segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12338: Notas de leitura (538): Atlas da Lusofonia - Guiné-Bissau, editado pelo Instituto Português da Conjuntura Estratégica e do Instituto Geográfico do Exército (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
É pena falarmos deste empreendimento no passado quando se trata de uma iniciativa suficientemente meritória para ter sido alvo de sucessivas reactualizações. Este Atlas foi concebido como documento de apresentação da realidade guineense para cooperantes e curiosos. O general Pedro Cardoso, exímio conhecedor da realidade lusófona, dirigiu o projeto e foi bem-sucedido. Temos aqui dados elementares da passagem da Guiné de Cabo-Verde à Guiné-Bissau, a realidade guineense aparece bem documentada e a maior originalidade é constituída pela exposição etnográfica. Trata-se de um projeto que devia ser repensado para diferentes públicos, tal a sua utilidade como ferramenta de trabalho.

Um abraço do
Mário


Atlas da Lusofonia – Guiné-Bissau

Beja Santos

O “Atlas da Lusofonia, Guiné-Bissau”, da responsabilidade do Instituto Português da Conjuntura Estratégica e do Instituto Geográfico do Exército, dirigido pelo general Pedro Cardoso, e editado em 2001, decorre, como se diz na introdução, dos conhecimentos acumulados ao longo de séculos e dos estudos mais recentes levados a efeito pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical, entre outros. Muitos destes conhecimentos foram no passado aproveitados por comandantes-chefes e governadores e pelos Quartéis-Generais e comandos dos três ramos das forças armadas dos três teatros de operações, entre 1961 e 1974. Este atlas pode ser encarado como uma ferramenta de investigação e de sustentação de conhecimentos para quem, na Guiné-Bissau, possa ser chamado a ações quer de cooperação, quer humanitárias, quer de participação no processo de decisão ou, como mero leigo, sinta a necessidade de conhecer melhor a realidade nas suas dimensões antropológica, histórica, religiosa, etnológica e etnográfica.

Neste atlas, o leitor dispõe de informação sobre os dados fundamentais da colonização, o processo de resistência à soberania portuguesa, nomeadamente nos anos 1950 e 1960 e uma súmula dos eventos que levaram à proclamação da independência e depois à independência de facto. A realidade guineense pós-independência aparece caracterizada em termos demográficos e económicos. Onde o atlas é indiscutivelmente interessante é no capítulo dos grupos étnicos, que aparecem descritos com uma enorme originalidade e numa comunicação muito apelativa. Como se exemplifica.

Falando dos Balantas, são apresentados como o grupo étnico mais numeroso, predominando em Mansoa, Bissorã, Binar, Fulacunda, Tite, S. João, Buba, Xime, Badora e João Landim. Possuem uma estrutura social horizontal, basicamente igualitária. A forte estratificação etária na sociedade balanta, patriarcal, é definidora das funções sociais a desempenhar. E o texto explica quem é quem. Na sociedade Balanta tradicional, o maioral da tabanca é um exímio lavrador, potencial detentor de gado, maior produtor agrícola e também chefe da família mais numerosa do clã. Na sociedade tradicional Balanta, a terra é um bem comunitário da tabanca, distribuída apenas de acordo com as necessidades específicas de cada família ou indivíduo, sendo, no entanto, as alfaias de propriedade privada. Os balantas dificilmente aceitam a morte como um fenómeno natural, pressupondo sempre a atuação de um feiticeiro possuído do espírito do Mal.

Quanto aos Manjacos, trata-se de uma sociedade estratificada em quatro classes sociais – nobres, guerreiros, agricultores e mestres e funcionários, possuem um sistema de governo baseado na autoridade do régulo, eleito pelos sacerdotes ou pelos nobres. Antes da presença e influência portuguesa, a estrutura política dos Manjacos organizava-se em três níveis: central, regional e local. No centro estava o régulo de Bassarel. Os Manjacos islamizados obedecem ao régulo de Pelundo. O régulo de Canchungo, Fernando Baticã Ferreira, era tido como uma personalidade de grande prestígio. A influência destes dois régulos é extensível a toda a diáspora manjaca. O régulo usa como símbolo de poder uma vassoura e um chocalho em ferro. A família é do tipo patriarcal com casamento por compensação e residência virilocal. A mulher ocupa uma posição secundária no lar, embora a primeira mulher usufrua de melhores regalias. A religião da grande maioria dos Manjacos é tradicional africana, e os seus Irãs são dos mais afamados do território. Os mais importantes parecem estar em Calequisse, Bassarel e Catió. Nos Manjacos podemos encontrar Irãs individuais, familiares e coletivos. Os Manjacos são um povo que por tradição emigra periodicamente para Norte, rumo ao Senegal.

Temos depois os Papéis, cujo chão tradicional é o da ilha de Bissau, encontravam-se divididos em sete clãs distintos. Constituíram sempre uma sociedade altamente hierarquizada, estando no vértice da pirâmide os régulos, os nobres e os jambacosses, com uma organização política devidamente estruturada. A família de estrutura patriarcal prolonga-se no clã. O chefe do clã é sempre uma mulher. O casamento só se pode concretizar entre elementos de clãs distintos, sendo o estatuto do filho dado pela mãe. De igual forma, a geração determina-se por via uterina, bem como a herança de todos os tipos de bens. Na ilha de Bissau, entre Brá e Bôr, existe um local conhecido por Enterramento, onde estão enterradas figuras destacadas da história guineense. Aquando das cerimónias fúnebres dessas personalidades eram aí feitos sacrifícios aos seus súbitos. A adoração por ídolos é independente da condição social, sendo um vulgar feixe de paus untados com sangue de animais, com penas de galo atadas na parte superior, ou então espetadas junto à base, a representação mais habitual.

Como é evidente, a descrição destes grupos éticos inclui outros representativos como os Felupes, os Bijagós, os Mandingas, os Fulas, os Beafadas e os Nalu. Os povos da Guiné-Bissau podem dividir-se em povos do interior e povos do litoral, os primeiros são predominantemente islâmicos, os segundos predominantemente de religião tradicional. As religiões tradicionais na Guiné-Bissau, embora com diferenças consoante os grupos étnicos e lugares, apresentam um certo número de características comuns. A noção de um Deus único, supremo e criador, é quase generalizada, entre os Balantas, Manjacos e Papéis. Na Guiné-Bissau, o Irã é o intermediário entre os homens e Deus. O Irã varia de tribo para tribo: orienta, dirige, regula e pune os atos de cada um dos seus descendentes, está presente em quase todas as atividades como o nascimento, o fanado, a justiça, o casamento, a sementeira. O nativo guineense, para se proteger da perda ou diminuição da força vital, recorre ao culto do Irã dos antepassados, culto que faz da sociedade indígena uma comunidade de vivos e mortos. O atlas apresenta as comunidades muçulmanas, a propagação do islamismo na Guiné, detendo-se na Fulanização, Mandinguização e Sossização. Tem muito interesse o que se escreve sobre as linhas de articulação dos dignatários islâmicos. De Marrocos ao Golfo da Guiné as linhagens preponderantes são de natureza xerifina, assiste-se à transição do tecido afro-árabe para o afro-negro. No caso particular da Guiné-Bissau as articulações dos povos muçulmanos não obedecem a esquemas rígidos, há uma certa fluidez de mecanismos. Segundo o atlas, em junho de 1972 as linhas de articulação eram: quanto à confraria Qadiriya, em Jabicunda, o dignatário exercia influência de tipo polarizante em todo o território, na área de Bafatá, e externa, na Gâmbia e no Senegal; no tocante à confraria Tidjanya, os dignatários islâmicos mais proeminentes eram os de Quebo, Ingoré e Cambor. O dignatário de Quebo (ao tempo Aldeia Formosa), articulava sem consulta a Tivaouane, a NE de Dakar. Exercia influência religiosa interna do tipo polarizante em todo o território. Em Ingoré, o Xerife pertencia a uma família originária de Marrocos, apresentava-se com uma ambivalência confraternal, pois era dirigente tanto da confraria Qadiriya como da Tidjanya. Por fim, o dignatário de Cambor, foi iniciado na confraria Tidjanya, no Senegal, a quem consultava.

O atlas inclui bibliografia e um CD-ROM que contém a versão interativa de toda a matéria abordada. É um documento ricamente ilustrado e não se compreende porque nunca mais foi reatualizado.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12334: Notas de leitura (537): A participação da CART 3494 na Acção Garlopa (Sousa de Castro)

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