Queridos amigos,
Foi um torna-viagem de saudade, há bem um quarto de século que não entrava naquela casa concebida de raíz pelo meu inesquecível amigo Filipe de Sousa, um espaço requintado, uma biblioteca fabulosa dispersa por toda a casa, arte plástica de muito bom gosto. Enquanto percorria as divisões do Casal de S. Bernardo, em Alcainça, não muito longe de Mafra, vieram à mente os encontros que ele ofereceu aos amigos num escritório onde podíamos amesendar rodeados de arte, ouvir os comentários um tanto truculentos do compositor Lopes Graça que comia o cozido à portuguesa regado com uísque, estou a escutar o escritor e jornalista António Valdemar lendo em voz tonitruante páginas de Agustina Bessa Luís ou o barítono Jorge Vaz de Carvalho a manifestar a sua cólera com as programações medíocres do Teatro Nacional de S. Carlos. Espero que gostem deste espaço oferecido pelo Filipe à Fundação Jorge Álvares, é bem merecedor de uma visita, ainda tenho mais umas imagens para vos mostrar no próximo sábado.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (214):
Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 1
Mário Beja Santos
Conheci e vim a fazer grande amizade com Carlos Miguel de Araújo, ele apareceu no Edifício O Século, já consagrado ao Ministério do Ambiente (também designado, antes ou depois, Ministério da Qualidade de Vida) como representante da RTP no Conselho da Publicidade, de que eu era secretário executivo, estávamos em 1983. Era uma amizade como se diz hoje improvável, ele monárquico e miguelista, nunca escondendo saudades do que houvera de bom no Estado Novo. Cultíssimo, quando faleceu, os filhos pediram-me para eu fazer um levantamento da sua biblioteca, passaram-me pelas mãos 4464 livros, alguns deles com enorme valor, 1.ªs edições de Cesariny, Luís Pacheco, Herberto Helder; foram encontradas centenas de cartas de escritores, estão em posse da família. Tendo perdido a visão, fiz leituras duas a três vezes por semana, durante 14 anos. A perda foi tão irreparável para mim, que indo visitar a minha irmã no lar em que se encontrava, junto da Escola Superior de Enfermagem S. Vicente Paulo, a escassas centenas de metros da casa que fora do Carlos Miguel, ocorria-me o automatismo de lhe telefonar para ver se estava disponível, estava ele falecido e há muito. Um dia, antes do fim dos anos 1980, o Carlos Miguel informou-me que o maestro e compositor Filipe de Sousa queria conhecer-me, para o efeito convidava-nos para irmos almoçar na Mandibula d’Aço, nome que me deixou estupefacto, mas era assim designado o seu escritório num 4.º andar na Rua Garrett, um edifício em frente à prestigiada Casa Souza, que ele herdara de um tio.
E assim nasceu uma nova amizade, para além da Mandibula d’Aço como regular ponto de encontro, almoços inesquecíveis onde descobri que o maestro Lopes Graça se banqueteava com cozido à portuguesa regado a uísque, coisa que nunca vira, passámos a visitar um amigo comum, o desenhador Vasco, em Fontanelas, e tínhamos depois almoços em Alcainça, eu tinha autorização para me passear por todos aqueles espaços com paredes cobertas de estantes, nunca me fora dado ver uma coleção particular tão fabulosa de música clássica e contemporânea, muita arte plástica, obras de arte dos séculos XVIII e XIX, tapeçarias que me deixavam de boca aberta. Encontrei esta fotografia tirada em 1994, o Filipe de Sousa sempre a fumar e o Carlos Miguel de Araújo embasbacado com uma edição luxuosa que o Filipe adquirira recentemente, eu olho tudo discretamente, de bico calado.
Tornou-se uma tradição o nosso professor de ginástica, que vive em S. Pedro da Cadeira, convidar os seus alunos para um almoço quando chegam os dias do estio. Há um grupo que organiza uma visita cultural e foi assim que fomos ao Asilo de Runa, à Igreja de S. Quintino, em Sobral de Monte Agraço, sugeri visitarmos a casa que pertence hoje à Fundação Jorge Álvares, a quem o Filipe doou os seus bens, a Fundação acolheu bem a ideia, e talvez um quarto de século depois voltei a Alcainça, o Casal de S. Bernardo faz paredes meias com a casa que pertenceu ao artista David Almeida, para mim o segundo melhor gravador português do século XX, depois de Bartolomeu Cid dos Santos. Senti-me tão feliz de aqui voltar, reencontrei a Maria do Rosário, que trabalhava na Mandibula d’Aço, foi um abraço ternurento e deixei a seu cargo para fazer parte da casa esta fotografia que esteve sempre exposta no meu escritório. Vamos então começar a visita, houve mudanças de alguns dos espaços, ao princípio andei para ali desorientado, a Maria do Rosário esclarecia-me do antes e depois, eu creio que para o leitor o importante é contemplar os tesouros artísticos que Filipe de Sousa deixou para nossa fruição, o Casal de S. Bernardo é visitável, havendo ajustamento com a Fundação Jorge Álvares. E deixa-se aqui um link para que o leitor tenha um currículo de Filipe de Sousa:
https://jorgealvares.com/tributo-a-filipe-de-sousa/.
Filipe de Sousa, Carlos Miguel de Araújo e eu, havia sempre novidades no património do Filipe e ele gostava de partilhar impressões com os seus amigos. Era um homem profundamente generoso, recordo que depois de um almoço na Mandibula d’Aço, ele fez questão de me deixar na Praça do Saldanha, onde eu trabalhava, antes de irmos engravatara-se, fiz-lhe um comentário de elogio à gravata, "pois se gosta muito, é sua”.
Tudo decorado com bom gosto, aqui temos peças asiáticas, um lindo contador, creio que se trata da baía de Macau e um defumador chinês.
O Filipe possuía uma impressionante coleção de clássicos latinos, diplomara-se em Filologia Clássica, os seus arranjos decorativos abismavam-nos, um quadro contemporâneo e uma escultura e sobre a estante um sabre.
Fizera amizade com Noronha da Costa, tanto ele como o Carlos Miguel, este possuía vários óleos e fotografias do Noronha, encontrei duas obras deste grande pintor lá em casa, pasmo com o talento imaginativo do Noronha, misturar temas de natureza morta com aquele vulto diáfano que parece contemplar os corpos inertes; e aquele armário com portas talhadas é uma formosura.
Uma serigrafia de Vieira da Silva, pelas minhas contas é uma mulher ao piano dentro daquela imensidade quadricular onde, por estranheza minha, não há linhas geometrizantes.
Esta é a sala onde em 1994 tirámos a fotografia, a Maria do Rosário explicou as mudanças, sem as explicações que ela me deu eu não teria acertado com o local da fotografia, mais livros por toda a parte, e sempre o bom gosto da decoração.
Uma obra do Cargaleiro datada de 1999, traços vertiginosos, há para ali uma recorrência do que era próprio dos futuristas.
David Almeida sem tirar nem pôr, aquele trabalho do enrugamento da matéria de cartão, aquele canto chamuscado adensa a interrogação do espetador.
Tive várias vezes sorte em que o almoço começasse a desoras, vinha para aqui a remexer nestas belas edições que o Filipe acumulou ao longo da vida.
Outro quadro de Noronha da Costa, a sua preocupação em desfocar, trabalho em acrílico, é tudo um mistério naquela neblina, o que perpassa é o frente a frente entre figura voluptuosa e aquela forma de balão que parece pairar sobre um promontório.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 19 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27033: Os nossos seres, saberes e lazeres (690): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (213): Uma deriva no Atlântico, a flamejante, trepidante, contemporaneidade na Arte (Mário Beja Santos)