sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9349: Notas de leitura (322): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Recomendo vivamente a leitura de “Malhas que os Impérios Tecem”, um projecto em que está envolvida a Prof.ª Manuela Ribeiro Sanches, que obrigatoriamente revolve a memória da guerra colonial e abre espaço para que os leitores interessados e sobretudo as gerações mais novas possam reflectir sobre um passado colonial que tem um fundo histórico de pensamento anticolonial agitado, complexo, com resistências transnacionais, um fermento que levou à constituição do Terceiro Mundo e à deslocalização da Europa e do Ocidente. É uma soberba viagem antológica e uma viagem que está longe por se dar concluída, nem todo o pensamento está recolhido e no caso português e das suas antigas colónias até se pode correr o risco de não recolher alguns depoimentos essenciais.

Um abraço do
Mário


Malhas que os impérios tecem:
Como reflectir hoje sobre os libelos anticoloniais do século XX


Beja Santos

“Malhas que os Impérios Tecem – textos anticoloniais, contextos pós-coloniais”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches (Edições 70, 2011) é uma investigação suculenta e arrojada que abre um amplo leque de interrogações aos múltiplos olhares anticoloniais que conduziram a reivindicações à autodeterminação e à independência das antigas colónias europeias.

Se a Europa mudou de rumo no termo da II Guerra Mundial, foi a descolonização o acontecimento mais complexo nas novas relações internacionais: influiu na Guerra Fria, foi determinante para um novo valor das matérias-primas, significou para os EUA uma enorme capacidade de relacionamento com novos Estados e determinou a sua poderosa e incontestável ubiquidade diplomática, financeira, comercial e tecnológica, arrastando as antigas potências colonizadoras para uma revisão no tratamento dos problemas económicos, das esferas de influência e na ajuda humanitária.

O pensamento anticolonial é um dado assente nos EUA, logo no início do século XX. Incorre perigos de simplificação redutora quem pretenda analisar o pensamento anticolonial a partir de meados do século XX, este livro organizado por Manuela Ribeiro Sanches tem um inegável mérito de, com o recurso a textos antológicos do maior relevo, mostrar como a descolonização teve uma preparação anterior aos ideais libertadores propugnados pela diplomacia norte-americana quando acabou o conflito mundial, em 1945.

Os fundadores do pensamento anticolonial mobilizaram-se à volta da questão do negro primeiro nos EUA e mais tarde nas Caraíbas. Tomaram consciência da diferença racial, da discriminação e da hierarquização fundada na pele. Estes pensadores foram à procura das raízes da negritude em África e construíram um projecto que está na base do pan-africanismo. É por isso que a antologia tem início com um texto de W. E. B. Du Bois publicado em 1903 em que este autor reivindique uma dignidade perdida a par da denúncia da falta de direitos políticos e cívicos. Esta será a tónica dos libelos anticoloniais durante décadas enquanto o Harlem se tornou num santuário do protesto afro-americano. Na esteira de Du Bois, outro autor influente, Alain Locke, nos anos 20, veio a escrever: “O Harlem atraiu o Africano, o Caribenho, o Americano negro; reuniu o negro do Norte e do Sul, o homem da cidade e da aldeia; o camponês, o estudante, o homem de negócios, o profissional, o artista, o poeta, o músico, o aventureiro e o operário, o pregador e o criminoso, o oportunista e o pária social… há que admitir que, até agora, os negros americanos foram mais uma designação racial do que uma realidade factual, mais um sentimento do que uma experiência”. E culmina toda esta reflexão com uma frase que iria ser motivo de escândalo: “A perseguição está a tornar o Negro internacional, tal como sucedeu com o judeu”.

No apropriado estudo prévio à antologia, Manuel Ribeiro Sanches traça o percurso destas itinerâncias, as viagens destes afroamericanos até à Europa e a influência que acabaram por exercer em duas figuras da maior importância para a organização da negritude, já nas vésperas da descolonização: Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire. Estes dois homens vão cruzar os seus destinos em Paris, no início dos anos 30. Evoluirão de modo distinto: Senghor para uma noção de crioulidade, em estreita ligação com a francofonia e recusando a via marxista; Césaire começará por aderir ao internacionalismo comunista de que se irá distanciar. Estava já encetado o processo da formação de elites africanas nas respectivas colónias. É por essa altura que intelectuais como caribenho George Lamming viajam até África, estabelecem diferenças e afinidades entre o mundo de onde vêm do local que observam, outros ficarão desiludidos com as novas nações independentes e no caso do Haiti entende-se que a sua independência foi um produto directo da revolução francesa.

É em plena encruzilhada e teia de afinidades entre negritude e pan-africanismo que vão emergir três pensadores oriundos de colónias portuguesas e seguramente os três nomes de maior projecção no pensamento anticolonial: Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral. A antologia privilegia o modo como eles rejeitaram o estatuto de assimilados ou coniventes com os formatos coloniais enquadradores dos civilizados/assimilados em oposição aos indígenas. Mário Pinto Andrade, no prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana, que só viria a ser publicada em Portugal em 1975, escreve sem deixar margem para equívocos: “A poesia africana de escrita portuguesa e crioula, sob o condicionamento da dominação colonialista, articula-se intimamente ao movimento de libertação nacional. Ela ritma o longo combate: negar a negação e realizar a emergência histórica dos povos. Actores sociais no acto cultural por excelência, a luta armada, formularam então um novo discurso poético. Nos dois momentos, os poetas universalizaram os signos da luta pela independência nacional”.

Estamos pois no novo contexto, os movimentos anticoloniais desabrocham, mas as questões da cultura e da identidade inquietam os pensadores favoráveis às lutas de inquietação. E os avisos e as comparações com o passado recente vieram à tona. Em meados do século, Georges Balandier escreveu um texto seminal sobre a situação colonial no pós-guerra, à semelhança da queda dos impérios ocorrida na I Guerra Mundial, os colonizados descobriam a sua história, as suas elites, educadas nas metrópoles coloniais, lançavam o grito de protesto e foram obtendo independência, com variados graus de vinculação com a potência colonizadora. Daí a necessidade de voltar aos locais da cultura nacional, condição indispensável para expurgar ou condicionar a cultura dos colonos.

Em meados dos anos 50, a questão colonial e o processo da descolonização relevam como um dos problemas de civilização com pedido de urgência. É um tempo de grandes documentos e de grandes intervenções, como as de Sartre, Simone de Beauvoir e Camus, Richard Wright e Frantz Fanon. No pensamento anticolonial começa a denunciar-se os artifícios da potência colonial para manter as suas prerrogativas junto da antiga colónia (neocolonialismo) ou o uso das estruturas sociais para cavar divisões na sociedade colonizada. Kwame Nkruhmah escreve: “O maior perigo que África enfrenta é o neocolonialismo, cujo principal instrumento é a balcanização. Este termo define de modo particularmente correcto a fragmentação da África em Estados pequenos e fracos; foi inventado para designar a política das grandes potências que dividiram a parte europeia do antigo Império Turco e criaram na península balcânica vários Estados dependentes e rivais entre si”. Eduardo Mondlane desmonta o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, observando que os administradores coloniais com a dimensão de António Enes ou Mouzinho de Albuquerque não se preocuparam em esconder a base de desigualdade e racismo contida nos seus pontos de vista sobre a questão colonial. Mondlane, à semelhança de Amílcar Cabral, denuncia o conceito de civilizado, de assimilado e de indígena e como tal categorização exacerbou conflitos étnicos com base em desigualdades raciais.

“Malhas que os Impérios Tecem” ajudam a compreender que o que se passou em África, em 1961, foi muito mais que o acirramento das superpotências que se aproveitaram dos sonhos de independência, há uma longa história anticolonial que aqui se revela e esclarece que aquelas lutas de independência tinham o tempo longo a seu favor.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9334: Notas de leitura (321): Prática e Utensilagem Agrícolas na Guiné, por F. Rogado Quitino (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)

No dia do 83.º aniversário da nossa Enfermeira Paraquedista Maria Ivone Quintino dos Reis, a nossa tertuliana e também Enfermeira Paraquedista, Maria Arminda Santos, presta aqui, no nosso Blogue, uma sentida homenagem à sua amiga, camarada e companheira de aventura.


Os meus parabéns à minha colega Maria Ivone Quintino dos Reis:  Boa amiga, fazes hoje, dia 13 de janeiro, oitenta e três anos de existência!

Como é bom chegar-se a esta idade e poder-se recordar todo o percurso de vida, que Deus nos facultou.

Como não é presentemente o teu caso [, por razões de saúde,], venho deste modo e à laia de missiva, recordar a mim mesma, mas em tua homenagem, o modo como nos conhecemos, a vida que partilhámos em conjunto, com momentos bons, menos bons e por vezes com opiniões diferentes e algumas brincadeiras pelo meio que tu com o ar mais sério, as achavas como desadequadas e inoportunas, mas que eu as reconhecia, como atos próprios das jovens raparigas, que éramos.

Lembro-me do primeiro dia que te conheci. Saímos do Aeroporto da Portela a vinte e seis de Maio de 1961, cerca das 9h30 e a bordo de um velho “Junker” (JU 52), que passou a partir desse momento a ser o nosso fiel amigo, íamos prestar provas psicofísicas ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas em Tancos. Como estava um dia com chuviscos, algumas de nós íamos de lenços na cabeça, tipo meninas do colégio em jeito de passeio de fim de curso.


Realmente apesar de todas nós já sermos enfermeiras, parecíamos umas colegiais, gente simples e em nada sofisticadas.

Foi um dia de “gozo”, para os militares que observaram aquele grupo de onze mulheres que,  invadindo o quartel daquela tropa especial e de elite, se aprontavam para que num futuro próximo, passassem também a fazer parte dela, mas na situação de pessoal equiparado a militares paraquedistas. Quem diria que naquela época de tão brandos costumes e num mundo tão fechado às mulheres isso pudesse vir a acontecer.

Fizeram-nos correr, saltar e suar, mas o modo pouco habitual como o fizemos, apelidaram-nos de imediato, “OS PRIMEIROS CEPOS DA AERONÁUTICA"

A Mª Ivone está ao lado do Cap Pára Cunha, seguida da Mª da Nazaré, (falecida), Mª Arminda, Mª de Lurdes, Mª. Margarida Costa, Mª do Céu Bernardes, Mª do Céu Policarpo, Mª Zulmira André (falecida), Mª Helena, Mª Margarida Pinto, Mª Irene e Major Lelo Ribeiro.

Continuaste como todas nós a correr, marchar e a saltar daquela medonha “Torre Francesa”.

Nessa fase algumas de nós, passaram a ter mais dificuldade nalguns exercícios. Recordo hoje,  com algum sorriso, o dia em que nos apearam junto à ponte da Chamusca, para uma prova de orientação (de azimutes), sem que antes nos recomendassem que, se à hora combinada não estivéssemos no ponto de reunião, que afinal era a barcaça da margem esquerda do rio Tejo, que nos levaria até à viatura de regresso ao quartel, teríamos que regressar (desenrascar), de qualquer modo.

Dividiram-nos em dois grupos, num dia tórrido de Julho, e tu fazias parte do meu. Com aquelas combinações de salto, que nos deram para a instrução, revestidas de borracha aos níveis das regiões sagrada, joelhos e cotovelos, ao andarmos terreno acima e abaixo, sem água e cheias de sede, recordo-me que ias entrando em choque, não fora o arejamento acidental, com a despida de tal uniforme, porque ao passarmos por um silvado, ficou com carraças e terias tu e eu, caído para o lado desmaiadas tal era o cansaço.

Passaram-se as semanas e parte do grupo extraordinariamente amigo e unido, foi-se desfazendo pelo medo que algumas tiveram ao não conseguirem,  repetidamente, voltarem a saltar daquela célebre “Torre de saída”, que simultaneamente também servia para treinos de aterragem.


Tu e outras de nós, conseguimos chegar ao fim do curso e conquistarmos a tão almejada “Boina Verde e as Asas ao peito” de que tanto nos orgulhamos.


Na foto superior estás em penúltima, na de baixo estás na 2.ª posição à esquerda. Falta a Mª da Nazaré que por motivo de uma entorse ao (4.º salto), acabou dias depois.

A partir daí começaste a fazer parte daquelas “Seis Marias que desceram do Céu.”

Embarcamos pela primeira vez para a África, (Luanda-Angola) a vinte e dois de Agosto de 1961, para acompanharmos na qualidade de enfermeiras, o lançamento de paraquedistas na Serra da Canda.

Partimos juntas e felizes para a nossa primeira missão à Africa, a bordo de um DC6 da nossa Força Aérea, que tinha como comandante o Ten Coronel Francisco Rosa, que no meio aeronáutico entre os pilotos, era chamado pelo Chico Rosa.

Após a descolagem em São Tomé, onde também fizemos escala, pregou-nos uma partida e,  tendo-nos chamado à cabine de pilotagem, nos mandou olhar pelo vidro da frente do avião, o que aceitámos fazer de imediato, sem nada vislumbrarmos de especial, pois disseram-nos que observássemos a linha que iria aparecer no horizonte. Foi então que o outro membro da tripulação nos regou a cabeça com uma garrafa de água, que nos deixou o penteado todo molhado. Era a tradição de batismo para quem pela primeira vez como nós, passávamos para o outro hemisfério, cruzando a linha do Equador. Foi uma risada entre todos, o que nos facilitou o relacionamento com as tripulações.

Tivemos o privilégio de assistirmos aos procedimentos de aproximação à aterragem e pela vida fora não mais esquecemos aquele e outros comandantes das tripulações, e vários pilotos com quem fizemos muitas missões e que de um modo geral, se mantiveram amigos.

Chegamos a Luanda com uma boa receção dos nossos camaradas paraquedistas que vieram receber-nos com muita cordialidade e conhecer aquelas “Aves raras”, que se tinham introduzido no seu meio, mas que eles não conheciam, porque já estavam colocados em Angola, quando iniciámos o nosso curso.


Na 1.ª foto o Comandante Francisco Rosa está de costas, ao cimo da escada.

A chegada foi propalada e a Comunicação Social apanhou-te para uma declaração. Eu ia pagando uma “Completa de 10”, por trazer um botão desabotoado da farda. Ao tempo era o que me dizia o Cap Marques da Costa que arrancou um franco sorriso do Tenente Mansilha, na 2ª foto. Salvou-me estar de farda n.º 1, (havia de ser bonito em pleno aeroporto!..). Testemunharam o facto o Alf Moura Martins, Tenentes Ruivinho e Proença, além do Cap Almendra (meio encoberto, na 3ª foto).

Depois,  amiga, lá embarcámos a bordo do Nord-Atlas a acompanhar aquele lançamento, com muita pena por não termos saltado também, e ainda por cima com a enorme angústia de vermos um dos nossos militares ficar preso ao avião. Felizmente safou-se por pouco e não foi necessária a nossa intervenção, nessa missão.

Nesta foto a Ivone olha para um militar que,  50 anos depois, aquando da Homenagem e entrega de Diplomas em Tancos, promovida pela UPP (União Portuguesa de Paraquedistas) a 27 de outubro de 2011, a todos os “Páras” brevetados em 1961, a aborda e lhe mostra o seu álbum que continha esta foto, que aqui registo. Senti uma grande mágoa por ela a não ter reconhecido, como já era esperado.


A tua e a minha vida continuaram e passados uns meses precisamente, no dia 18 de dezembro de 1961 aquando da invasão de Goa, pelas tropas da União Indiana, juntámo-nos em Carachi no Paquistão Ocidental, onde já te encontravas com a Maria do Céu Policarpo a assegurar a evacuação de mulheres e crianças familiares dos nossos militares e outras da população civil, que pretenderam sair de Goa.

Tivemos um regresso atribulado a bordo de um DC4 dos TAIP (Transportes Aéreos da ex-Índia Portuguesa), cujo comandante,  Solano de Almeida,  o tinha conseguido retirar com estilhaços, e fugido com a pista inoperativa, conjuntamente com um avião da TAP que ainda vinha mais esburacado e que ficou a reparar em Carachi.

Na primeira aterragem na cidade de Damasco brindaste-nos com o teu lado brincalhão. Estavam a embarcar num avião DC3 - Dakota um grupo de árabes e tu, com um véu branco na cabeça e os cordões à volta da cabeça, começaste a imitar a fala dos árabes o que fez com que olhassem para trás. Felizmente que era de noite e a situação não trouxe complicações.

Trouxemos uma nova passageira e recém-nascida, que é tua afilhada,  e chegámos a Lisboa em vésperas de Natal, sem antes termos aterrado de emergência em Palma de Maiorca, o que permitiu à tripulação e a nós algumas horas de repouso noturno. Antes da descolagem ainda deu para uma partilha de descontração com os mecânicos do avião à beira da piscina do hotel, onde se pernoitou.

Mª do Céu Policarpo, a Mª Ivone, de pé segura a mangueira, Mª Arminda, um dos tripulantes, e a Mª da Nazaré.


Com este ar jovial e alegre, quem pensaria que tivéssemos passado por noites sem dormir, uma certa angústia com os acontecimentos e a incerteza do que se estaria a passar nos territórios na Índia, a par do cansaço pelas muitas horas de voo e alguns sustos.

Graças a Deus hoje duas de nós ainda cá estamos para os recordar, embora não contemos contigo para o efeito, mas não esqueço que para além desta missão ainda lá voltaste no repatriamento dos nossos militares aprisionados. Tu e a Zulmira cumpriram essa missão, mas foi a ti que coube, ir mesmo à Índia a um campo de prisioneiros, numa situação perigosa e difícil.

Ivone,  estou a relatar tudo isto, mas gostava que tivesses a possibilidade de seres tu mesma a fazê-lo. Tal como sempre afirmo – A vida é os dias de que nos lembramos - e porque tenho ainda a faculdade de me recordar de algumas passagens, ofereço-te como presente de aniversário, este texto para a “Tabanca Grande”, que traduz uma ínfima parte do teu percurso profissional, não esquecendo que tu passaste também pelas três frentes da “Guerra” e naquela terra, a Guiné, onde de uma forma ou de outra, todos os que lá estiveram e que a trouxeram no coração, tu noutra situação de saúde, terias com certeza muitas das tuas vivências para lhes contar.

Por não me ser possível abraçar-te neste dia, deixo-te com duas das imagens do nosso reencontro no dia 8/8/2011, data do 50.º aniversário do nosso curso e da Festa da entrega do Diploma em Tancos, a 27/10/2011.

Associação da Força Aérea Portuguesa (AFAP)
Mª do Céu Policarpo, Mª Arminda Santos, Mª Ivone Reis e Mª de Lurdes Rodrigues.

Mª Ivone e Mª Arminda

Texto e fotos: Mª Arminda Santos.
Enf Paraquedista
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9347: Parabéns a você (366): Maria Ivone Reis, ex-Ten Enf Pára, 83 anos!

Guiné 63/74 - P9347: Parabéns a você (366): Maria Ivone Reis, ex-Ten Enf Pára, 83 anos!


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9339: Parabéns a você (365): Bernardino Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365 e CCAÇ 16 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9346: Tabanca Grande (317): Anabela Pires, voluntária no projeto Ecoturismo do Cantanhez, nossa tabanqueira nº 536, aqui saudada pelo Hélder Sousa

1. A Anabela Pires [, foto à direita],   mais uma amiga da Guiné-Bissau,  aceitou o nosso convite para integrar a nossa Tabanca Grande, como se depreende do comentário que deixou no poste P9325 (*):


Caros camarigas:


Obrigada, do fundo do coração, pelos vossos votos, pelas vossas cartas/mapas, pelo livro do Jero, que estou a ler.


Ainda nada fiz, só estou para embarcar, com sorte na próxima 6ª feira, dia 13 [de janeiro de 2012, a caminho de Bissau e depois Iemberém, Cantanhez, Região de Tombali].


Quando estava no aeroporto para embarcar, no dia 6, o que não sucedeu, recebi de uma amiga um livro de Paulo Freire, 4ª edição de 1984, intitulado Cartas à Guiné-Bissau (**). Na contracapa li "....o verdadeiro sentido da ajuda, aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente, crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar. Assim, o ato (a ajuda) não se distorce em dominação do que ajuda sobre o que é ajudado."


Terei esta frase sempre presente e a minha ajuda não será, neste sentido, fácil, uma vez que vou trabalhar no projecto ecocantanhez, [da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento]. Há que ter, em primeiro lugar, presente a realidade, os intereses da população mas também a noção de qualidade dos "clientes", provavelmente provindos de culturas bem diferentes. Haja "engenho e arte"!


Bem, ao fazer este comentário, acabei por aceitar, muito antes do que tinha previsto, o honroso convite para me associar à Tabanca Grande! (***)


Um abraço para todos(as),


Anabela Pires


2. Elogio da nova tabanqueira [, nº 536,]   feita pelo colaborador permanente deste blogue, Hélder Sousa [, foto à direita,], em comentário ao poste P9325 (*):


Caros amigos:

Esta notícia que o JERO [, José Eduardo Oliveira, ] nos enviou, com todos os ingredientes que a compõem, bem assim como as achegas que vieram dos comentários, tem várias coisas que são notáveis.

A primeira é, obviamente, a decisão de Anabela Pires em ocupar a sua reforma em algo que lhe é útil (também) mas em que dirige os seus conhecimentos, saberes e força de vontade em algo que enriquece quem toma esse tipo de atitudes e que é o de 'ajudar os outros'. Provavelmente o seu nascimento em África pode ter contribuído para o 'apelo' mas acho que o 'contágio' com a Guiné explica-se através do que foi referido sobre os contactos e os conhecimentos.

Depois, serve também para sabermos como os problemas burocráticos, as necessidades de 'afirmação' de pequenos peões se acabam por agigantar e complicar o que pode ser simples. Nem toda a gente tem a paciência necessária para enfrentar essas contrariedades, o que, felizmente, não é o caso de Anabela Pires.

Saltando por cima de mais algum outro pormenor sublinho agora o comentário que a Anabela faz em que toca exactamente no ponto essencial do que deve ser (ou não) uma atitude correcta em termos de cooperação. É isso mesmo!

Já tinha lido num relatório de actividades da AD alguma posição crítica à forma como algumas 'cooperações' foram feitas e como disso nada resultou e às vezes 'antes pelo contrário' e a chave do sucesso é sempre o que a Anabela acabou por citar. Igualmente o mesmo tipo de conclusão já me tinha sido feito chegar pela a minha amiga Marta [Ceitil] aquando dos seus relatos como cooperante onde se apercebeu perfeitamente dessa situação de troca de conhecimento e de reciprocidade de ganhos.

Do meu ponto de vista a Anabela está no caminho certo, vai ter sucesso na sua actuação e vamos ter conhecimento de várias situações relatadas ao vivo e actuais.

Boa viagem e bom trabalho.

Quanto ao JERO, o mesmo de sempre. Grande sensibilidade, bom 'olho' para os bons valores e sempre aquela disponibilidade desinteressada que o caracterizam.

Abraço. Hélder S.
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Notas dos editores:


(*) Vd, poste de 7 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (JERO)

(**) FREIRE, Paulo  [1921-1997] - Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Sinopse: Escrito e compilado em 1976 e 1977, este livro é o registro do primeiro ano de trabalho de Paulo Freire na construção de um modelo de alfabetização de adultos em Guiné-Bissau, então recém-independente. Através da correspondência trocada entre o educador e a Comissão Coordenadora dos trabalhos de alfabetização em Bissau, o espírito de colaboração e de transformação da realidade que norteia o pensamento de Paulo Freire nos incentiva a olhar para a África, histórica e socialmente tão próxima de nós. [Fonte: Editora Paz e Terra].

Ficha técnica:
Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro 
2011
5ª edição
264 páginas
Formato: 13,5 x 20,8 cm
ISBN: 9788577531899
Brochura
R$ 39,90

(***) Último poste da série > 3 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9307: Tabanca Grande (316): Vasco da Gama foi operado ao coração, mas está já em casa em convalescença

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9345: Memórias de Gabú (José Saúde) (21): Rádios dos tempos da Guerra do Ultramar



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Rádios dos tempos da Guerra do Ultramar

De Tete, Moçambique a Gabu, Guiné


Recebi, recentemente, uma mensagem deveras interessante enviada por um camarada Ranger de nome Jaime Froufe Andrade que refere a curiosidade em manter em seu poder um rádio pertencente a um ex guerrilheiro capturado na região de Tete, Moçambique, no dia 17 de Setembro de 1968. Segundo o relato do camarada, esse audacioso pequeno aparelho (funciona a pilhas) e revela uma história interessante a registar para a posterioridade, faltando, porém, conhecer o seu epílogo. 



Resumindo: O conteúdo do alerta deixado pelo Ranger Andrade, friso, também, o meu aviso, visando juntar as peças do puzzle entretanto desarrumado. Mas, e há sempre um mas, nestas coisas da internet tudo hoje se processa de uma forma simples e singela onde o carregar numa tecla – “enter” - poderá apresentar-se de seguida como a prova reconhecida para desmistificar um sonho que tende permanecer escondido num canto da saudade.

Fala o camarada que a celebridade que teima em manter no seu espólio ultramarino, lembra-lhe um golpe de mão efectuado lá para as bandas de Tete, Moçambique, sendo que do assalto resultou a captura de um ex guerrilheiro da FRELIMO que transportava consigo um rádio o qual ele próprio recolheu, sendo que a celebre preciosidade ainda se mantém, intacta, na vitrina dos seus troféus.

O apelo do Ranger Andrade é procurar encontrar o fim do fio da meada para, finalmente, entregar a telefonia ao seu verdadeiro dono: o homem capturado pela tropa lusa, perto de Tete, no já longínquo ano de 1968, precisamente no dia 17 de Setembro, reforço.

Sabes, camarada, que na Guiné também era comum os guerrilheiros transportarem roncos dessa natureza. Aliás, um aparte: os roncos não se quedavam apenas a nível das tropas inimigas, nós, brancos de rija tempera, curtíamos também os sons dos nossos nostálgicos rádios, aqueles comprados nas lojas dos libaneses em terras guineenses, enquanto em Moçambique, vocês, adquiriam-nos junto aos monhés, penso que era assim que na altura os baptizavam. Hoje, reconheço que se tratava de um desapreço multicultural, e racial, trazido fluentemente à estampa nesses remotos tempos.

Não obstante a verdade conhecida, o rádio, em poder do Ranger Andrade, assume-se ainda hoje como um pequeno brinquedo que não obedeceu a custos adicionais, sendo que o seu regresso às mãos do seu eloquente dono permanece em aberto. As portas continuam escancaradas!

Como nota de roda pé, passo a citar em seguida a história do meu velho rádio em Gabu, Guiné 1973/74.


O rádio do nosso contentamento 
Música para omitir a dor 

O dia de folga, de abençoado descanso, propunha aventuras deveras concertantes. A malta vestia roupa civil, aprumava-se à maneira, curtia tardes de convívio e espreitava o movimento das ruas de Gabu. 

Com uma camisa cingida ao corpo, uma calça de ganga, umas peúgas brancas, mania de uma juventude irreverente, e um sapato de pala, já agora uma cueca também branca, formalizavam uma indumentária do turista de Gabu. 

Depois vinha o passeio. 

Empapuçado com a minha presença lá ia eu desbravando territórios adversos aos campos de batalha. O camuflado, arrumado a um canto, mostrava-se paciente com a trégua que lhe foi dada. Amanhã, ou logo, lá estava ele operacional. 


No quarto partilhado com outros camaradas o velho rádio emitia sons que traziam até nós disseminadas notícias da metrópole que nos davam gozo. Sabíamos as últimas do país. Um país que além-mar se deparava com três frentes de guerra. 

Por outro lado notícias desportivas sobre as virtualidades do ciclista do Sporting, Joaquim Agostinho que, não obstante a idade, continuava a brilhar para gáudio do antigo homem do pedal João Roque que o tinha descoberto lá para as bandas de Torres Vedras; a última vitória do Benfica para o campeonato; os hoquistas portuguesas que continuam na senda como os melhores do mundo; o jovem Fernando Mamede que ao serviço do Sporting se afirmava como atleta de alta competição; enfim, notícias diversas sobre o mundo do desporto português que nos chegavam através do rádio. 

No campo musical, Amália Rodrigues, Fernando Farinha, António Calvário, Madalena Iglésias, Simone de Oliveira, Tony de Matos, Francisco José e toda uma elite de cantores lusos afamados, apresentavam-se ao rubro como artistas modelos para jovens que se deparavam com o factor de isolamento algures num ponto mais híbrido numa qualquer mata do Ultramar. 

Aquele rádio foi um dos meus fiéis amigos. Comprei-o numa loja de libaneses em Gabu. Na altura adquiri também uma ventoinha. 

Após a independência fiz questão em deixar como herança para os tropas do PAIGC essa maravilhosa relíquia! Uma dádiva caída do céu. 

Um abraço deste alentejano de gema, 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados. 
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.  
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:
4 DE JANEIRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9313: Memórias de Gabú (José Saúde) (20): Passagem de ano 1973/74


Guiné 63/74 – P9344: Armamento (7): O foguetão de 122 mm (Luís Dias)


1. O nosso Camarada Luís Dias, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872,Dulombi e Galomaro, 1971/74, enviou-nos mais uma mensagem desta série: 

O FOGUETÃO 122 mm 


Caros Camaradas,

Embora este tipo de armamento não seja propriamente da minha especialidade desejo dar este pequeno contributo, retirado de elementos colhidos na net.



Guiné > Cabuca > 1º Pel. da 2ª CART/BART 6523 > O Alf Mil Op Esp António Barbosa, junto dos restos de foguetões de 122 mm

O lançador de foguetes Katyusha é uma arma de artilharia (lançador de foguetes múltiplos) desenvolvida e utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs (em alemão: Stalinorgel) em referência ao dirigente soviético com o mesmo nome. Já o nome Katyusha foi dado pelo Exército Vermelho retirado de uma música famosa durante o período da guerra, que contava a história de uma jovem russa (Katyuhsa, diminutivo russo para Catarina) cujo namorado estava longe em virtude da guerra.



O desenvolvimento dos foguetes lançados por artilharia na URSS iniciou-se em finais dos anos 40, a fim de se substituírem ou complementarem os Katyusha de 82mm, 132mm e 300mm, da IIª GM. A fábrica estatal situada em Tula, sob a liderança de A. Ganichev, apresentou um foguete (míssil) no calibre 122mm, em 1963, denominado 122mm BM-21 GRAD. 

Ao longo de 1964 foram produzidos diversos tipos desta série e a serem transportados em camiões e outros veículos de vários tipos e dimensões, com diversos conjuntos e combinações de lançamento múltiplo. Também foi fabricado o Foguete 9P132/BM-21-P, no calibre 122mm (mais curto que o modelo standard, embora também pudesse ser usado por um multi-tubo, a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B.

O modelo standard é composto por uma cabeça (ogiva) explosiva de alta fragmentação (havia apontamentos no Exército Português que referiam que a cabeça se fragmentava em 14 000 estilhaços), um corpo em aço e um motor eléctrico de propulsão situado na cauda. 

A estabilização durante o voo é conferida por 4 alhetas estabilizadoras, situadas na parte de trás do foguete e quando completamente abertas atingem os 226mm. 

A cabeça contém 6,4 kg de explosivo e o detonador é armado por inércia, após percorrer entre 150 a 400 m. Podem ser aplicadas outro tipo de ogivas (químicas, fumos, incendiárias). 

O motor consiste em 20,5 kg de um propelente sólido. O peso total do foguete varia entre os 49,4 Kg e os 66 Kg e o seu comprimento entre os 2, 46 m e os 3, 22 m, também o seu alcance varia entre os 10 900 m e os 20 750 m. 

O míssil é reconhecível pelos seis tubos de descarga propulsora existente na cauda.

Sabemos que a arma (original) não era muito precisa e eram necessários muitos foguetes para que a sua eficiência fosse assinalável. No entanto, tinha um impacto psicológico enorme face ao volume e intensidade de som das saídas dos tubos.

Assim, a arma Katyusha era originalmente a denominação para os foguetões utilizados pelos multi-lançadores, que eram transportados em diversos tipos de camiões. Depois da guerra, os soviéticos aperfeiçoaram estes multi-lançadores, com o surgimento do míssil 122mm BM-21 GRAD, colocados em viaturas diversas e com diverso número de tubos. 

Aperfeiçoaram também um míssil portátil, na origem do anterior, mas ligeiramente mais curto, com o mesmo calibre, com a denominação 9P132/BM-21-P, que era lançado pelo uni-tubo 9M28/DKZ-B e era este o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné, pelo menos dentro do território, tendo sido, inclusive, capturadas diversas rampas de lançamento do tipo referido, conforme diversas fotos existente (CCAÇ 4740, 72/74 – Cufar).

Hoje, o uso de lançadores múltiplos de mísseis encontra-se difundido pela maior parte dos exércitos de todo o mundo.

De facto, a denominação Katyusha foi atribuída aos mísseis do tempo da IIª GM, que usavam vários calibres e eram transportados em camiões, mas tornou-se usual utilizar este nome, como “nick name”, uma alcunha, para os foguetões usados em multi-lançadores, mesmo os fabricados por outros países.

Eu, na Guiné, sempre utilizei a terminologia foguetão 122, quando me referia a esta arma (o IN usou-a na nossa zona, depois de passar entre a área de Cancolim e Galomaro e atacou Bafatá em 1972, embora sem grandes prejuízos), mas ouvi, também, muita gente referir-se como foguetão do tipo katyusha. No entanto, do que li, a terminologia katyusha é usada, unicamente, para os mísseis usados em lançadores múltiplos.

Espero ter dado uma ajuda sobre este tema.


Um abraço

Luís Dias

Fotos: © António Barbosa (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. também o último poste desta série em:

9 de julho de 2011 > Guiné 63/74 – P8533: Armamento (6): As caixas de madeira ou de metal que nos causavam muito respeito (Luís Dias)

Guiné 63/74 – P9343: In Memoriam (104): Carlos Adrião Geraldes (1941-2012), ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Guiné > Zona Leste > Pirada, 1965 > Da esquerda para a direita: Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Mil Médico Duarte e Alf Mil Carlos Geraldes

Fotos: © Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Mais um camarada que desaparece do reino dos vivos, mas não da nossa memória. Ontem, por telefone, soubemos da notícia da morte do Carlos Geraldes. O coração pregou-lhe a grande partida. Aos 70 anos. Na noite de quarta para quinta-feira passadas, o Carlos morreu, no Hospital de Viana do Castelo, vítima de ataque cardíaco.



Rui Vieira, seu amigo, 30 anos mais novo, foi o mensageiro da funesta notícia. Foi também ele quem nos deu mais pormenores biográficos sobre o Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande desde 2009, e ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Nasceu em Lisboa, a 23 de Junho de 1941. Foi para Viana do Castelo, aos 4 anos, quando o pai, desenhador técnico, foi trabalhar para os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Os pais do Rui e do Carlos eram amigos. Daí a amizade (e a admiração) que ligava o Rui ao Carlos, uma figura tutelar, de referência, um cidadão exemplar, um homem do seu tempo… O Rui é também leitor e admirador do nosso blogue. Acompanhava os escritos do seu amigo, publicados no nosso blogue, e que vão da poesia ao conto. Recorde-se que da sua série Gavetas da Memória publicaram-se 14 postes, mas também um conjunto de Cartas (Carlos Geraldes) (em 10 postes) revelando o seu dia no nordeste da Guiné, até ao seu regresso.

Rui Vieira aceitou o nosso convite para escrever um texto de homenagem póstuma ao seu amigo e nosso camarada. Prontificou-se também a falar com a Dona Isabel, viúva, no sentido de salvaguardar o espólio do Carlos relativo à Guiné (cartas, fotos, textos e outros documentos).

Ao Rui, à Isabel, ao irmão, arquiteto, sobrinhos, demais família, amigos do Carlos, bem como pessoal da CART 676, aqui a fica manifestação do nosso pesar mas também da nossa admiração por este camarada que nos honrou com a sua presença e a sua colaboração na Tabanca Grande. Nunca o chegámos a conhecer pessoalmente, nem nunca participou nos nossos encontros. O seu nome passará a figurar, no nosso blogue, na lista dos amigos e /ou camaradas que da lei da morte se foram libertando. E com ele já soma 19. Paz à sua alma.
Os editores.

PS1 – O Rui Vieira, natural de Lisboa, está a fazer o seu doutoramento em história contemporânea. É investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É especialista no domínio da história da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Estamos-lhe gratos por ter contactado os editores do blogue. Ficamos a guardar o seu prometido texto de homenagem ao Carlos Geraldes.

PS2 - A nossa melhor homenagem ao Carlos, que era um homem culto e sensível, é dizer-lhe que está aqui connosco nos poemas, ora mais tristes ou pungentes, ora mais irónicos ou líricos, com que nos brindou em vida… Aqui fica uma pequena seleção de um conjunto de poemas a que ele deu o título “Guiné: A Face Oculta”, e que nos mandou com a seguinte nota, em 22/11/2009: “ (…) Peço desculpa pela desfaçatez, mas também eu escrevi ‘poemas’ em noites de maior solidão. Reuni aqui alguns que me parecem retratar melhor os sentimentos despertados pelas noites africanas. Curiosamente tinha-lhes dado um título, ‘Guiné: A Face Oculta’, mas era a minha face que sentia e queria manter oculta. Nada tem a ver com essa escandaleira que nos dia de hoje está a vir a lume em todos os meios de comunicação (…)".


A toalha branca

Pousada aos pés da cama
Está uma toalha branca,
Onde limpo o rosto após a jornada.

Dá-me calma, alento, vigor.
Mas hoje está para ali,
Inútil, enxovalhada.

Haverá alguém que diga:
Pronto, tudo acabou!
Já não há mais nada!

Será que é hoje? Amanhã?
Quem sabe?
Qual será o fim da derrocada?

Pirada, Abril de 1965


Os meus amigos

Os meus amigos
São as lentas sombras da memória,
Que me visitam em dias de chuva.

São aqueles com quem respirámos
A alma, os tormentos e a glória,
Dos heróicos dias do passado.

São aqueles com quem chorámos
As tristezas e as breves alegrias,
Deste mundo inacabado.

(E também a melancolia das tardes frias...)

Os meus amigos (os mais queridos),
São as palavras e as cores
Que vão morrendo aqui e agora.

(Os meus amigos voltaram esta noite.)

Pirada, 24 de Agosto de 1965


Noites de Paúnca

Depois vem a noite.
Plena de luzes brilhantes
Parecendo tão longe
Como sóis agonizantes.

Gritos horríveis, gritos de bichos
Rasgam o silêncio das trevas
Sem abalar a indiferença
Dos que adormecem nas casernas.

E as coisas cómicas,
E as coisas tristes,
Acabam por se misturar,
Ficando tudo mais indiferente.

Quando nasce o Sol, finalmente,
As coisas cómicas e as coisas tristes
Ficam novamente cómicas,
Ficam novamente tristes...

Paúnca, 21 de Outubro de 1965


A patrulha

Alargam-se os caminhos da povoação
Já se distinguem as enormes mangueiras,
Ouve-se o rumor abafado do pilão,
O falso matraquear de armas traiçoeiras.

Perdida a prudência, exauridos,
Pelas crianças, caem vencidos.
Pois em troca de balas e tiros,
Recebem longos abraços e risos.

Agora, já é tarde,
Muito tarde para voltar,
Ninguém mais recorda o ódio,
A crueldade ignóbil de matar.

Lá longe, a caminho da bolanha,
Vai uma rapariguinha a cantar,
Lembra aos tristes soldados
As longas saudades do mar.

Paúnca, 16 de Janeiro de 1966
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Nota de CV:

 - Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9330: In Memoriam (103): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista (Maria Arminda Santos)

Guiné 63/74 - P9342: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (9): Fragmentos Genuínos - 7

FRAGMENTOS GENUÍNOS -7

Por Carlos Rios,
Ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66


Vista aérea de Bissorã

O tempo de permanência em Bissorã, já uma pequena cidade característica da colonização portuguesa e onde a sensação de isolamento patente em Fulacunda estava pelo menos psicologicamente sublimada, dado que, desde que devidamente protegidas já se organizavam colunas de viaturas e outras ligações por estrada com Olossato, Mansoa etc.., e onde as condições de aboletamento já eram minimamente aceitáveis, onde se verificava algum movimento, com o funcionamento ainda do administrador local, de alguns resistentes comerciantes mantendo a população residente na cidade como nas redondezas actividades autónomas, tendo curiosamente dois templos de culto, um católico e um muçulmano, realizando até semanalmente uma feira em campo aberto, onde se transaccionava uma parafernalha de artigos, teve em mim e penso que na maioria dos camaradas, pesem embora algumas acções e confrontos com o IN, um efeito retemperador e propiciador de um aumento de confiança , depois de um ininterrupto sucedâneo de tragédias e peripécias negativas até aí vividas.

O ambiente então proporcionado, permitiu-me, ainda que intermitentemente, passear palas tabancas das redondezas, acompanhado do meu amigo Djaló, um jovem nativo da Secção de Milícias que nos acompanhava e me servia de confiante companhia e de interprete. Raros eram os elementos da população estando autonomizados, que sabiam ou queriam falar ao menos crioulo, utilizando sempre os seus diversos dialectos. Uma curiosidade que pude detectar, era o facto de muitos escreverem com desenvoltura o árabe e nalguns locais se utilizar um idioma afrancesado, comunicando entre si, na errada convicção de que eu nada entenderia. Jamais me manifestei e foi-me de grande utilidade, deslocarmo-nos a algumas tabancas, com o prosaico intuito de observar e aprender, e onde, ainda que com alguma relutância inicial e que após pouco tempo, em que me senti como animal de feira a apreciar, se transformava na mais sincera e apreciada troca de opiniões, muitas das vezes tivemos que recorrer a garatujas desenhadas no chão, para nos entendermos.

Foi um tempo enriquecedor para mim, um compulsivo curioso, permitindo-me assim assistir a um sem número de vivências, rituais, danças tradicionais, jogos, cerimónias (estas nunca na totalidade) etc… das quais mesmo com as explicações do Djaló, francamente apenas retive alguns momentos em que uma estética rara e deslumbrante com uma beleza estonteante, que nos levava ao encontro de um etéreo visionamento. As próprias lutas (combates mano a mano), eram de uma dignidade e lealdade arrebatadora e elas próprias propiciadoras de esbeltos movimentos e momentos do conjunto em acção. Estes contactos despertaram em mim a curiosidade de conhecer os aspectos etnográficos, e assim vim a conseguir informação esclarecedora de muitas das minhas duvidas e que passo a transcrever mais à frente.

Mas porque o nosso “mote” era a guerra e o combate para o qual nos tinham empurrado e onde se teria de “matar ou morrer” tivemos mesmo assim neste períodos diversos recontros com o IN.
Ainda passados poucos dias de ter sido integrado na nova estrutura que agora constituía o grupo, e na escolta a uma coluna para o Olossato fomos vítimas de duas emboscadas, sendo atingido na barriga, com bastante gravidade um dos nossos habituais acompanhantes da Secção de Milícias.


Ainda mal refeitos das informações que nos chegaram sobre graves incidentes com o pelotão do Malaca dos Santos, era o nosso pelotão que actuava geralmente com uma Secção de Milícias, encarregado de executar uma emboscada na região de Embondé, já junto à estrada que vinha de Mansoa no caminho que conduzia depois da estrada ao Cambajo, aos primeiros vestígios que sentiram da nossa presença os elementos da população, que eram escoltados por dois guerrilheiros, no transporte de géneros para aquela base IN, fugiram desordenadamente, tendo nós capturado 20 deles que como era nosso timbre, entregamos na sede de Batalhão, não permitindo nunca, e já perfeitamente interiorizado e elogiado pelo nosso pessoal, menosprezos maus tratos físicos, ou verbais, antes tratando-os com a dignidade e respeito que o ser humano tem direito. Os géneros, confiscados, foram distribuídos pelos Milícias sempre disponíveis para receber as sobras com algum valor.

Contrapondo àquela nossa humanista preocupação e confirmando o velho aforismo popular “não há bela sem senão”, deu-se um acontecimento deveras insólito e dramático, proporcionado por um soldado da 1419, um mosca morta, pequeno e aloirado, donde parecia não poder advir nada de bem ou mal, mas que iludindo a vigilância do grupo de segurança ao conjunto de prisioneiros, enfiou pelo meio destes e numa demonstração de ódio e ferocidade inauditas, apanágio creio eu, de má formação, incultura e absorção da tremenda propaganda difundida e martelada pelo sistema político então vigente, e apunhalou um destes, liquidando-o sumariamente.

À boca pequena, contavam-se muitas estórias semelhantes. Oficialmente nada havia.
Quantas ignomínias e ferocidades cometemos ao longo de treze anos.

Foi ainda daqui que ficou interiorizada a má impressão e desilusão que me levam a ainda hoje uma negativa opinião da capacidade de actuação de alguns Grupos de Comandos na época, porquanto a par de invulgar destreza e destemor por parte de diversos Comandantes de Grupo e seus subordinados que digo com franqueza me deixavam pasmado, noutros casos e nas diversas saídas que tivemos com eles, mais que um grupo, podemos dizer que foram outros tantos revezes, porque havia sempre argumento para não avançarmos até ao objectivo: “já é muito tarde para atacar, tinha que ser na alvorada; houve demasiado barulho na aproximação; etc…etc…, nestas condições creio que o nosso grupo nunca tinha realizado um golpe de mão; fizeram-me recordar o velho grito épico do Caria, “Rumo a Fulacunda”.

Também em Bissorã vim a tomar conhecimento com a tremenda realidade que ainda estava reservada à nossa terrível passagem por este chão da Guiné onde nos tinham colocado, vejo hoje, para fazer uma guerra inaceitável e que na realidade tinha para alguns, objectivos obscuros que só agora entendo e são visíveis nas cópias dos blogues que apresento no fim.

"A guerra é um massacre de homens que não se conhecem em
benefício de outros que se conhecem mas não se massacram."
(Paul Valéry)

A zona de intervenção do Batalhão que veio a acabar em Mansoa onde pudemos verificar que as condições ainda se agravavam e onde tivemos maiores dificuldades e alguns revezes, abarcava uma imensa área com pavorosas e ameaçadoras condições de terreno, em que para além de imensa zonas de bolanhas pantanosas, que obrigatoriamente tínhamos que transpor, variadas vezes, tornando cada deslocação numa fonte de dificuldades, ainda tínhamos que contar, aproveitar a maré-baixa, para atravessar os canais de agua do mar que devido à orografia do terreno naquelas terras, são imensos, tendo em linha de conta que medeiam às vezes quilómetros entre uma maré e outra, e que fica no piso que tínhamos de percorrer, para além do terrível tarrafo (um tipo de vegetação que ficava quase submersa nas marés-cheias), uma espécie de argamassa que ao longe parecia compacta, mas que veio a revelar-se uma espécie de lama, mole, pegajosa, movediça, mal cheirosa, pútrida e de ténue consistência, só se conseguido atravessar, com tremendas dificuldades, sendo que nas maiores extensões terem de ser os mais altos e expeditos a terem de arrastar os mais baixos e alguns menos lestos que chegavam a correr riscos de atolamento. Estes eram momentos de terrível tensão dado, como chegou a acontecer sermos fustigados por parte do inimigo. Quando terminadas estas “travessias” parecíamos um conjunto de miseráveis soldadinhos de chumbo. Tremendas eram estas situações porquanto pouco tempo depois sob um sol e colores inclemente ficarmos secos e completamente enlameados, de tal maneira que nos dificultava ao movimentos, e com um cheiro nauseabundo.

As penosas situações em que por vezes fomos emboscados. Aqui maré cheia

A acrescer a este agreste e inóspito ambiente tínhamos ainda a toda a volta e obrigatoriamente nos percursos a atravessar as omnipotentes e majestosas florestas virgens, onde me parecia que a natureza tinha concentrado as suas forças para transmitir o que a vegetação tem de mais rico e variado. Para se conhecer toda a beleza que se pode usufruir destes autênticos santuários torna-se imprescindível introduzirmo-nos nestes locais tão antigos como o Mundo. Nada faz relembrar a cansativa monotonia das nossas florestas de carvalhos e pinheiros, cada ente constituinte deste luxuriante meio, tem por assim dizer, uma postura que lhe é singular, cada árvore tem um porte que lhe é próprio e a sua folhagem oferece frequentemente uma policromada tonalidade de verdes diferentes das que a rodeiam;

De comum apenas o ar majestático e a grandiosidade. Vegetação rasteira imensa, com lianas que abraçam as imensas árvores e onde se misturam e confundem sua folhagem, para atravessarmos este mar imenso de verdura tínhamos a maior parte das vezes de rastejar ou abrir caminhos com tremenda dificuldade á catanada.
Mais que uma vez tive a felicidade de ficar deslumbrado ao avistar alguma das imensas aves tropicais que habitavam este meio.
Enfim aqui nos meandros desta floresta que crescia ao deus dará, numa profusão de espécies que disputando o mesmo espaço muitas vezes se irmanavam e noutras se antagonizavam na procura da luz, que não era mais que a sua vida, não éramos mais que infinitésimos seres desambientados no seu interior, sentindo-a vigilante majestática, agreste e opressiva, ciosa da sua imponência e recato. Aqui me sentia como que protegido e resguardado por um manto de ilusão como se estivesse a ser objecto de afagos maternos. Quanta nostalgia.

Tomando como certa a informação de um dos elementos que antes tínhamos capturado, o Comando, encarregou-nos de executar um golpe de mão à tabanca de Quenhaqué, onde se realizava uma cerimónia, onde se iriam encontrar vários elementos do IN. Não sei porquê o Rui aceitou com alguma relutância esta missão. Avançámos a meio da noite, em conjunto com outro pelotão que ficou emboscado para proteger o nosso regresso e avançámos já de madrugada tendo o nosso pelotão sido dividido em dois, em que o grupo que eu comandava circundou a tabanca após o que daria o sinal para o restante pessoal, comandado pelo Rui entrar na mesma, Não chegámos a concretizar o plano porque fomos detectados e de dentro da tabanca, rebentou forte tiroteio. Rispostámos de imediato sobre elementos que entretanto se tinham posto em fuga, tendo abatido seis e capturado três armas, após o que encetamos minuciosas buscas na procura se mais armas o que não aconteceu, mas vindo a capturar um elemento do PAIGC, que me fez ver praticar o maior e mais arrepiante e ousado acto de insubmissão e lealdade de um ser humano. De mãos atadas atrás das costas no centro do nosso grupo, pediu para lhe pormos as cordas menos apertadas. Assim que sentiu aquelas ligeiramente mais frouxas ainda sem terminado o acto desatou em louca correria de fuga pelo meio do capim vindo a ser abatido, passados poucos metros por um elemento do grupo emboscado.

Já com o conhecimento do facto, de que iríamos para Mansoa, parti para férias na Metrópole, vindo a regressar aquela cidade em 06AGO66, para dar inicio ao mais violento e agressivo período, com que a Companhia se debateu, foi um tempo em que a par das inóspitas, agrestes e perigosas condições do terreno em que tivemos de actuar imensas vezes, algumas delas com fortes e trágicos revezes, ainda tivemos de suportar um ambiente húmido e infestado de milhões de mosquitos que não permitiam um momento de descanso fora dos mosquiteiros.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9336: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (8): Fragmentos Genuínos - 6

Guiné 63/74 - P9341: Memórias de Manuel Joaquim (3): Est-il un ennemi?

1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Meus queridos camaradas, editor e co-editores:
Aqui vai mais um texto sobre a "minha guerra". Não sei avaliá-lo quanto à sua publicação. Cometemos muitas vezes erros de avaliação por olharmos mais para o próprio umbigo do que para o universo que nos envolve. Sei que "Est-il un ennemi?" me marcou, para o bem ou para o mal agora não interessa.

Um grande abraço
Manuel Joaquim


EST-IL UN ENNEMI ?

“Bellum dulce inexpertis”, é uma expressão latina que pode ser entendida como “bem parece a guerra a quem não vai nela”. Pois é, devem ser raros os combatentes que não concordem com tal afirmação. Eu fui nela, a guerra, e ela também não me pareceu nada bem. Quando nela entrei senti necessidade de solucionar uma dúvida, como que existencial para mim: “quem é o inimigo?", “sou inimigo do meu inimigo?”, “vê-me ele seu inimigo?”

Chegado a Bissau, onde fiquei dois meses e meio, este processo mental foi tendo um lento desenvolvimento ao mesmo tempo que eu tentava “apreciar” a atmosfera militar e política da Guiné. Havia uma guerra de guerrilha, onde está o inimigo? A teoria bélica diz que pode estar em qualquer lado.

Ideologicamente percebia a guerra, comecei a ver que a minha observação (no local) ia ao encontro das minhas ideias sobre o assunto. Estava numa guerra iniciada pelos mesmos motivos e com os mesmos objetivos que justificaram centenas de outras no decurso da história das nações, e que era a conquista da independência de um certo território, a do meu próprio país é um pequeno exemplo (ou grande!).

Parti de Bissau para Bissorã, saí da coscuvilhisse da guerra para uma zona de combate. Psicologicamente tinha de agarrar a nova situação “pelos cornos”, construir o meu lugar naquele conflito, para evitar “ir-me abaixo”. Em primeiro lugar arrumar a cabeça. Como controlar as emoções, como gerir as contradições entre as ideias e os atos? Já que tinha obedecido à mobilização só tinha uma coisa a fazer, que era combater o designado inimigo. A ética assim mo exigia, em respeito por mim próprio e pelos meus camaradas.

Percebendo as razões do conflito, não foi difícil imaginar-me na pele do IN e pensar que provavelmente estaria a fazer o mesmo que ele, se estivesse no seu lugar. Éramos inimigos mas os dois lados do conflito combatiam por ideias de soberania para um mesmo território, uns a favor outros contra. Éramos inimigos num combate político, usando armas de guerra. Assim, não poderia guardar em mim um lugar para ódio, desprezo, nem mesmo menosprezo pelo IN. E foi com este estado de espírito que geri, na parte que me cabia, a minha presença e ação nesta guerra.

A propósito de inimigo, aqui vai uma pequena história.

Ao chegar a Bissorã, uma das primeiras coisas que fiz foi ligar o meu rádio/gravador e procurar estações de rádio em OM. Já esperava “apanhar” bem o Senegal mas a surpresa foi grande quando começo a ouvir um acordeão tocando uma melodia para mim desconhecida e que me pareceu familiar mas, para mim, completamente deslocada nas estações de rádio daquela zona de África. Já não sei se era o indicativo da estação ou de um seu programa. Adiantando: anos mais tarde ouvi tal música na voz de Amália e, surpresa, era o fado “Maria Lisboa” (letra de David Mourão-Ferreira e música de Alain Oulman).


Esta rádio senegalesa era de expressão francesa e começou a fazer-me companhia diária, ouvia-se muito bem, tinha belas canções, enfim, respirava-se Europa. E aconteceu o imprevisto numa canção que me marcou. Melodia triste, com tonalidades que me faziam lembrar uma mistura de fado e flamenco, muito agradável de ouvir e... com uma letra que me revolveu e que não mais esqueci, 46 anos passados. Não sei qual a razão por que era reposta frequentemente. Seria pela mensagem? Gravei-a e ficou uma das canções da minha vida, não pelo seu valor artístico mas pelo tempo e circunstâncias em que a ouvi. Era cantada pelo franco-argelino Enrico Macias mas só agora soube o seu nome (abençoada internet). Chama-se “Est-il un ennemi?” (É ele um inimigo?)


Est-il un ennemi? tem uma letra que marcou a minha visão sobre os meus inimigos, numa guerra em que lutei para os vencer. Humanizou a sua presença como meus adversários e mostrou-me que, apesar de estarmos tão “longe”, estávamos muito perto como seres humanos-peças duma guerra em que o sacrifício e o sangue, no limite, nos fazia “irmãos” mesmo que disto não tivéssemos consciência. Aqui vai, com desculpas para possíveis erros de uma tradução sujeita aos limites dos meus conhecimentos de francês, que não são lá grande coisa.



Est-elle un ennemie?
A minha lavadeira, minha amiga e meu alento. Na sua pose vislumbra-se a personagem. Segura, confiante e, para mim, um esteio de beleza humana que me ajudou a admirar as mulheres da Guiné. Inesquecíveis os momentos de convívio que me proporcionou. 
(Nota: ponha-se de lado qualquer ideia de cariz sexual)

Esta visão do “meu” inimigo poderia ser uma ilusão, na prática a morte dava os mesmos resultados fosse ela motivada por ódio ou não, com sadismo ou com misericórdia, com respeito pelo inimigo ou não. Mas isso é outra história que não diminui a dimensão humana que muitos de nós tentaram preservar nas atitudes tomadas tanto com os camaradas como com toda a gente, mesmo do lado inimigo.

O medo e a coragem andavam juntos, talvez muitas vezes o não percebêssemos, tanto para vivermos como para (não)morrermos.Vivemos aqueles nossos tempos com a morte que, desejando-a longe de nós, sempre a sentíamos presente. A nossa sobrevivência, se calhar, dependia mais do desespero que nos fazia agarrar à vida, ao futuro, do que à sorte que tantas vezes suplicámos que não nos abandonasse. A esta distância de dezenas de anos, falo por mim, olho para aquele tempo desgraçado, dolorido, vivido ao dia quando não à hora, algumas vezes ao minuto, como um tempo de vida tão limitada quanto intensa e cheia. Como nunca mais tive mas do qual não tenho saudades. Tenho saudades, sim, é da minha juventude.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9326: Memórias de Manuel Joaquim (2): Manhã maculada