quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969: Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)


Guiné Sector L1 > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Destacamento (!) da Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime. Natal de 1969. Destacamento, é favor: uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto. Este rio era uma fluente do grande Geba... Do pelotão fazia parte o 1º Cabo Benjamin Lopes da Costa, natural de Cabo Verde, ou de ascendência caboverdiana (LG).


Foto : © Beja Santos (2007) / Blogue Luís Graça . Direitos reservados.


1. Os dramas de consciência de camaradas nossos como o Luís Borrega ou o Simões (*), foram vividos (e partilhados ou não)  por muitos de nós.  Outros, como A. Marques Lopes e o Mário Beja Santos também passaram pela terrível experiência, no TO da Guiné,  de ter de disparar e matar... de caras. Os seus relatos são peças antológicas: se um dia se fizer uma antologia, em livro, do melhor do nosso blogue, eles deverão figurar lá... Eles foram pioneiros no nosso blogue, no sentido de terem sido provavelmente os primeiros, de todos nós, que vieram dizer, em público: "Eu estive na guerra e sei que matei, vi a cara dos homens ou das mulheres que as minhas balas mataram"... Com um misto de pudor, culpa, piedade, compaixão, humanidade, frontalidade, sem lamechice mas também sem fanfarronice... Tirando os casos patológicos, ninguém por prazer...  De qualquer modo, quem disse que aquela guerra era de baixa intensidade e que o Inimigo não tinha rosto ? De um lado e de outro, houve seguramente vítimas inocentes, pessoal não combatente, mulheres, crianças e idosos, que  estavam no sítio errado à horra errada. Pode não nos servir de consolo pensar que é assim, tem sido assim, em todas as guerras.

Hoje publicamos um excerto do poste P1978 (**).


2. A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa
por Mário Beja Santos [, foto à esquerda, emk Missirá, entre autoridades tradicionais do Cuor]:


(....) E portanto a 3 de Agosto [de 1969] vamos emboscar em Malandim, vamos mostrar a quem se abastece em Mero e Santa Helena que não estamos impassíveis ao descaro. Trabalhou-se até cerca das 5 da tarde, escolhi um grupo de quinze homens, cuidadosamente, com o auxílio do Benjamim Costa e do Domingos Silva expliquei como íamos actuar: ficaríamos em linha numa clareira, muito perto do mato denso que vem da destilaria de aguardente abandonada da fazenda de Malandim; ficaria no meio rodeado do Tcherno e de Mamadu Djau; ninguém dispararia a não ser à minha ordem, e a haver uma retirada viríamos pelo trilho até Finete, deixando os sentinelas de sobreaviso quanto a essa emergência. (...)

Estamos devidamente posicionados quando a repentina noite tropical caíu sobre nós. Aqui e ali ainda se ouve um cantil que vai à boca, um mastigar de comida, um pedaço de cola que ajuda a passar o tempo e quebra a secura. Penso mais no dia de amanhã que no de hoje, amanhã quero levar as folhas dos vencimentos a Bambadica, procurar trazer arroz, encomendar comida para a nossa messe em Missirá, ver se já chegaram alguns cunhetes para suprir as munições desaparecidas na noite de 15 de Julho.

(...)  A 5 de  Agosto vou escrever à Cristina:

"Não podes imaginar a dor com que te escrevo, estou chocado e não sei conter a amargura que me trespassa a alma. Tens que me ouvir. Montei uma emboscada na noite de 3 perto de Finete, onde estive até ontem. Aguardávamos com ânimo elevado a borrasca dos céus e o desfiar das horas, até alta madrugada. Eu estava estirado na pequena picada que conduz às ruínas da fazenda de Malandim. Silêncio sem o piar das aves até que, passava das 7, não estávamos ali há mais de uma hora, oiço o brado do Mamadu Camará que passa como um chicote pelas minhas costas: alto, alto já! rodopio, há um vulto que avança para mim, é um manto que me parece esverdeado que vacila diante de mim, não sei se vem armado, crivo-o de balas, oiço um suspiro breve, é como se uma massa mole que me cai nos braços.

"Estala o pânico, ouvem-se passos em fuga, é naturalmente o grupo que se reabastecera em Mero que parte em fuga. Acometido por uma violenta histeria, o cabo Costa pragueja e insulta-me: matou uma mulher, és um branco assassino. Uns procuram dominar o dementado, outros querem caçar os fugitivos, é uma desordem geral com a berraria do cabo Costa que continuava a vociferar e a insultar-me.

"Coisa curiosa, estou sereno, ordeno a retirada para Finete, aqui peço ao Bacari para ir buscar o corpo e os despojos, informo que vamos todos seguir para Bambadinca, sei e sinto que é necessário cortar pela raiz este sinal de insubordinação. Os quilómetros enlameados que levo até Bambadinca dão para pensar no que devo ao Benjamim Lopes da Costa (**), seguramente o mais culto dos meus cabos, sempre prestável, militar aprumado a quem reconheço a qualidade da solicitude e o valor da lealdade. Mas não se pode passar uma esponja sobre o que aconteceu". (...)

(...) Teor da punição dada ao 1º Cabo Benjamim da Costa Lopes, do Pel Caç Nat 52, pelo Cmdt do BCAÇ 2852, Ten Cor Jovelino Pamplona Corte Real:


"Puno com a pena de 8 (oito) dias de prisão disciplinar, o 1º Cabo nº 82535864 - BENJAMIM LOPES DA COSTA, do Pel Caç Nat 52, por no passado dia 03 de Agosto cerca das 19H00, no decurso de emboscada na estrada FINETE-MALANDIN, perante uma atitude legítima do seu Comandante de Pelotão, dirigiu-se-lhe em tom e termos denotando falta de respeito, seguindo-se-lhe uma crise de nervos e de choro, facto este que inibiu ser adoptada uma medida de perseguição imediata a um grupo IN que se revelara, sobre o qual momentos antes o Comandante do Pelotão tinha aberto fogo e abatido um dos seus elementos.


"Não é mais rigorosamente punido atendendo-se ao seu bom nível operacionmal bem c0mo uma razoável capacidade de colaboração já demonstrada em outras ocasiões, além das desculpas que pouco depois apresentou, alegando o seu temperamento nervoso e emotiona


"Infringiu o dever nº 2 do artº 4º do R.D.M." (...)

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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7056: (De) Caras (2): Em 6 de Novembro de 1971 abati um chefe de bigrupo do PAIGC, sei o seu nome, e o seu rosto persegue-me até à morte (Luís Borrega)

(**) Vd.poste de 20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!
Vd. também Mário Beja Santos - Diário da Guiné: 1968-1969: Na terra dos Soncó.  Lisboa: Círculo de Leitores / Temas e Debates, 2008, pp. 342 e ss.

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