiena apareceu, o jeep guinou, saiu célere da estrada, o baga-baga parou-o. Da testa escorria-lhe um ligeiro fio de sangue. Talvez o seu último pensamento tivesse chegado á planície, á terra mãe, á mulher e a sua filha…talvez…

Nenhures ou entre o Alentejo e Bissau aos 3 de Outubro de 1969
_____________

Nota de L.G.:

18 de Maio de 2010

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão


(**) 

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/05/guine-6374-p6423-estorias-de-mansambo.html

(***) Na lista dos Mortos do Ultramar, organizada pelo portal Guerra do Ultramar, consta, no concelho de Beja, o nome de  José Francisco Gaié Casadinho, natural da freguesia de São Matias, sold da CART 2339, vítima de acidente de viação em 2 (e não 3) de Outubro de 1969. 

10 comentários:

manuelmaia disse...

CARO TORCATO,

PARABÉNS PELO TEXTO SUBLIME QUE ACABEI DE LER.
OBRIGADO
MANUELMAIA

Anónimo disse...

Obrigado, Torcato, por deixares o teu registo de mais um teu/nosso camarada que deixou de ser mais um soldado desconhecido e passou a figurar no registo dos que deram a vida ao serviço da Pátria, independentemente de ter sido em acidente ou frente ao inimigo. Estava ao serviço da Pátria e ao seu seviço morreu.
Evoca todos os teus/nossos mortos, merecem-no por não terem vós para se fazerem recordar.
BS

Juvenal Amado disse...

Torcato

O teu escrito corre límpido como água que murmura e se enrola nas pedras de margens que tu constróis.
Para além da estória fica o registo dessa vida perdida.
Nunca ninguém te passou ao lado sem deixar uma marca.
Também tu deves marcar todos os que contigo se cruzam.

Um abraço

Juvenal Amado

Anónimo disse...

Caro Torcato

Brilhante descrição dum episódio, bem triste e que, pelo que vou conhecendo de ti pelos teus escritos, foi mais um que te marcou para sempre.

Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

"Nao costumo por norma dizer o que sinto,mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa." Como o Poeta citado,os teus textos continuam a ser...diferentes.

Anónimo disse...

Caro Torcato

Foi com muita emoção, que li a história, o relato, o acontecimento, tão comum nesse tempo aos jovens do nosso país, e que ainda hoje me magoa
profundamente.
Partilhe connosco todas as suas recordações, faça-nos saber, para que ninguém se esqueça de um tempo que, como dizeis e sentis, cada vez são menos a recordar.
Obrigada amigo

Um abraço da Felismina Costa

Anónimo disse...

Caro Torcato.
Parabéns pela forma sublime como descreves a perda de alguém que te tocou profundamente.
A tua perda também foi de todos nós!
A nós resta dizer, em seu nome, presente!
Obrigado amigo,
José Câmara

Joaquim Mexia Alves disse...

Meu camarigo Torcato

Como uma morte brutal e sem sentido, que apenas poderia despertar revolta e desespero, assim relatada por ti, com o coração nas mãos, nos leva a perceber, a viver e a pedir, mesmo passados tantos anos, por aqueles que tão bem descreves.

Um abraço forte e camarigo para ti

Anónimo disse...

Belo, muito belo este texto, só é ppena ter sido real.

Trouxe-me à memória amorte do Cabo Enfermeiro LOURO da minha Companhia, que também era casado já conhecia a menina que tinha, mas não chegou a conhecer o rapaz que nasceu depois. Embora esse tenha morrido na guerra pura e dura, a tentar tratar outro camarada.

Um grande abraço,

Adriano Moreira Cart 2412 "SEMPRE DIFERENTES" Ex-Fur.Mil.Enf. Bigene
Binta, Guidage e Barro 1968/70.

Hélder Valério disse...

Caro amigo Torcato

A tua história está escrita num tom perfeitamente enquadrável no estilo neo-realista.
Intrisecamente bela, dramaticamente trágica.
E com aquele sabor amargo do irremediável....

Nesse dia festejava eu os meus 'verdes' 21 anos, já a fazer o 2º Ciclo do CSM. Já não me vou esquecer. Admitia que alguém pudesse ter morrido nesse dia (lembrei-me dessas possibilidades quando ouvi a voz da Diana Andringa naquele documentário que já se falou aqui no Blogue, quando ela se consciencializa da coincidência de datas do seu (dela) aniversário e o das mortes dos camaradas que constavam na pedra que estavam a observar), mas isso era uma vaga suposição, agora tenho uma referência...

Fiquei triste!
Um abraço
Hélder S.