quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 2

DIÁRIO DE BORDO

Ó mar salgado!

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

17 de Julho de 1963


A escada ou o portaló que eu subira devagar, há pouco, como se sentisse vertigens ou medo das distâncias que o mar me iria dar em breve, já não tinha os pés em terra e eu também não.

No terraço um mar de gente agitada, convulsiva, emocionada.
Encostado a uma grade branca, debruçado de olhos perdidos no olhar de todos que acenavam lenços, também acenei.

Ali era em todos o mesmo sangue a correr, o mesmo coração a vibrar de mágoa, os mesmos braços, a mesma Pátria. Os dois metros de água, entre o barco e o cais, quando a sirene roncou gritos tristes, como todo o adeus, em mim já eram lonjuras intermináveis, outras terras, nova aventura.

Ia partir. Mas cais de partir serão sempre cais de chegar? Pensei comigo. Olhei mais uma vez e deixando tombar os olhos no rio Tejo e dentro de mim, desci ao camarote, fui arrumar as malas.

Deitei-me. Vi selva e capim, olhos ferozes de terroristas, poças de sangue.
Os boatos sobre a Guiné eram de amedrontar, os piores, que alguns, malevolamente, lançaram ao vento.

Era assim um pesadelo aquela tarde de gaivotas, que, esvoaçando rente aos mastros do Niassa, desejavam uma boa viagem. Parecia impossível tal sonho e subi ao convés.

Navio Misto Niassa
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Lisboa, pequena, apagando-se quase na retina, fugia toda para trás. O céu também. E foi aí que recitei apenas para mim Fernando Pessoa, para mim e para o mar, onde acabara de entrar o navio:

Ó mar salgado, quanto do teu sal 
São lágrimas de Portugal. 
Por te cruzarmos quantas mães choraram, 
Quantos filhos em vão rezaram! 
Quantas noivas ficaram por casar, 
Para que fosses nosso, ó mar!

Fechei a alma. Os versos verteram-me lágrimas no coração, na pele arrepios fundos e longos.
O mar era já tão grande como a saudade. O céu era azul. E eu esperava-o sempre assim.

(Jornal da Bairrada, 5 Setembro 1964)

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

1 comentário:

MANUEL MAIA disse...

CARO ARMOR PIRES MOTA,


MUITO OBRIGADO POR ESTE TEXTO TÃO ARRUMADO E TÃO QUALIFICADO.
SOU PERIQUITO(72/74) E DEMANDEI JÁ A "NOSSA" GUINÉ NUMA PASSAROLA VOADORA AO INVÉS DO BARCO...
MAS POR LÁ CIRANDEI MAIS DE DOIS ANOS...
ABRAÇO